Clima & energia

O polêmico referendo para reativar a represa boliviana de Rositas

Enquanto Evo Morales ressuscita uma polêmica hidrelétrica chinesa, comunidades locais renovam sua luta contra ela.
<p>Uma parte do rio Grande que passa pela comunidade indígena Tatarenda Grande, que ficará debaixo d&#8217;água com a construção da represa Rositas. Foto: Miriam Telma Jemio.</p>

Uma parte do rio Grande que passa pela comunidade indígena Tatarenda Grande, que ficará debaixo d’água com a construção da represa Rositas. Foto: Miriam Telma Jemio.

Quando o presidente boliviano Evo Morales propôs, no último 31 de dezembro, um referendo para reativar o projeto hidrelétrico de Rositas, sua aposta era que a iniciativa ajudasse o país a depender menos de combustíveis fósseis. A hidrelétrica ampliaria ainda a oferta de água e energia para a população, e de quebra limparia a matriz energética do país.

Mas um conflito com as comunidades do departamento de Santa Cruz, onde a hidrelétrica seria construída, pode azedar os planos de Morales. Moradores da comunidade não aceitam ser removidos pelo projeto, e o conflito corre o risco de escalar. Enquanto isso, ambientalistas, de quem o presidente esperava elogios, criticam a falta de transparência do projeto.

O projeto de Rositas

Gerar energia é uma prioridade para Santa Cruz. Com 3,2 milhões de habitantes, o departamento é o mais povoado da Bolivia, e sua demanda por energia é crescente.

O projeto de Rositas, promovido pelo governo federal e executado pela estatal Empresa Nacional de Eletricidade (ENDE), causaria fortes impactos socioambientais, como o reassentamento de ao menos 12 comunidades que vivem da pecuária leiteira e da agricultura. Três anos atrás, essas 500 famílias começaram a manifestar sua oposição à possibilidade de abandonar as casas que ocupam há 40 anos para se mudar para outra região.

Enquanto isso, para o governo de Morales, trata-se de um projeto de prioridade nacional que começou a ser projetado nos anos 1970, mas não havia sido concretizado.

Em 2016, o governo outorgou a construção do projeto ao consórcio Asociación Accidental Rositas (AAR). Ele é formado pela empresa estatal chinesa Three Gorges Corporation – conhecida pela construção da gigantesca represa das Três Gargantas, a maior do mundo –, por sua subsidiária China International Water & Electric e pela boliviana Empresa Constructora Reedco SRL. O investimento alcançaria os 1,3 bilhão de dólares, 80% dos quais seriam garantidos por meio de um crédito concedido pelo banco estatal chinês Eximbank.

A assinatura do contrato entre a estatal boliviana ENDE e o consórcio chinês AAR. Foto: ENDE

Em várias ocasiões, o governo de Morales reforçou a importância da represa. Após advertir que poderia transferir os recursos de Rositas a outros departamentos (prejudicando a região de Santa Cruz), em 31 de dezembro de 2018 o presidente boliviano decidiu resgatar o projeto.

“Se há algumas famílias que se opõem, por que não realizamos um referendo e perguntamos ao departamento se a represa deve ou não ser construída?”, questionou Evo em um evento com empresários na capital do departamento, Santa Cruz de la Sierra.

As comunidades locais rejeitaram a proposta imediatamente.

“Um referendo não é a medida adequada para um projeto como esse. Eles tinham a oportunidade de fazer a consulta prévia, livre e informada. Um referendo não faz sentido porque se trata de uma propriedade privada”, disse Benigno Barrientos, representante de Moroco, uma das 12 comunidades que serão afetadas pela represa.

“Eles só falaram dos benefícios da energia, querem garantir água para o consumo de Santa Cruz e para a irrigação, mas não comentam os danos que o projeto causará, muito menos mencionam uma possível compensação. Rejeitamos [o projeto] por que não há transparência”, explicou José Luis Sandoval, presidente do Comitê de Defesa Terra e Território, que reúne as comunidades afetadas.

As comunidades contra o projeto Rositas

Rositas foi projetada para gerar cerca de 600 megawatts de energia, o que equivale a metade do consumo de todo o país. A hidrelétrica alimentará uma rede nacional que hoje gera 1,4 mil MW (superando em 200 MW a demanda atual do país).

Contudo, a ambição do projeto é ainda maior. Trata-se de uma peça fundamental da Agenda Patriótica 2025, o plano de Morales para tornar a Bolívia um centro energético da região com a geração de 3 mil MW de energia, que seria exportada para a Argentina e para o Brasil.

