Agricultura

Leis de terra da Argentina asfixiam agricultura sustentável

Tendência de concentração de terra aumenta, com leis que incentivam rentabilidade a curto prazo e ignoram desenvolvimento sustentável
<p>As leis de terras da Argentina incentivam o uso de fertilizantes químicos para maximizar os lucros de curto prazo (imagem: Alamy)</p>

As leis de terras da Argentina incentivam o uso de fertilizantes químicos para maximizar os lucros de curto prazo (imagem: Alamy)

Cada vez menos agricultores cultivam soja, grãos e cereais na Argentina. Embora as exportações em geral tenham alcançado recordes históricos, nas últimas três décadas a terra tem se tornado cada vez mais concentrada em menos mãos e dedicada à produção de uma gama menor de culturas, mostram os dados do censo. Especialistas dizem que este modelo de agronegócio baseado no lucro a curto prazo desestimula práticas sustentáveis.

A combinação de uso intensivo de agrotóxicos, sementes geneticamente modificadas e o plantio, sem arado, reduziu a diversidade agrícola da Argentina. O país passou do cultivo de culturas mistas e fazendas de gado para duas monoculturas principais para exportação: soja e milho. 

Especialistas atribuem esta mudança, que acelerou nos últimos anos, à lei de posse de terra da Argentina de 1948, modificada durante a ditadura militar em 1980, que permite arrendamentos curtos de dois anos, incentivando retornos rápidos e desencorajando o planejamento ambiental a longo prazo. 

De acordo com dados preliminares do Censo Agrícola de 2018, 20% dos agricultores de todo o país trabalham em terras arrendadas. O número aumenta acentuadamente nas províncias de Córdoba, Santa Fé e Buenos Aires, o coração agrícola da Argentina. Em 2002, eram apenas 10%, ou metade.

A legislação atual permite que os arrendatários trabalhem as terras sem nenhuma consideração pela conservação do solo, rotação de culturas, ou limites na aplicação de agroquímicos. Tampouco incorpora os critérios de proteção ambiental que aparecem na Constituição, reformada em 1994. 

Terras cada vez mais concentradas na Argentina

No ano passado, a Argentina produziu 120 milhões de toneladas de grãos, milho e cereais em 31 milhões de hectares: 51,5 milhões de toneladas de milho em 7,26 milhões de hectares; 50,7 milhões de toneladas de soja em 17,2 milhões de hectares; e 6,8 milhões de toneladas de trigo em 6,8 milhões de hectares. 

A maioria dos grãos é exportada. No primeiro semestre de 2020, as exportações do setor agrícola valeram 20 bilhões de dólares, o equivalente a 70% do valor de todas as mercadorias que a Argentina exporta. A região dos Pampas foi responsável por 94% das vendas externas, de acordo com um relatório da fundação agrícola FADA. 

A China compra a maior parte da soja argentina não-processada, cerca de 7 milhões de toneladas por ano, no valor de cerca de 2,2 bilhões dólares. O Vietnã é o principal importador de milho, e o Brasil compra a maior parte do trigo argentino. 

Os dados provisórios do último censo agrícola fornecem uma imagem mais clara de quem vende. Há 236 mil fazendas trabalhando 161 milhões de hectares nos setores agrícola e florestal.

O censo também revela outro fenômeno. O número de fazendas está diminuindo, mas elas estão crescendo em tamanho. Enquanto no censo de 2002 havia 333 mil fazendas, em 2018 havia 250 mil. Apenas 1% das empresas (2,5 mil) controlam 40% das terras produtivas do país.

Nos últimos 30 anos, 170 mil unidades produtivas foram perdidas no campo argentino. 

Capitalismo agrícola

De acordo com o censo, 69% das fazendas da Argentina são administradas por seus proprietários, enquanto 19% dos campos são alugados. Nas principais províncias agrícolas, isto muda drasticamente.

Na província do norte de Córdoba, apenas 23% das fazendas foram arrendadas em 2002, mas este número saltou para 44% em 2018. Na província de Buenos Aires, que junto com Santa Fé compreende o chamado núcleo agrícola da Argentina, aproximadamente um terço das fazendas são arrendadas, cerca de 8,8 milhões de hectares do total de 23,7 milhões.

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“O quadro que vemos na região dos Pampas desde 1988 é a crescente concentração de terras com porcentagens importantes de parcelas alugadas. Há cada vez mais terrenos alugados”, disse Marisa Gonella, engenheira agrônoma da Universidade Nacional de Rosário. 

Nomes como Los Grobo, Cazanave y Asociados ou El Tejar surgiram nos últimos 20 anos como atores importantes no negócio de arrendamento de terras em grande escala na Argentina. 

Segundo Gonella, a globalização econômica permitiu a entrada de fluxos de capital que ignoram a história da agricultura da região, perturbando os produtores que são pressionados a alugar. 

Omar Príncipe, um pequeno produtor familiar e ex-presidente da Federação Agrária Argentina (FAA), disse que 40% dos pequenos e médios produtores desapareceram desde meados dos anos 1980, lançando “uma bomba social de que ninguém fala”. Ele acrescentou que a área média dedicada à produção aumentou em quase 45%, com um aumento semelhante no número de campos alugados. 

“Temos um modelo de concentração [de terra] que está crescendo exponencialmente e passou de 46 milhões de toneladas produzidas para 130 milhões de toneladas em 30 anos. Temos um crescimento sem desenvolvimento”, disse Príncipe.

