Florestas

China deve fazer sua parte para reduzir o impacto da soja sobre ecossistemas

Como principal importadora de soja, a China pode ajudar mudando os padrões domésticos de produção e consumo, e suas cadeias de fornecimento globais
<p>Plantações de soja no Cerrado. A área já foi coberta por uma vegetação exuberante (imagem: Alamy)</p>
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Plantações de soja no Cerrado. A área já foi coberta por uma vegetação exuberante (imagem: Alamy)

Nos últimos 25 anos, as importações de soja da China cresceram 25% ao ano em média, chegando a quase 100 milhões de toneladas no ano passado. No mundo todo, 362 milhões de toneladas de soja foram cultivadas em 2020, um aumento de 46%em relação a 1994. O maior fornecedor do produto, o Brasil, cultiva soja em 38,3 milhões de hectares de terra um aumento médio anual de 13% desde 2000.

Enquanto isso acontecia, e em grande parte por causa disso, áreas de vegetação tropical na América do Sul encolhiam rapidamente.

Esses fatos nos levam a perguntar: a indústria global da soja é sustentável? Ou vai destruir todos os ecossistemas tropicais? Como podemos tornar a produção e o comércio sustentáveis?

Entre 2006 e 2017, fui vice-presidente da Associação da Indústria de Soja da China. Era responsável por suas operações e participei de consultas sobre políticas nacionais, além de ter intermediado a cooperação entre produtores de soja, processadores e pesquisadores. Também ajudei a desenvolver a Plataforma China-América do Sul para o Comércio Sustentável de Soja, uma iniciativa conjunta da WWF, do Instituto Paulson e da Solidaridad, e também as Diretrizes para a Soja Sustentável da China (o primeiro documento desse tipo na China).

Gostaria de compartilhar o meu ponto de vista sobre esse assunto.

Ração animal impulsiona expansão da soja

Desde a Segunda Guerra Mundial, a população humana cresceu de 2,5 bilhões para 7,7 bilhões. No mesmo período, as terras aráveis em todo o mundo aumentaram de 1,2 bilhão para 1,72 bilhão de hectares. A mudança mais significativa na agricultura tem sido a forte expansão das terras utilizadas para o cultivo da soja.

76,83


milhões de toneladas de soja foram usadas como ração animal na China em 2020

O rápido crescimento da indústria pecuária demanda fontes de proteína para a forragem. Há muito tempo,essa fonte era obtida principalmente da farinha de peixe. Agora que não dá mais para contar com a pesca para isso, a soja ocupou o seu lugar. Entre 2008 e 2020, a quantidade de farelo de soja usada na ração animal em todo o mundo aumentou de 151 milhões para 254 milhões de toneladas. Na China, o aumento saltou de 31,67 milhões para 76,83 milhões de toneladas. A indústria pecuária consome proteína de soja e produz carne, ovos e leite.

A soja e o milho são ambas matérias-primas fundamentais para a produção de forragens. O milho, uma fonte de amido, pode ser substituído por outras culturas básicas. Mas nenhuma outra cultura oferece uma alternativa à soja como fonte de proteína, e a demanda da indústria pecuária por ela é inelástica. A soja, portanto, tornou-se a safra de commodities mais desejada e, possivelmente, a mais controversa do mundo.

Tanto sua oferta quanto sua demanda aumentaram e o mercado está todo interligado: se um país planta menos soja, outro responde plantando mais; importações mais baixas em um país significam que outro comprará mais. Não podemos olhar apenas para os principais players como Brasil, China e Estados Unidos. 

A maior parte da perda de vegetação tropical ocorre na América do Sul. E isso não ocorre, como já foi o caso no passado, por agricultores que usam a terra para o sustento da família. Tampouco é inteiramente culpa do Brasil ou da Argentina. Visitei locais que foram desmatados na América do Sul e vi florestas primárias queimadas e árvores antigas arrancadas do solo por máquinas pesadas. A perda de florestas e habitats é devastadora. Esse processo modernizado de desmatamento é impulsionado pelo lucro, e isso não é exclusivo da América do Sul o mesmo tem sido visto em outras regiões como o Sudeste Asiático.

Após o corte das árvores, a vasta terra tropical é ideal para operações agrícolas em larga escala. Combinado com a mecanização e o uso indiscriminado de herbicidas, pesticidas e fertilizantes, a América do Sul torna-se a região mais barata do mundo para cultivar soja, uma grande vantagem nos mercados globais.

Enquanto isso, na Rússia e em outros lugares da Europa Oriental, vemos vastas extensões de terras agrícolas sem uso. O contraste gritante representa um fracasso da agricultura global.

Como todos sabem, há uma dualidade para o capital. Por um lado, ele flui e, conforme flui, mobiliza recursos e cria valor. Mas também é predatório ao gerar grandes lucros às custas da saúde ambiental.

Por quase um século, a extinção de espécies, as mudanças climáticas e a poluição desenfreada têm nos alertado que a lei da selva não funciona para a sociedade humana. Devemos controlar o capital e os danos que ele causa, criar leis e ideias que trabalhem em prol do meio ambiente e da economia sustentável.