Rositas, que será construída a cerca de 140 quilômetros de Santa Cruz de la Sierra, seria a primeira de sete hidroelétricas na bacia do rio Grande, que nasce no centro do país e corre até a bacia do Amazonas. Além de gerar energia, a represa permitiria irrigar 16 mil hectares de produção agrícola, abasteceria a cidade de Santa Cruz com água potável e diminuiria o risco de inundação na zona situada abaixo da represa, segundo o ex-ministro de Energia Luis Alberto Sánchez.

Até agora, nem a ENDE nem o governo Morales revelaram qualquer informação sobre o potencial impacto do projeto. Mas o resumo executivo do estudo de projeto final – ao qual a ONG Fundación Solón teve acesso – menciona uma área de influência direta de 452 quilômetros quadrados, distribuída entre cinco municípios: Gutiérrez y Cabezas (na província Cordillera), Postervalle e Vallegrande (na província Vallegrande), de Santa Cruz, e Villa Vaca Guzmán, no departamento vizinho de Chuquisaca.

A preocupação dessas 12 comunidades campesinas surgiu em 2012, quando um primeiro estudo de viabilidade revelou que a área inundada seria de ao menos 45 mil hectares.

Os guaranis de Yumao são uma das três comunidades indígenas que dizem não ter sido consultadas. Foto: Suceth Rodríguez.

Entre as preocupações está a perda da infraestrutura existente, como escolas, estradas e fiações elétricas. Por exemplo, a ponte construída sobre o rio Grande e na qual o governo investiu 38 milhões de pesos bolivianos (cerca de 5,5 milhões de dólares) e que está pronta para entrega, encontra-se exatamente na zona que será inundada, alerta a ONG Probioma, que trabalha com comunidades indígenas em questões agrícolas. Segundo a ONG, a ponte, que une os municípios de Vallegrande e Gutiérrez, foi vendida pela Autoridade Boliviana de Estradas como uma solução viária que permitirá o transporte de produtos como milho, batata, amendoim, hortaliças e verduras até Santa Cruz, a segunda maior cidade do país.

Por todos esses motivos, a população formou o Comitê de Defesa de Terra e Território das Comunidades Afetadas pelo Projeto Rositas. Em dezembro de 2016, reunido na comunidade indígena Tatarenda Nuevo, o comitê votou pelo repúdio à construção da represa devido aos impactos diretos e indiretos sobre as populações.

A principal reclamação até agora é que, apesar de três comunidades serem indígenas guaranis, não houve um processo de consulta prévia e informada junto a elas, como estabelece a Constituição boliviana e como recomenda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos de povos indígenas – uma ironia no único país da América Latina com um presidente indígena.

Frente ao que descrevem como uma falta de resposta a seus pedidos por informação sobre os impactos da Rositas e sobre possíveis soluções, em maio de 2017 o Comitê decidiu não atender mais às iniciativas de divulgação do projeto por parte governo.

A partir desse momento, a luta das comunidades se tornou jurídica. Em março de 2018, as comunidades guaranis de Tatarenda Nuevo e Yumao iniciaram uma ação popular contra a execução do projeto por violar seu direito à consulta prévia.

Após passar por três tribunais distintos, um juiz indeferiu a ação legal com o argumento de que “os requerentes não podem ser considerados afetados quando não existe um código, um projeto”. Segundo ele, “mal poderiam alegar impacto sem considerar a conclusão dos estudos que deve tramitar pela ENDE como ato prévio à consulta”.

O problema é que esses estudos não foram publicados ou ainda estão sendo realizados.

O primeiro, o estudo final que estabelece a área afetada, foi realizado pela empresa Eptisa mas até hoje não está disponível ao público. O segundo, a avaliação de impacto ambiental, é incerto. Em agosto de 2017, a realização do estudo foi assignada à filial da ENDE Corani SA. Um ano e meio depois, ainda não se sabe se já foi concluído.

Finalmente, o estudo para o projeto de irrigação que permitirá irrigar 165 mil hectares agropecuários, foi dado em janeiro de 2018 ao consórcio espanhol Inclam SA por 2,4 milhões de dólares, com recursos do Banco de Desenvolvimento da América Latina – CAF. O estudo será finalizado em fevereiro de 2019.

Segundo os indígenas, quando a ação popular foi iniciada, a justiça não levou em conta os documentos que provam que eles serão afetados pela inundação, nem que um dos resultados será o que eles chamam de “reassentamento involuntário”.

Benigno Barrientos e camponeses de 12 comunidades temem perder os cultivos que lhes sustentam. Foto: Miriam Telma Jemio.

A isso se soma a preocupação dos cientistas ambientais com o impacto que o projeto poderia ter sobre certos ecossistemas bolivianos, como os bosques úmidos da bacia do rio Grande, sobretudo as três áreas protegidas que estariam dentro da zona prevista para a hidroelétrica (o Parque Nacional Serranía del Iñao, a Área de Manejo Integrado Rio Grande – Valles Cruceños e a Área Protegida Municipal Parabanó).