A Federación Agraria, uma das quatro maiores organizações de desenvolvimento rural da Argentina, pediu uma nova lei de arrendamento que proporcionasse incentivos fiscais e de crédito e melhores condições de negociação para pequenos e médios produtores, combatendo o domínio das grandes empresas produtoras de commodities.

Curto-prazismo vs. sustentabilidade

Trabalhar a terra sem nenhuma razão para garantir sua saúde a longo prazo tem sérias consequências sociais e ambientais. Estas incluem o aumento da erosão do solo, a perda da biodiversidade, o uso excessivo de agroquímicos e o fim da tradicional agricultura familiar.

A erosão do solo é uma das mais graves. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO,na sigla em inglês) advertiu em um relatório recente que embora o agronegócio contribua mais para a economia nacional, o solo, que é o principal suporte para esta atividade, não recebe cuidados suficientes, “mas o contrário”. 

A agência estima que cerca de 50 milhões de hectares são afetados pela erosão moderada ou severa da água ou do vento, e que as perdas econômicas causadas pela degradação do solo somam cerca de 700 milhões de dólares por ano. A erosão é particularmente severa na chamada sub-região Pampa Ondulada que consiste das províncias de Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba, a planície mais fértil da Argentina.

Para Príncipe, o modelo agrícola atual incentiva a monocultura. Enquanto em 1988 a soja ocupava 4,6 milhões de hectares e produzia 6,5 milhões de toneladas, em 2015 esta tinha aumentado para 20 milhões de hectares que produziam 60 milhões de toneladas, de acordo com a Federación Agraria. 

“Uma lei de arrendamento seria fundamental para proteger o solo, uma vez que os contratos de um ano são projetados para o plantio de pools e fundos de investimento que entram e saem sem critérios de sustentabilidade. Com arrendamentos mais longos, pode haver mais diversificação”, disse Príncipe. 

O sindicalista rural pede uma nova legislação com arrendamentos de cinco anos, pois eles incentivariam uma maior diversidade de produção. “Temos que pensar no uso sustentável da terra, porque este modelo, ligado a um pacote tecnológico que nos obriga a usar mais agroquímicos, causa erosão, problemas de saúde e perda de florestas nativas e pastagens”, disse ele.

Patricia Propersi, uma agrônoma, diz que o modelo agroindustrial da Argentina “tem custos socioambientais cada vez mais altos” porque as injeções de capital e o acúmulo de lucros “foram colocados acima de qualquer outro objetivo”.

“O que é terra, apenas capital ou uma teia de vida? Damos prioridade aos fundos de investimento ou aos agricultores? Somos vítimas de uma lógica que desde o século XIX prioriza o setor como fornecedor de divisas e produtor de commodities”, acrescentou ela

Falta de legislação de terra na Argentina

Para a Propersi, o modelo atual de arrendamento data de 1970, quando monocultura, agroquímicos e sementes geneticamente modificadas foram introduzidos na Argentina. Dadas as leis sobre arrendamento, ela explica ser compreensível que não existam regras especificando quais práticas agrícolas podem ser feitas em terras alugadas. 

Gonella concorda: “O arrendamento é uma peculiaridade do modelo argentino. Tentativas de mudar a lei não progrediram e a maioria dos contratos ainda são feitos entre as próprias partes, muitas vezes até oralmente”.

Nos últimos 12 anos, foram apresentadas 14 tentativas de modificar a lei sobre arrendamentos, mas não tiveram sucesso. A última veio em 2008, com um projeto que buscava estender os contratos de cinco anos, dar maior proteção aos pequenos produtores e evitar a apropriação de terras pelos investidores. 

Para Príncipe, os interesses econômicos por trás do atual modelo de produção explicam o fracasso em derrubar as leis.

“O fato de não ter havido progresso em uma nova lei mostra a incapacidade do Estado de regular a posse e o acesso à terra. Se há uma coisa de que não estamos falando na Argentina, é isso”, disse ele.

Desafio

Apesar de um sistema orientado ao lucro a curto prazo, alguns “rebeldes” estão usando campos arrendados para empregar modos de produção sustentáveis. Este é o caso do Projeto Agroecológico Casilda (Capa), do qual participa o veterinário e ambientalista Eduardo Spiaggi.

“Alugamos 10 hectares de um vizinho para fazer trigo agroecológico e acrescentamos 11 hectares próprios”, disse Spiaggi. “O vizinho nos dá sua terra, nós a trabalhamos e lhe damos parte de nossa produção para pagar o aluguel”.

Além do trigo, o projeto Capa produz outras culturas em escala muito pequena, como soja, milho, aveia e centeio. Há também uma parte dedicada à produção de hortaliças e às árvores frutíferas, enquanto outra acomoda a criação de gado bovino, ovino e suíno. A fazenda também abriga criação de aves (galinhas e aves domésticas), além de segementos com florestas em boa parte de seu perímetro.

A fazenda está localizada na zona central do modelo de agricultura industrial, onde a terra está concentrada nas mãos de grandes empresas e grande parte das casas um dia habitadas por trabalhadores tradicionais da fazenda foi abandonada.

“Há uma dupla exploração dos campos, pelo proprietário e por aqueles que os alugam para trabalhá-los. Ambas as partes devem lucrar para que as despesas se cumpram em um curto período de tempo”, disse Spiaggi. Ele acredita que é necessário repensar completamente o modelo agroindustrial argentino e que, embora possa ajudar, uma nova lei para tratar do arrendamento de terras a curto prazo não é uma bala de prata. “Não é a solução fundamental”, disse ele.