Agricultura

Plano para agroindústria argentina lança dúvidas sobre metas climáticas

Acordo entre governo e líderes do agronegócio deve aumentar produção e exportação agrícola, mas preocupa ambientalistas sobre impacto em redução de emissões
<p>Um trem de carga que passa ao longo da rodovia Rota 16 coleta grãos de um silo na província de Chaco, Argentina (imagem: Arterra Picture Library / Alamy)</p>

Um trem de carga que passa ao longo da rodovia Rota 16 coleta grãos de um silo na província de Chaco, Argentina (imagem: Arterra Picture Library / Alamy)

A Argentina pretende impulsionar a produção e exportação de produtos agrícolas ao longo da próxima década a partir de um novo plano que prevê incentivos ao agronegócio.

Em 11 de novembro, o governo argentino apresentou à Câmara de Deputados um projeto de lei que estabelece uma série de benefícios para atrair investimentos à agroindústria. O plano, que ainda será debatido no Congresso, foi criado como resultado de um acordo entre o governo do presidente Alberto Fernández e os principais líderes do agronegócio. 

A indústria estima que as medidas promovam um aumento de US$ 7 bilhões nas exportações e criem 150 mil empregos no país. Entretanto, ambientalistas expressaram preocupação com o impacto que isso teria no cumprimento das metas de redução de emissões de gases do efeito estufa pela Argentina.

Incentivos ao agronegócio argentino

Para atingir seus objetivos econômicos, o plano de promoção oferece os seguintes benefícios: o rápido retorno dos investimentos no agronegócio ao permitir maiores deduções fiscais nos primeiros anos; uma recuperação mais cedo do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA); e os pagamentos adiados do imposto de renda para a pecuária.

De acordo com o setor agroindustrial, esses benefícios promoveriam o investimento em melhores insumos e tecnologias, o que permitiria o aumento da produção.

150,000


É o número de empregos que se espera criar com o plano, segundo o setor agrícola

O projeto é o resultado de um acordo entre o governo e o Conselho Agroindustrial Argentino, uma coalizão de mais de 60 instituições rurais, que visa “consolidar a Argentina como líder no comércio internacional de alimentos de fonte animal e vegetal, na alimentação animal e como exportadora de tecnologias agroalimentares”, segundo sua própria definição.

A iniciativa também conta com o apoio dos principais partidos de oposição e, se aprovada, pode garantir um marco de estabilidade para o setor, beneficiando pequenas, médias e grandes empresas, além de produtores do país. A agricultura é responsável por 7 de cada 10 dólares (US$) que entram na Argentina por meio de exportações.

As culturas representam dois terços da produção agrícola total da Argentina, com cerca de 100 milhões de toneladas por ano destinadas ao comércio exterior (principalmente soja, milho, trigo e girassol), enquanto a produção de carne e laticínios constitui o terço restante. Nos primeiros seis meses de 2021, a participação do setor nas exportações do país atingiu os 67% e representou uma renda total de cerca de US$ 24 bilhões.

Acolhido pelo agronegócio

“Acreditamos que este esquema de promoção permitirá a compra de mais máquinas e equipamentos, mais fertilizantes e mais sementes com uma genética melhor, e tudo isso levará ao aumento da produção com uma menor carga tributária”, disse Julio Calzada, diretor de estudos econômicos da Bolsa de Valores de Rosário.

Elbio Laucirica, presidente interino da Coninagro, uma organização que reúne cooperativas do setor agrícola, acredita que a lei, se aprovada, “colocará a Argentina em condições muito mais vantajosas e em posição privilegiada no mundo, não apenas na geração de divisas, como de empregos em todo o país, com um impacto positivo nas economias regionais”.

Alfredo Paseyro, diretor executivo da Associação Argentina de Sementes (ASA), disse que a iniciativa “não resolve todos os problemas da agroindústria, mas a perspectiva do projeto é positiva, pois incentiva o investimento produtivo agroindustrial com diferentes incentivos”.

O objetivo inicial da ASA era muito mais ambicioso do que a proposta inicial do governo, disse Paseyro, mas “tínhamos que buscar pontos de acordo”. Duas das questões que ficaram de fora foram a redução ou eliminação das taxas de exportação e a melhoria nas taxas de câmbio.

Paseyro espera que a proposta seja tratada no Congresso “o mais rápido possível” e está confiante de que o projeto pode ser melhorado durante o debate parlamentar “sem que isto signifique modificar o que foi acordado com o governo”.

Agricultura sustentável?

Embora o plano tenha “sustentabilidade” no título, alguns o questionaram no contexto da crise climática — agricultura, pecuária, exploração de florestas e outros usos da terra são responsáveis, de forma conjunta, por 37% das emissões de gases de efeito estufa da Argentina, de acordo com o último inventário oficial.