Com a crescente preocupação com a nutrição, a soja não é mais o patinho feio

A soja é originária da China, e há 8.000 anos os humanos colhiam grãos de soja na natureza para comer. A agricultura de soja começou há 5.000 anos e há 2.600 anos os chineses começaram a fazer tofu a partir da soja. O povo chinês e a soja têm uma longa história compartilhada.

Mesmo assim, por algum tempo, os formuladores de políticas consideraram-na uma cultura de baixo rendimento, um patinho feio que sequer merecia entrar nos planos de segurança alimentar. A China, desse modo, tornou-se cada vez mais dependente das importações.

Atualmente, a produtividade de soja na China é inferior a 200 quilos por mu (666 metros quadrados), muito inferior ao do milho, arroz ou trigo. Mas veja isso por um outro ângulo: a soja cultivada na China é 40% de proteína, uma proporção maior do que a da carne de porco, bovina ou mesmo ovo e várias vezes mais do que o peso equivalente de outras culturas de grãos. A soja também é 20% de gordura e é rica em ácido fólico e vitamina E. Mais uma vez, outras culturas não podem competir.

À medida que a China se torna mais rica, há menos foco na quantidade de alimentos, e mais na nutrição. Agora podemos ver que a soja,em vez de ser o patinho feio, é na verdade um cisne. Enxergar na soja um alimento rico para a alimentação humana, e não só para a pecuária, é um caminho para melhorar a nutrição e para reduzir as pressões ambientais causadas pelo cultivo de soja como forragem.

A sustentabilidade da soja precisa de esforços globais — e a China pode liderar as ações

A proteção das florestas tropicais, da biodiversidade e o combate às mudanças climáticas são cruciais para o futuro da humanidade. Precisamos começar a trabalhar juntos hoje. Nenhum indivíduo, nenhuma empresa, nenhum país pode ser deixado para trás.

Do meu ponto de vista, seis ações devem ser tomadas se quisermos ver a sustentabilidade da soja em todo o mundo, algumas das quais exigem mudanças nas políticas e hábitos de consumo na China.

      1. As nações desenvolvidas e os comerciantes multinacionais de grãos devem apoiar a legislação para impedir o desmatamento da vegetação tropical na América do Sul, e recusar a soja associada ao desmatamento ilegal

Os países desenvolvidos acumularam capital e tecnologia que os lançaram em posições de vantagem nos mercados globais. Os países da América do Sul e de outros lugares são menos desenvolvidos, e precisam do impulso econômico da expansão das terras agrícolas. Mas eles também têm a responsabilidade de proteger os ecossistemas tropicais. Outros países devem entender a situação em que se encontram os países sul-americanos e ajudá-los a desenvolver outros setores de sua economia, expandindo as oportunidades de emprego não agrícolas e reduzindo a dependência da expansão agrícola que ocorre via desmatamento.

Um chinês em pé ao lado de um pôster da Cofco
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Os comerciantes internacionais devem usar sua influência para apoiar a legislação e as iniciativas existentes que protegem os ecossistemas sul-americanos. Devem recusar a compra de soja associada ao desmatamento ilegal. Dois terços do comércio global de soja estão destinados à China. As empresas chinesas têm trabalhado com organizações internacionais para produzir as Diretrizes para Soja Sustentável da China, estabelecendo princípios para o desenvolvimento sustentável destinados a proteger o meio ambiente, aumentar a fertilidade do solo, prevenir a poluição química e biológica e fornecer colheitas seguras e saudáveis, juntamente com índices quantitativos. Empresas chinesas, como a China Oil and Foodstuffs Corporation (COFCO), a China Grain Reserves Corporation e o Grupo Jiusan deixaram claro em suas políticas de compras que não comprarão soja associada ao desmatamento ilegal. Essas são apenas algumas ações tomadas pela China para incentivar o desenvolvimento sustentável do setor sojeiro.

      2. Trabalhar com países da Europa Oriental e África para utilizar terras agrícolas abandonadas para expandir o cultivo de soja

A Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, sigla em inglês) da China oferece uma nova oportunidade para a cooperação agrícola com países da Europa e da África. Universidades e empresas agrícolas chinesas estudam o reaproveitamento de terras agrícolas abandonadas e terras residuais com potencial agrícola na Rússia, Ucrânia, Belarus e Uzbequistão. A melhoria das variedades e tecnologias de cultivo também permitirá que a soja seja plantada mais amplamente. Atualmente, a Rússia produz apenas 4 milhões de toneladas de soja, e exporta apenas 800.000 toneladas para a China, mas as exportações têm o potencial de chegar a 20 milhões de toneladas. Esse aumento de produção da Rússia já ajudaria a estabilizar o fornecimento de soja da China e a reduzir a pressão sobre as florestas da América do Sul.

