Poluição

Colômbia aposta no glifosato chinês para controlar plantio de coca

Colômbia planeja fumigações com produtos químicos questionáveis que podem prejudicar a saúde humana e o meio ambiente
<p>Governo restringiu uso do pesticida há 4 anos, mas agora aposta nele como ferramenta contra o tráfico (imagem: Presidencia)</p>

Governo restringiu uso do pesticida há 4 anos, mas agora aposta nele como ferramenta contra o tráfico (imagem: Presidencia)

O governo colombiano quer voltar a usar glifosato em grande escala, embora quatro anos atrás tenha sido um dos primeiros países do mundo a restringir o uso da substância por seus possíveis efeitos na saúde humana e ao meio ambiente.

Objeto de intensos debates e processos judiciais na Europa e nos Estados Unidos, o glifosato se tornou a principal ferramenta do presidente colombiano, Iván Duque, para lutar contra os cultivos ilícitos de coca e o tráfico de cocaína.

Para isso, o químico favorito do governo colombiano é um pesticida chinês.

A vontade política pelo glifosato

Enquanto em boa parte do mundo o debate sobre o glifosato gire em torno da agroindústria e da jardinagem, na Colômbia o nome desse herbicida é associado às políticas antidrogas que há duas décadas tentam combater o lucrativo tráfico de cocaína.

Por anos, a aspersão aérea de cultivos de coca foi a principal estratégia do governo colombiano contra o narcotráfico, com apoio político e econômico dos Estados Unidos. A ideia — hoje seriamente questionada — era que a política antidrogas deveria privilegiar o controle da oferta de drogas em países produtores, como a Colômbia, e, portanto, dos cultivos, em vez de centrar-se em reduzir a demanda nos países mais ricos onde a droga é consumida.

Assim, durante anos a maior parte do orçamento antidrogas da Colômbia se destinou a fumigar as plantações de coca com glifosato e perseguir os agricultores que cultivavam a planta, em vez de centrar os esforços em desmantelar as conexões mais lucrativas da cadeia.

O cenário mudou em 2015, quando a Organização Mundial da Saúde decidiu reclassificar o glifosato como uma substância “provavelmente cancerígena”. A classificação saiu depois de o braço científico das Nações Unidas, a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (AIPC), determinar que o glifosato pode causar câncer do sistema linfático (ou linfoma não hodgkiano).

A existência de vários indícios dos efeitos do glifosato sobre a saúde e o meio ambiente deveria ser suficiente para que a sociedade decida não arriscar

Nesse contexto, o governo do então presidente Juan Manuel Santos resolveu suspender a aspersão aérea de maneira preventiva. Em 2016, a Corte Constitucional reforçou a decisão e ordenou a suspensão do glifosato numa sentença que buscava proteger uma comunidade afrocolombiana de Chocó afetada pela fumigação, explicando que o princípio da precaução deveria prevalecer em temas de saúde e meio ambiente. A decisão também dizia que o glifosato só voltaria a ser utilizado caso se provasse que não causava danos.

“Qualquer decisão que se tome a esse respeito deve se basear em evidências objetivas e conclusivas que demonstrem a ausência de danos à saúde e ao meio ambiente”, advertiu a sentença, acrescentando que “a pesquisa científica sobre o risco da atividade de erradicação [destruição dos plantios], que se deve levar em conta para tomar decisões, deverá ter rigor, qualidade e imparcialidade”.

Nessa mesma época, a Colômbia decidiu apostar numa estratégia diferente contra a coca.

O acordo de paz que o governo de Santos assinou com as Farc no final de 2016 — cujos trechos sobre drogas foram acordados em meados de 2014 — dizia que a solução para o problema dos cultivos ilícitos passa por ajudar os agricultores, os elos mais frágeis da cadeia de produção, a encontrar outras atividades produtivas que sejam viáveis e melhorem suas condições de vida.

colombia glyphosate
Polícia antidrogas colombiana em operação local na província de Cundinamarca (image: Policía Nacional de los Colombianos)

Segundo essa diretiva, o governo trabalharia junto às comunidades para erradicar e substituir a coca por outros cultivos, em vez de confrontar os agricultores com aparelhos de força. O governo deveria acompanhar essas comunidades em todo o processo, oferecendo-lhes acesso a veterinários e agrônomos, encontrando mercados para seus produtos e investindo em bens e serviços públicos como estradas, saúde e educação. A aspersão seria então o último recurso, no caso de que os agricultores não quisessem acabar com o cultivo da coca.