Em suas contribuições nacionalmente determinadas (CNDs), a Argentina se comprometeu a não exceder as emissões líquidas de 349 megatoneladas de dióxido de carbono até 2030, o que representa um corte total de 19% das emissões do pico histórico alcançado em 2007.

A Argentina também se comprometeu com a neutralidade de emissões até 2050. De fato, o governo pretendia apresentar seu plano para as metas na recente conferência sobre as mudanças climáticas, a COP26, mas não o fez, após a oposição do agronegócio contra metas mais ambiciosas nos dias que antecederam a cúpula.

O aumento previsto na produção “está em clara oposição ao objetivo argentino de neutralidade de carbono até 2050”, escreveu a organização Fundação Ambiente e Recursos Naturais (Farn).

María Marta Di Paola, diretora de pesquisa da Farn, disse que a proposta do governo “representa um aprofundamento do modelo agroindustrial e de seus impactos ambientais”.

“Neste contexto [da mudança climática], o agronegócio é uma vítima, porque sofre com devastadoras secas e inundações, e é um vitimizador, porque é o segundo setor que mais gera emissões de gases de efeito estufa”, afirmou.

Temos que rever este modelo como o conhecemos, que vê o avanço das fronteiras agrícolas sobre as florestas nativas e zonas úmidas

Segundo Di Paola, “temos que rever este modelo como o conhecemos, que vê o avanço das fronteiras agrícolas sobre as florestas nativas e zonas úmidas”.

As florestas e as zonas úmidas são importantes reservatórios de dióxido de carbono, o principal gás do aquecimento global. Estima-se que cerca de 20% das emissões globais têm origem no desmatamento. Entre 1998 e 2018, 5,8 milhões de hectares foram desmatados na Argentina.

“Além disso, os impactos socioambientais do uso de agrotóxicos sobre a saúde humana, cursos d’água e solo precisam ser revistos”, acrescenta Di Paola. Na Argentina, cerca de 500 milhões de litros de agrotóxicos são utilizados a cada ano, segundo estimativas da organização Natureza de Direitos.

A Farn acredita que o projeto de lei deve ser submetido a uma consulta pública, na qual diferentes atores possam expressar suas preocupações ambientais.

“Acreditamos ser essencial promover a agroecologia, que pode mitigar os impactos ambientais do modelo agroindustrial”, concluiu Di Paola.

A agroecologia promove a produção agrícola que conserva os recursos naturais básicos para a produção de alimentos, tais como o solo, a água e a biodiversidade. Na Argentina, é promovida por várias organizações, como a União de Trabalhadores da Terra (UTT), que reúne cerca de 22 mil fazendas da agricultura familiar em 18 províncias.

Para Agustín Suárez, porta-voz da UTT, o novo plano agroindustrial do governo “continua a aprofundar o modelo agroexportador e o lobby das empresas que detêm monopólios”. Suárez também propôs uma expansão da agroecologia e cobrou uma nova estrutura para o planejamento do uso da terra no setor agrícola.

“É uma promoção da agricultura intensiva, com maior uso de sementes transgênicas e agrotóxicos, e a expansão da fronteira agrícola em detrimento de florestas e comunidades — exatamente como vêm fazendo há quatro décadas”, diz Suárez.

​​Perspectivas da agroindústria

Elbio Laucirica, da Coninagro, afirmou que, para aumentar a produção agroindustrial, não é preciso expandir a área das fazendas, mas sim “investir em tecnologia” e que a nova iniciativa facilitaria tal investimento.

Enquanto isso, Julio Calzada, da Bolsa de Valores de Rosário, destacou que o setor agroindustrial está ativamente envolvido na redução e mitigação de suas emissões.

Calzada destacou dois programas: o Programa Argentino de Carbono Neutro, que calcula a pegada de carbono de cada setor e certifica o balanço de carbono dos produtos de exportação; e o programa Visão Setorial do Gran Chaco (Visec), que visa reduzir a destruição do bioma com certificações de produtos “livres de desmatamento” para os mercados internacionais.

Alfredo Paseyro, da Associação Argentina de Sementes, disse que o setor está “comprometido com a sustentabilidade, com boas práticas e com o cumprimento das normas internacionais e das exigências dos compradores, que estabelecem suas próprias condições e padrões ambientais”.

“Na zona rural, costumamos dizer que estamos tomando emprestadas as terras que temos que deixar para nossos filhos, e isso é uma responsabilidade que vai além de qualquer manual de boas práticas ambientais”, concluiu Paseyro.

Para Laucirica, o setor enfrenta grandes desafios: “Temos que sensibilizar e treinar os produtores. Precisamos que o Estado realize a fiscalização necessária e nos certifique, para que a sociedade esteja convencida de que estamos fazendo as coisas da forma certa”.