Florestas

Falta de verba ameaça monitoramento contra desmatamento no Cerrado

Fim do Deter-Prodes provocaria apagão de dados e colocaria bioma e agronegócio em risco
<p>O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo e essencial para o abastecimento de água do Brasil (Imagem: Alamy)</p>

O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo e essencial para o abastecimento de água do Brasil (Imagem: Alamy)

O Cerrado está prestes a ficar sem os dois principais sistemas de monitoramento e sensoriamento remoto de desmatamento e degradação florestal do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Isso trará riscos à preservação da savana mais biodiversa do mundo, que já perdeu mais da metade de sua cobertura original, principalmente devido ao avanço agrícola.

O Deter, que gera alertas de desmatamento quase em tempo real, tem verbas para funcionar apenas até o fim de agosto; e o Prodes, o inventário anual da perda de vegetação nativa, até dezembro.

Os recursos financeiros que permitiram ao Inpe ter uma equipe Deter-Prodes dedicada ao Cerrado foram aportados em 2016 pelo Forest Investment Program (FIP), uma linha de financiamento do Banco Mundial. Foram R$ 56,49 milhões (corrigidos pela inflação) que permitiram criar a série histórica de dados de monitoramento do Prodes desde 2000 e de alertas do Deter desde 2018.

“Não existe garantia de que esses dados continuarão atualizados”, diz Cláudio Almeida, coordenador do programa de desmatamento da Amazônia e demais biomas do Inpe.

Almeida diz que tem prospectado recursos junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, mas não há garantias de consegui-los. O orçamento para o programa de monitoramento de desmatamento do Inpe é exclusivo para a Amazônia Legal.

Internacionalmente, poucas iniciativas capturam a dinâmica de desmatamento do Cerrado, diferente do que acontece na Amazônia

O fim do monitoramento no Cerrado põe em risco não apenas a integridade da vegetação nativa como também do suprimento de água do Brasil. O Cerrado abriga oito das 12 regiões hidrográficas do Brasil, com nascentes de importantes rios, como São Francisco, Araguaia, Parnaíba, Xingu e Jequitinhonha.

Vista aérea de Plantação de soja em Canarana, no estado de Mato Grosso
Plantação de soja em Canarana, no estado de Mato Grosso. Vista aérea de região desmatada do Cerrado por onde agronegócio se expande (Imagem: Alamy)

Yuri Salmona, geógrafo e diretor do Instituto Cerrados, explica que o bioma é uma espécie de caixa d’água que armazena água em solos profundos. As águas da chuva se infiltram no solo pelas raízes das árvores, ficam armazenadas e, em períodos secos, são liberadas pouco a pouco — um processo essencial para o abastecimento de água no país.

A vegetação tem um papel fundamental na manutenção desse ciclo. Sem as árvores e arbustos de raízes profundas que formam uma espécie de floresta subterrânea, o escoamento é superficial, a infiltração d’água e o armazenamento no subsolo diminuem.

“Com o efeito de eventos climáticos que limitam a chuva, o aquecimento global que aumenta a evaporação e o alto consumo d’água para a irrigação de cultivos como a soja no período de seca, super exploramos o bioma deixando vulneráveis a geração de energia e o abastecimento d’água para o país”, diz Salmona. Isso vai afetar, inclusive, o agronegócio, que se expande na região desde a década de 1970.

7,340km2


é o quanto o Cerrado perdeu de vegetação nativa em 2020, um aumento de 13,6% em relação ao ano anterior

Só em 2020, o Cerrado perdeu 7.340 km2 de vegetação nativa, um aumento de 13,6% em relação a 2019, quando foram desmatados 6.483 km2, segundo os dados do Prodes. A soja foi o principal propulsor dessa devastação, convertendo 2.078 km2 de savana em lavoura em 2020, o equivalente a 28,3% da área total desmatada.

Para Vivian Ribeiro, cientista de dados da organização Transparency for Sustainable Economies (Trase), o financiamento do FIP, que possibilitou o monitoramento do Cerrado, foi um divisor de águas que permitiu ao mundo conhecer o bioma.

Nascida em Goiás, estado coberto pelo Cerrado, a pesquisadora diz que o desmatamento da região é historicamente alto, mas os dados do Deter-Prodes deram transparência e geraram evidências dos locais exatos de destruição do bioma.

Eles também permitiram cruzar informações dos satélites com unidades de conservação, territórios indígenas e áreas com as licenças ambientais de lavouras, para combater fraudes e crimes ambientais em fazendas sem inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro eletrônico obrigatório de propriedades rurais.

“Internacionalmente, poucas iniciativas capturam a dinâmica de desmatamento do Cerrado, diferente do que acontece na Amazônia”, diz Ribeiro. Composta por plantas rasteiras e árvores que não passam de 20 metros de altura espalhadas pelo território, o Cerrado é menos imponente que a densa floresta tropical.

Ribeiro, que monitora os riscos ambientais provenientes das cadeias produtivas, especialmente da soja, explica que quase 90% do risco de desmatamento recente do Cerrado associado às exportações de soja do Brasil acontece na região do Matopiba, que abrange parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Mapa mostrando avisos de desmatamento no Cerrado
O Deter gera alertas de desmatamento quase em tempo real e auxilia equipes de fiscalização do bioma (Fonte: Deter)

Ao menos 7% do volume de soja que a União Europeia (UE) importou do Brasil em 2018 veio desses estados. O percentual, embora relativamente baixo, representa 61% da exposição da UE ao risco de desmatamento, segundo a Trase.

“Nem os importadores, nem os consumidores querem estar associados à destruição da natureza”, comenta Ribeiro. “Eles esperam que os exportadores adotem estratégias de rastreabilidade dos seus fornecedores, cruzando alertas do Deter e desmatamento do Prodes em áreas reconhecidamente problemáticas”. 

Ao todo 12% das fazendas de cultivo de soja na Amazônia e no Cerrado não possuem CAR, e dois terços da safra dessas propriedades sem registro seguem para a exportação, a maioria para a China (39%) e para a Europa (12%).

Em 2020, 74% de todas as exportações de soja brasileira foram para a China, segundo a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais. Países europeus como Espanha e Holanda compõem o segundo lugar, com 4% cada.

A empresa chinesa Cofco tem se esforçado para aumentar a rastreabilidade da soja brasileira. Sua expectativa é rastrear toda sua produção exportada do Brasil até 2023, embora o programa tenha sido lançado sem muita transparência. A empresa se baseia em dados de satélites de uma empresa privada.

“Sem os dados do Deter-Prodes, sem saber o que está acontecendo nas fazendas, sem as informações para a rastreabilidade independente, o risco dos países importadores de comprar de soja irregular aumenta, o que gera impactos negativos ao agronegócio brasileiro, já que a tendência é barrar produtos de áreas desmatadas recentemente”, afirma Vivian Ribeiro.