Agricultura

Como a agricultura da América do Sul está se adaptando às mudanças climáticas

Região avança com sistemas resilientes de produção. Analisamos casos de sucesso que incorporam infraestrutura, tecnologia e novas formas de organização
<p>Joaquín Jara, membro da comunidade Mapuche Mallao Morales, na província argentina de Neuquén. O uso eficiente da água e descontaminação são dois dos pontos-chave do projeto Resilientes (Imagem: Paula Aguilera &#8211; INTA)</p>

Joaquín Jara, membro da comunidade Mapuche Mallao Morales, na província argentina de Neuquén. O uso eficiente da água e descontaminação são dois dos pontos-chave do projeto Resilientes (Imagem: Paula Aguilera – INTA)

“Tivemos alguns anos muito complicados, com tempestades muito fortes que destruíram tudo e secas que não nos permitiram plantar nada”, disse Sandra Cruz, produtora de horticultura há mais de 20 anos em La Plata, Argentina.

Aumento de temperaturas, eventos extremos frequentes e mudanças nos padrões de chuva são alguns dos efeitos que a crise climática infringe sobre a América Latina, continente que oferece, junto com o Caribe, 14% da produção mundial de alimentos e cuja agricultura enfrenta desafios para a adaptação às mudanças do clima.

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Segundo a Organização Meteorológica Mundial, a América Latina é uma das regiões “mais desafiadas” por eventos extremos, responsáveis por “perdas ou danos de infraestruturas essenciais (…), escassez de água e energia, migrações forçadas e riscos à segurança, saúde e aos meios de subsistência das pessoas”.

Diante disso, avançar rumo a sistemas agrícolas mais resilientes é fundamental. Na região, iniciativas de pequenos e grandes produtores já demonstraram eficácia e vêm se tornando cada vez mais frequentes. Especialistas, por sua vez, cobram políticas públicas que de fato levem a mudanças estruturais.

Casos de sucesso na América do Sul

Um projeto de adaptação com destaque é o Resilientes, focado na produção familiar em pequena escala de alimentos em regiões vulneráveis às mudanças climáticas da Argentina e Colômbia. Ela é financiada pela União Europeia.

Nos últimos dois anos, estatais de ambos os países trabalharam com 190 famílias em quatro regiões (Córdoba, La Plata e Patagônia, na Argentina, e Caquetá, na Colômbia) para reduzir a vulnerabilidade de sistemas alimentares e fortalecer estratégias de adaptação ao clima.

Antonio Solarte, do Centro Colombiano de Pesquisa em Sistemas de Produção Agrícola Sustentável (Cipav), foi o responsável pelo projeto Resilientes na Colômbia. Ele trabalhou com pequenos e médios pecuaristas, que eram bastante vulneráveis a enchentes e secas. Em um processo colaborativo, eles identificaram 40 possíveis medidas de adaptação, das quais 23 foram implementadas — muitas delas relacionadas ao manejo da água.

Produtora de horticultura trabalha em um campo em La Plata, Argentina.
A produtora agrícola Eva Chulqui é uma das 34 famílias do projeto Resilientes em La Plata, Argentina (Imagem: Paula Aguilera - INTA)

“Trabalhamos para a conservação de fontes de água, restauração de ecossistemas, reflorestamento, uso eficiente da água, construção de sistemas de abastecimento para o gado, captação de água em momentos críticos, descontaminação da água utilizada para a pecuária e a construção de biodigestores de baixo custo para produzir energia renovável”, disse Solarte ao Diálogo Chino.

Para mim, ser resiliente significa voltar à vida

Tudo isso foi acompanhado por medidas para organizar a vida comunitária, como o reparo de estradas rurais, a criação de comitês de trabalho e a otimização do acesso a alertas meteorológicos.

Já em La Plata, na Argentina, a designer industrial Edurne Battista compartilha sua experiência com famílias agricultoras. Na região, comunidades têm enfrentado  tempestades cada vez mais frequentes, que danificam instalações e causam cortes de energia, danificando os sistemas de irrigação.

“As famílias percebem que há cada vez mais tempestades, com muito vento e chuva, e invernos mais curtos e mais fracos — e podemos corroborar isso com dados científicos. Em resposta, buscamos estratégias de adaptação”, disse Battista.

Uma das soluções que a comunidade adotou foi construir novos reservatórios para garantir o abastecimento de água, mesmo quando há quedas de energia. Além disso, moradores também receberam treinamento sobre a restauração do solo para reduzir a dependência de agrotóxicos, práticas agroecológicas e diversificação de culturas. O projeto beneficia diretamente 34 famílias e indiretamente outras 400.