“As áreas protegidas têm legislação prevista na constituição boliviana e outras normas que, dependendo de sua importância, impedem a realização de projetos que seriam permitidos no resto do país. Assim, nenhum referendo deve tratar de algo que é ilegal, ou seja, a realização de uma obra de infraestrutura ou qualquer obra pública que afete a função para a qual a área foi criada”, afirma a pesquisadora ambiental Cecilia Requena, coautora do livro Bolívia em um mundo 4 graus mais quente.

Energia mais limpa para Santa Cruz

O grande atrativo de Rositas é a possibilidade de transformar de modo significativo a matriz energética da Bolívia.

Segundo o governo, a construção de hidrelétricas como essa permitiria a substituição da energia de combustíveis fósseis, como o gás natural e o diesel, por fontes renováveis como a água, contribuindo para a redução na emissão de gases de efeitos estufa – que são responsáveis pelas mudanças climáticas. Atualmente, cerca de 75% da energia elétrica consumida na Bolívia é produzida por centrais termoelétricas à base de gás natural e diesel.

Por isso, a oposição do Comitê de Defesa ao projeto é incômoda para o governo Morales.

“Invocamos o departamento de Santa Cruz a defender esse projeto, o sonho dos velhos anciãos”, afirmou o ministro de Energia Rafael Alarcón, descrevendo os autores da ação judicial como “pessoas más”.

Tanto a ENDE como o Ministério de Energia e o governo de Santa Cruz dizem que levantarão dados para revelar quem deveria ser compensado, enfatizando que o componente sócio-ambiental do projeto inclui medidas de prevenção e mitigação ambiental.

Os camponeses de Vallegrande se opõem à perda da ponte do rio Grande em processo de construção. Foto: Caminos del Chaco.

A população, no entanto, sente que as informações disponíveis são excessivamente vagas.

“Não conhecemos nenhuma proposta. Não temos por que aceitar se não temos conhecimento de nada”, explica Benigno Barrientos, vice-presidente do Comitê de Defesa. “Em nenhum momento nos foi mostrado o melhor ou o pior. Que proprietário vai abrir mão de seus bens sem conhecer a proposta?”, enfatizou.
Segundo os membros do Comitê, mais que o referendo proposto por Evo, é preciso realizar um processo sério de consulta prévia, tanto junto às comunidades indígenas como aos camponeses da região.

“Nossa postura é que qualquer consulta que se pretenda realizar já está atrasada, considerando que a consulta a povos indígenas é de caráter prévio. A consulta a todos os cidadãos ou bolivianos violaria, entre outros direitos, nossa livre determinação”, argumenta Ena Taborga, representante dos indígenas guaranis de Tatarenda Nuevo.

“[A consulta] já não foi prévia. Esse direito foi violado e não se faz nada para ressarci-lo”, concorda Sara Crespo, pesquisadora da ONG Probioma.

Muitos também desconfiam de que o governo não venha a aceitar o resultado, caso este seja contrário às aspirações de Morales, como aconteceu com o referendo nacional de fevereiro de 2016 que em teoria fechava as portas para um quarto mantado presidencial de Morales – algo que o presidente buscará este ano.

Dentro do governo, acredita-se que o referendo seria aprovado, mas os funcionários insistem na importância de considerar outras alternativas de acordo.

“Os distintos níveis do governo e a população afetada devem concordar em buscar soluções para evitar a realização de um referendo, que sabemos que será positivo, porque ninguém vai se opor à geração de 200 hectares de irrigação, a gerar energia, a ter transporte elétrico público e privado. O referendo é menos importante do que a análise e o impacto do projeto”, afirma José Luis Parada, assessor geral do Governo de Santa Cruz.

Por ora, não há novas informações. O Ministério de Energia não respondeu ao pedido de informação de Diálogo Chino sobre o que será feito para viabilizar a proposta de referendo. O órgão limitou-se a afirmar que está coletando dados sobre as características hídricas do projeto.

Enquanto isso, em 4 de fevereiro último, um grupo de indígenas de 11 regiões da Bolívia que são contrários a projetos extrativistas iniciou uma caminhada de Sucre a La Paz, onde fica a sede do governo federal. Entre os manifestantes, estão os opositores de hidrelétricas como a Rositas.

“Nenhum habitante de Santa Cruz, nenhum boliviano, vai gostar que o governo anule seus direitos. Durante três anos, pedimos para ter acesso às propostas, mas eles não têm nada”, explica Benigno Barrientos.