Alimentos

A dupla identidade da soja e suas oportunidades de sustentabilidade

Grãos ‘verdes’ da província de Heilongjiang ganham popularidade em dietas com base vegetal, enquanto importadores chineses de soja impulsionam certificação ecológica
<p>Profissional processa tofu em uma cabana de secagem na cidade de Taizhou, província de Zhejiang, leste da China. Vários métodos que transformam a soja em variedades de tofu foram inventados na China (Imagem: Alamy)</p>

Profissional processa tofu em uma cabana de secagem na cidade de Taizhou, província de Zhejiang, leste da China. Vários métodos que transformam a soja em variedades de tofu foram inventados na China (Imagem: Alamy)

A indústria globalizada da soja hoje está muitas vezes associada ao desmatamento e à perda de biodiversidade. Mas sua história na China se desenvolveu de forma diferente.

Domesticada no nordeste da China há milhares de anos, a maior parte da produção doméstica de soja está localizada na província de Heilongjiang, que se orgulha de seu solo negro e do cultivo de organismos não geneticamente modificados (OGM).

Os grãos de soja viajaram pelo mundo, sendo agora produzidos em quase todos os cantos do globo. Acredita-se que o Brasil, hoje o maior exportador mundial de soja, tenha obtido seu primeiro lote de sementes diretamente do nordeste da China na década de 1930.

A China também transformou a soja em diferentes variedades de tofu e se esforçou para introduzi-la fora da Ásia Oriental. Nos anos 1900, Li Shizeng, educador e membro do Partido Nacionalista chinês, registrou patentes para a fabricação de tofu, um processo semelhante ao do queijo e iogurte na França, e abriu uma fábrica de tofu em Paris.

Em 1917, a médica chinesa Yamei Kin foi enviada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos a seu país de origem para pesquisar a soja como fonte de proteína para alimentar soldados americanos durante a Primeira Guerra Mundial.

Durante o período de “Reforma e Abertura”, a partir de 1978, o governo apoiou o uso da soja como fonte de proteína para humanos e animais. Com sua aplicação na ração animal, houve um aumento exponencial em sua demanda.

Você sabia?


Acredita-se que o Brasil, hoje o maior exportador mundial de soja, tenha obtido seu primeiro lote de sementes diretamente do nordeste da China na década de 1930

Hoje, como maior importador e consumidor mundial de soja, quase 85% do consumo de soja da China está escondido na alimentação animal, principalmente importada do Brasil, dos Estados Unidos e da Argentina. No entanto, a China ainda é o quarto maior produtor mundial do grão, fornecendo soja não geneticamente modificada para o consumo humano.

Parte do desafio de se construir uma boa reputação é que os grãos produzidos internamente e importados não são adequadamente diferenciados, embora seus usos sejam completamente distintos na China.

Há muita atenção às importações de soja pela China, mas ignora-se sua produção doméstica. O desenvolvimento do 14º Plano Quinquenal da China dá nova ênfase à interconexão entre bem-estar humano e proteção ambiental.

Com a segurança e a garantia de qualidade se tornando um requisito básico para consumidores, a sustentabilidade de commodities leves, como a soja, é o próximo passo de governo e empresas. Isto terá implicações tanto para a soja como alimento cultivado domesticamente quanto para a ração importada.

Tornando verde a produção interna de soja

Até 2017, a região nordeste da China viu um declínio na área de plantio de soja, uma vez que agricultores conseguiam preços melhores e subsídios com o milho. Ao mesmo tempo, enfrentavam rendimentos mais baixos em comparação com outros países produtores, como Brasil e Estados Unidos.

Embora o desafio da sustentabilidade na produção de soja na China esteja enraizado na viabilidade econômica para agricultores, a província de Heilongjiang já considera sua produção “verde” e sem risco de desmatamento. A região continua a fornecer soja para atender à demanda das vastas variedades de tofu, leite de soja e molho de soja da China — produtos de uso diário consumidos no país.

A China tem mantido uma política estrita de produtos sem OGM para o consumo humano, sendo a província de Heilongjiang uma região-chave nesse tipo de plantio e processamento. Isto levou a indústria a adotar seus próprios sistemas de rastreabilidade, que serviu de base para a tendência de tornar a indústria mais verde.

O Grupo Jiusan, grande empresa de cultivo, processamento e comercialização de soja, lançou seu sistema de rastreabilidade verde em 2018. A iniciativa foi atualizada este ano com a utilização dos padrões de certificação orgânica e verde da China. Os detalhes sobre a iniciativa, no entanto, ainda são vagos e limitados.

85%


do consumo de soja da China está escondido na alimentação animal, principalmente importada do Brasil, dos Estados Unidos e da Argentina

Com o incentivo do governo, as indústrias na China estão se voltando cada vez mais para padrões internacionais de garantir qualidade, segurança e sustentabilidade, ao mesmo tempo em que permite que as empresas vendam produtos a um preço mais alto. As principais marcas de óleo de soja da China construíram a reputação de fornecer grãos sustentáveis, saudáveis e seguros, principalmente aqueles provenientes do nordeste do país.

Em 2014, a empresa estatal Sinograin North Agriculture Company foi pioneira na implementação de um padrão internacional de soja na China, certificando seus 24 mil hectares de soja sob os critérios Round Table for Responsible Soy (RTRS).