“Estamos fazendo adubo verde, sem agrotóxico, que tem tido bons resultados. Isso nos permite deixar de comprar insumos em dólar. Eles também nos ensinaram a produzir sementes, o que nos poupa dinheiro”, diz Sandra Cruz, produtora de hortifrutigranjeiros. “Para mim, ser resiliente significa voltar à vida”.

Preenchendo a lacuna digital

Garantir acesso a informações atualizadas e em tempo real é fundamental para melhorar a capacidade de adaptação de famílias agricultoras às mudanças climáticas.

Esse é o objetivo do projeto Nanum Mujeres Conectadas, que visa impulsionar a conectividade e a alfabetização digital entre agricultoras e promover seu papel como agentes de mudança. O projeto Nanum está sob o guarda-chuva do Gran Chaco Proadapt, iniciativa que busca aumentar a resiliência climática no bioma ameaçado.

Marcela Zamora é responsável pelo projeto Proadapt no departamento boliviano de Tarija, próximo às fronteiras do Paraguai e da Argentina. Lá, ela trabalha com mulheres de seis comunidades rurais, que foram treinadas para usar diferentes hardwares, equipadas com as melhores conexões de internet e auxiliadas na busca de informações úteis.

vista aérea del gran chaco
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“Nós nos concentramos em trabalhar com mulheres porque são elas que normalmente organizam a vida das comunidades. A principal ferramenta que oferecemos é a conectividade, sem a qual é impossível entender as mudanças no território hoje”, disse.

Zamora lembrou que o Gran Chaco é altamente vulnerável às mudanças climáticas e tem sido duramente atingido por incêndios florestais nos últimos anos. Em um cenário de maior incerteza climática, o acesso rápido a boas informações torna-se essencial.

“A conectividade é uma necessidade básica e que não é atendida nas áreas rurais da Bolívia. É uma ferramenta que permite o acesso a muitos outros direitos”, avaliou Zamora.

Mais gestão, melhor adaptação às mudanças climáticas

Franco Bardeggia é agrônomo e coordena um grupo regional do sistema “Chacras”, da Associação Argentina de Produtores de Semeadura Direta, na província de Córdoba, na região central da Argentina. Nessa região, produtores de soja e milho sofrem há anos com o excesso de água causado pela elevação de lençóis freáticos, o que resulta em inundações e enchentes.

“Nos últimos anos, a precipitação anual aumentou entre 100 e 200 milímetros. Isso, juntamente com práticas inadequadas, causa problemas recorrentes de excesso [de água], que afetam a produção”, disse Bardeggia.

Uma pessoa com um boné vermelho em uma floresta fazendo anotações
O engenheiro florestal Martín Zárate avalia os danos ambientais gerados pelo incêndio em Villa Dolores, Córdoba, em 2019 (Imagem: Estação Florestal INTA Villa Dolores, Córdoba)

Rever práticas insustentáveis, aumentar a capacidade de gestão e conhecimento, além de ter uma visão “holística” da agricultura são apenas algumas estratégias de adaptação com as quais Bardeggia trabalha. E ele não está só: junto de 35 pequenas e grandes empresas da região, eles cobrem uma superfície de cerca de 100 mil hectares.

Estamos saindo da chamada produção baseada em insumos para a produção baseada em processos, que dá mais atenção à gestão, conhecimento e técnica

“Também fizemos um certa autocrítica, pois antes os campos eram de sistemas mistos de pecuária e agricultura, e as pastagens consumiam mais água. Depois que a pecuária desapareceu e tínhamos apenas a agricultura, era hora de repensar a gestão”, explicou.

Isso significa agregar culturas que melhorem a proteção e qualidade do solo.

“As mudanças climáticas têm um impacto crescente sobre o desempenho do setor agrícola. É por isso que estamos saindo da chamada produção baseada em insumos para a produção baseada em processos, que dá mais atenção à gestão, conhecimento e técnica”, resumiu Bardeggia.

Segundo especialistas ouvidos pelo Diálogo Chino, o grande desafio para a América Latina é dar um salto de escala. Somente assim os projetos de adaptação e resiliência no setor agrícola vão deixar de ser exceção e se tornar políticas estatais de amplo alcance.

“Precisamos dar um salto de escala e isso tem que ser uma decisão política porque requer investimento e recursos”, disse Solarte, da Cipav. Ele acredita que projetos como o Resilientes são importantes “porque mostram que existem alternativas viáveis”.