Esse sistema permitia que o Exército e a polícia concentrassem suas capacidades operativas no crime organizado.

171,000


hectares foram dedicados ao cultivo de coca na Colômbia em 2017, um recorde

Contudo, o funcionamento do programa de substituição foi lento e errático. Ao mesmo tempo, os cultivos de coca se expandiram e alcançaram seu pico histórico mais alto — de 171 mil hectares — no fim de 2017, segundo o monitoramento anual feito pelas Nações Unidas por meio de seu Escritório sobre Drogas e Crime (UNODC). Os picos históricos mais baixos, de 48 mil hectares, foram entre 2012 e 2013, durante o governo Santos.

O aumento exponencial da coca se tornou uma das armas preferidas do ex-presidente Álvaro Uribe para atacar o acordo de paz assinado por Santos, que havia sido seu ministro de Defesa.

Quando o senador Iván Duque, pupilo de Uribe, ganhou a presidência em 2018 com uma plataforma política de oposição ao acordo de paz com as Farc, a promessa de voltar a fumigar as plantações de coca reapareceu no centro no discurso linha-dura contra o narcotráfico.

O governo pediu à Corte Constitucional que facilitasse a aspersão dada a magnitude do problema da coca. Na última semana, o tribunal máximo colombiano reiterou seus condicionamentos: Duque poderá voltar a fumigar glifosato caso desenvolva um programa que cumpra com os requisitos estabelecidos pela Corte e tramite uma licença ambiental.

Esses acontecimentos mais recentes ocorreram ao mesmo tempo em que o governo de Iván Duque escolhia um químico chinês à base de glifosato para utilizar nas aspersões. Há um mês, a Polícia Antinarcóticos — responsável pela fumigação — comprou 793 latas do herbicida chinês Cuspide 480 SL, como revelou a jornalista María Jimena Duzán.

Tudo isso ocorre no momento em que o glifosato tem sido questionado por seus efeitos sobre a saúde humana e sobre o meio ambiente.

Nos Estados Unidos, três júris decidiram aplicar multas milionárias sobre a Monsanto (agora propriedade da gigante alemã Bayer) no último ano, em casos nos quais usuários do herbicida RoundUp — à base de glifosato — tiveram câncer.

Na Europa também há um intenso debate político sobre o herbicida. Nove países — liderados pela França — pediram à Comissão Europeia que não renovasse a licença do glifosato em 2017. A licença acabou sendo concedida até 2022, mas se prevê mais uma rodada de discussões. Há um mês, a Áustria se tornou o primeiro país a passar uma lei proibindo o uso do glifosato, e a justiça europeia determinou que os cidadãos devem ter acesso aos estudos sobre a substância.

A volta do herbicida chinês

No centro do retorno da fumigação aérea da coca há um químico chinês cuja eficácia foi questionada no passado.

Ao longo da primeira década desde século, a polícia colombiana fez aspersão dos cultivos de coca com RoundUp. No entanto, desde 2011 o governo colombiano o trocou por outro pesticida à base de glifosato, mais barato, chamado Cuspide 480SL, produzido por várias empresas chinesas como a Weifang Shandong Rainbow, Truschem Co., Gilmore Marketing & Development Inc. e Qiaolang Co, segundo diferentes documentos das autoridades ambientais que autorizaram o uso da substância.

Temos agora uma oportunidade de discussão aberta sobre as diferentes ferramentas para combater os cultivos de coca

O ingrediente ativo dessa fórmula é o glifosato fabricado pela Anhui Huaxing Chemical Industry, empresa privada chinesa de agroquímicos de capital aberto. Cerca de 60% das ações da empresa pertencem à comissão estatal de supervisão e manejo dos ativos estatais do governo chinês.

Em julho de 2012, o pesticida foi objeto de uma intensa disputa entre o governo americano e o colombiano. Numa carta enviada ao vice-ministro de defesa colombiano Jorge Enrique Bedoya, o oficial mais alto do programa antidrogas da embaixada dos EUA, James B. Story, anunciou que as amostras do herbicida chinês não haviam passado nos testes feitos por um laboratório do Texas certificado pelo órgão ambiental norte-americano.

“Não é viável para ser utilizada (…) já que não cumpre com os requerimentos da Environmental Protection Agency (EPA)”, dizia a carta, explicando que havia dúvidas sobre eficácia do pesticida (por não ter substâncias que garantam a adesão do químico à planta) e sua volatilidade (por conter uma substância corrosiva e inflamável proibida em pesticidas nos Estados Unidos).