Embora a certificação RTRS garanta a responsabilidade ambiental e social, incluindo a desmatamento zero, o benefício direto para a Sinograin foi a adesão às Boas Práticas Agrícolas para reduzir o uso de produtos químicos, adotar a rotação de cultivos e melhorar a gestão da produção, o que proporcionou mais segurança para alcançar maiores rendimentos. Isso despertou o interesse de agricultores, que aderiram ao treinamento da certificação RTRS. A Sinograin também vende créditos de soja certificados a grupos europeus, e os grãos são vendidos a marcas líderes de tofu chinês.

Esta cooperação entre a Sinograin North e a RTRS é simbólica, pois este esforço conjunto ajuda a construir a reputação dos grãos de soja de Heilongjiang. Agora, a soja certificada pela RTRS na China está ganhando força. Os grãos de soja de Heilongjiang estão sendo procurados não só por empresas nacionais, mas também de Europa, Japão e Coreia do Sul, embora em pequenos volumes, com o aumento da demanda por proteínas de origem vegetal para o consumo humano.

Proteínas de origem vegetal impulsiona soja doméstica

Embora os grãos de soja tenham suprido o crescente consumo mundial de proteína animal, eles estão agora voltando a se destacar como a proteína vegetal mais procurada para consumo humano. Isto também ocorre na China, em particular entre as gerações mais jovens, que optam por comer menos carne e se preocupam com a proteção ambiental.

Empresas multinacionais, startups e investidores estão otimistas sobre a crescente indústria vegetariana na China. Em junho de 2020, a Cargill lançou sua marca “PlantEver”, vendendo nuggets vegetais online e à rede KFC na China.

Sem surpresas, as marcas vegetarianas confiam na soja proveniente da região nordeste da China. O preço dos produtos de origem vegetal é semelhante ao de carne, se não mais caros, o que aumenta o valor desses produtos à base de soja.

Embora seja improvável que essa tendência reduza muito o consumo de carne dentro da China, a indústria vegetal cresce com a preferência dos consumidores. Além dos benefícios ambientais da indústria de alimentos à base de plantas, essa preferência cria novas oportunidades para comercializar a soja nacional da China.

A China continuará a depender das importações de soja, mas exigirá garantias de que elas sejam de alta qualidade e sustentáveis

Os consumidores na União Europeia e nos EUA também exigem cada vez mais produtos sem OGM e desmatamento. Não é novidade ver compradores europeus cobrando a oferta de soja livre de transgênicos e desmatamento. A Europa está, muitas vezes, disposta a pagar um preço mais alto pelo produto.

Portanto, assim como o chá Pu’er construiu uma reputação de alto valor, a soja de Heilongjiang tem agora a oportunidade de desenvolver uma reputação semelhante. Isso requer ações de sustentabilidade transparentes e rastreáveis e uma diferenciação clara no mercado que reconheça a marca e a rotulagem ecológica.

Sustentabilidade pode virar tendência nas importações de soja

A outra identidade da soja é como um produto comercializado internacionalmente. A China continua a depender de importações de soja para atender à crescente demanda por ração animal. Particularmente as indústrias de suínos, aves e aquicultura estão fazendo esforços para tornar suas cadeias de produção mais verdes.

A China continuará a depender das importações de soja, mas exigirá garantias de que elas sejam de alta qualidade e sustentáveis. O governo e as instituições financeiras estão reconhecendo o desmatamento e a perda de habitat como os maiores riscos na indústria da soja. A COFCO International, braço comercial do Grupo COFCO, assumiu no ano passado o compromisso de alcançar a rastreabilidade total de seus fornecedores diretos de soja no Brasil até 2023. Em 2017, a China Meat Association e a WWF, juntamente com mais de 60 empresas signatárias, lançaram a Declaração de Carne Sustentável da China, apelando por ações para promover a produção, o comércio e o consumo sustentáveis de carne.

A grande questão é: o mundo está pronto para a crescente demanda por soja sustentável da China?

Mais recentemente, a empresa avícola Grupo Sunner anunciou seu compromisso de alcançar o desmatamento zero em sua cadeia de soja, trabalhando com o sistema de divulgação sem fins lucrativos CDP para desenvolver um plano para atingir essa meta.

A grande questão é: o mundo está pronto para a crescente demanda por soja sustentável da China?

A  Associação de Soja dos EUA, representando o segundo maior produtor de soja depois do Brasil, tem promovido ativamente seu próprio sistema de produção sustentável, o Sustainability Soy Assurance Protocol (SSAP), na China. O programa fornece um certificado SSAP para compradores chineses.

Em 2020, uma fazenda de bagres amarelos da província de Liyang Chen tornou-se a primeira a receber a certificação. A empresa utiliza rações produzidas apenas com produtos de soja certificada, o que constitui um bom exemplo de produtores de soja implementando a sustentabilidade em sua cadeia de produção.

O mundo pode continuar a olhar para a soja apenas como uma commodity. No entanto, a recuperação da reputação como uma proteína saudável e nutritiva tem permitido a Heilongjiang diferenciar seus grãos e tornar-se cada vez mais atraente.

Enquanto a indústria continua a evoluir e a moldar sua dupla identidade, ambos os lados da história têm dado maior ênfase ao bem-estar humano aliado à proteção ambiental para contribuir com os objetivos da China de alcançar sua neutralidade de carbono.

As tendências na China sem dúvida têm um impacto global, criando novas e mais oportunidades de valor agregado para os produtores de soja em todo o mundo. Na complexa e fragmentada cadeia global da soja, os países produtores estarão em vantagem quando puderem diferenciar os grãos de soja por origem e garantir que sejam seguros e verdes. Garantir padrões internacionais e rótulos ecológicos trará valor agregado e estabelecerá a ligação entre os produtores e os mercados-chave como a China.