      3. Ajustar as políticas de segurança alimentar para subsidiar a rotação de culturas, em vez das colheitas

Não há necessidade de escolher entre soja e milho nas políticas de segurança alimentar. Não é bom mudar as regras com frequência, porque os produtores podem ficar inseguros quanto ao que plantar. A soja da China é utilizada principalmente para o consumo humano, enquanto seu milho é utilizado para ração animal. A experiência tem mostrado que a rotação de culturas de milho e soja no nordeste da China resulta em rendimentos consistentemente altos. Mas os subsídios para apenas milho ou apenas soja resultam no plantio repetido dessa cultura, e assim a rotação de culturas e suas vantagens são perdidas. Em vez de subsidiar o milho ou a soja, sugiro o subsídio para a rotação dos dois. Os agricultores terão certeza sobre o que plantar, em vez de se preocuparem sobre qual subsídio escolher, e ganharemos maiores rendimentos e uma produção mais estável de ambas as safras.

      4. Aplicação rigorosa da lei que regula o comércio de soja, para promover um desenvolvimento saudável

A soja cultivada para consumo humano e para ração animal são dois produtos diferentes, com mercados, preços e políticas diferentes.

Cerca de 80% da produção global de soja é utilizada em forragens para animais. Praticamente todas as importações de soja da China, dos Estados Unidos, do Brasil e da Argentina são utilizadas desta forma, e a lei chinesa exige que estas importações vão diretamente para uma fábrica de processamento e não são revendidas. O farelo de soja processado é utilizado quase exclusivamente como matéria-prima para forragens animais.

Enquanto isso, a China é o maior produtor mundial de soja para consumo humano, com a variedade não-transgênica de alta proteína cultivada lá e utilizada na produção de alimentos. Os processadores europeus de alimentos importam grandes quantidades de proteína de soja cultivada na China, que tem uma participação de 50% no mercado global de proteína de soja para uso alimentar.

Nos mercados internacionais, a soja para consumo humano é geralmente 800 yuan por tonelada (123 dólares) mais cara do que a soja para forragem. Isto significa que alguns comerciantes ilegais violam as regras da China sobre alimentos transgênicos e repassam o produto mais barato para o consumo humano. Isso afeta os produtores legítimos de soja e é um risco para a segurança alimentar. As autoridades alfandegárias, as autoridades de regulamentação do mercado e os órgãos responsáveis pela aplicação da lei devem combater proativamente tal comportamento para manter um mercado ordenado e proteger os produtores de soja domésticos da China.

      5. Desenvolver hábitos de consumo de soja da China para oferecer uma alternativa às proteínas animais

A soja é uma joia da coroa da cozinha chinesa. Os chineses usam a soja para produzir uma variedade impressionante de produtos tofu, leite de soja, pele de tofu, grãos de soja fermentados e molho de soja. A cultura chinesa de consumo de soja está se espalhando pelo mundo e está no centro de uma tendência para as proteínas vegetais.

O governo chinês busca equilibrar o consumo de proteínas vegetais e animais. A proteína de soja contém oito dos nove aminoácidos essenciais que necessitamos e pode ser consumida diretamente. Especialistas dizem que quando se utiliza farinha de soja para forragem animal, obtemos 1 kg de proteína animal para cada 2kg a 4 kg de proteína de soja um desperdício de recursos. Uma estrutura mais equilibrada, fazendo melhor uso das proteínas vegetais, seria mais saudável. E cada tonelada extra de soja usada para consumo humano poderia reduzir seu uso em forragens animais de 2 a 4 toneladas.

Além disso, o governo precisa  se concentrar tanto no desenvolvimento do uso da soja como alimento nutricional, quanto no crescimento da indústria pecuária. Sugiro que incentive cientistas e empresas a trabalharem juntos para melhorar as técnicas de processamento, aumentar a produção e a qualidade, e promover o uso de nutrientes de soja como carnes à base de plantas, alternativas ao leite, peptídeos, aminoácidos e lecitina de soja. Enquanto isso, podemos melhorar a composição de nossa indústria pecuária aumentando a proporção de animais alimentados com capim, melhorando as forragens animais e aumentando a taxa de utilização de proteína.

      6. Reduzir o desperdício de alimentos em restaurantes e nas casas

De acordo com um relatório recente do Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo, o setor de alimentação da China desperdiça anualmente cerca de 34 a 36 milhões de toneladas de alimentos. Um estudo de uma universidade constatou que as famílias desperdiçam 17% de seus alimentos, enquanto 20% dos alimentos nas mesas de restaurante vão parar no lixo. Enquanto isso, dados do Escritório de Informação do Conselho do Estado mostram que mais de 50% dos adultos chineses estão acima do peso ou são obesos, com os níveis aumentando para todas as faixas etárias e áreas da China. 

Cortar esse desperdício pela metade economizaria mais de 60 milhões de toneladas de alimentos por ano na China. Isso liberaria terra para o cultivo de soja, reduzindo muito nossa dependência da importação do produto e equilibrando a oferta e a demanda global. A redução da demanda por carnes e gorduras, por sua vez, reduziria muito o uso de soja para ração animal. Prevenir o desperdício de alimentos é uma abordagem verde para proteger a vegetação tropical.