A carta, entretanto, continha uma advertência ainda mais grave sobre um ingrediente ativo encontrado nas amostras, chamado nonilfenoletoxilato. “É preciso reiterar que essa substância é proibida por organismos da União Europeia, e seu uso é restrito pelas normas canadenses, alemãs e dinamarquesas”, dizia o texto.

Sete anos depois, não está claro se o problema estava no pesticida ou nos lotes específicos dos quais as amostras foram retiradas, já que os Estados Unidos advertiram em sua carta que essas latas tinham sinais de reetiquetamento. Desde essa época, o único importador na Colômbia — e o beneficiário do contrato mais recente este ano — era uma pequena distribuidora chamada Talanú Chemical Ltda, localizada em Ibagué.

Os temores sobre o glifosato

Embora não existam estudos científicos conclusivos que provem os impactos do glifosato na saúde ou no meio ambiente, há sérios indícios de que — no mínimo — a substância não foi bem-sucedida na erradicação da coca.

$72,000


custo total estimado em dólares americanos da erradicação de um hectare de coca com glifosato

O maior problema não é tanto que o químico não funcione, mas que tenha um custo alto demais sem tanta eficácia. O economista Daniel Mejía — fundador do Centro de Estudos sobre Segurança e Drogas (Cesed) da Universidade dos Antes — calculou que erradicar um hectare de coca para sempre implica fumigar 30, devido à alta percentagem de replantio. Isso significa que, se fumigar apenas um hectare custa cerca de 2,6 mil dólares, eliminar a planta de maneira definitiva não custaria menos de 72 mil dólares.

Outros estudos econômicos mostraram indícios de que há impactos na saúde das comunidades locais. Daniel Mejía e Adriana Camacho cruzaram os dados de aspersões e pedidos de atenção ao sistema de saúde e descobriram que as consultas médicas se multiplicam em épocas de fumigação, e que há evidências de um aumento nos problemas de pele e nos abortos.

Sandra Rozo, professora da Universidade do Sul da Califórnia (USC), descobriu que nos municípios fortemente fumigados sobem as taxas de trabalho infantil e de mortalidade infantil não pelo glifosato em si, mas pelo aumento nos níveis de pobreza nessas comunidades e a realidade de que, frente à perda de colheitas, muitas famílias põem seus filhos menores de idade para trabalhar.

A isso se soma a perda de legitimidade do governo. Nas regiões fumigadas, aumenta a desconfiança das comunidades em relação aos militares, polícia e ao governo de maneira geral, tornando muito mais difícil uma intervenção de longo prazo nesses territórios, segundo analisa o cientista político Miguel García Sánchez.

Por tudo isso, muitos especialistas pedem uma avaliação séria da aspersão como melhor solução para o problema da coca.

“Devemos ter um debate baseado nas evidências científicas. A existência de vários indícios dos efeitos do glifosato sobre a saúde e o meio ambiente deveria ser suficiente para que a sociedade decida não arriscar. Há outras formas de reduzir a produção de cocaína no longo prazo”, afirma Ana María Arjona, professora da Universidade Northwestern e atual diretora do Cesed.

“Se a saúde é um direito fundamental, o Estado não pode atuar contra a saúde da população de maneira deliberada”, disse à Corte o ex-ministro de Saúde Alejandro Gaviria, um dos maiores estudiosos da política de drogas na Colômbia e o primeiro a recomendar a suspensão do uso do glifosato. “Não é um debate acadêmico ou técnico, é um debate ético”.

Como o governo Duque já decidiu voltar a fumigar plantios de coca, outros estudiosos do tema pedem ao presidente que contemple um catálogo de opções mais amplo, já que existem restrições legais para fumigar em muitas áreas.

Por exemplo, é proibida por lei a fumigação em parques nacionais (onde está 5% da coca do país) devido ao possível dano ambiental. Em territórios onde habitam minorias étnicas (onde 26% dos plantios se encontram), só se pode fumigar depois de um processo de consulta prévia. Além disso, a Corte estabeleceu que não se deve fumigar nas zonas onde o programa de substituição organizada, o PNIS, está funcionando hoje.

“Se dispomos em um mapa as diferentes camadas de restrição sobre o glifosato, vemos que o que sobra para fumigar é uma área muito reduzida”, argumenta Juan Carlos Garzón, que estuda o fenômeno na Fundación Ideas para la Paz (FIP). “Dada essa realidade, temos agora uma oportunidade de discussão aberta sobre as diferentes ferramentas para combater os cultivos de coca — quais são indicadas para cada território e como articulá-las”.