Água

Críticas ao estudo ambiental do Canal da Nicarágua indicam falhas científicas e técnicas

Especialistas encontram conclusões “cientificamente indefensáveis” no estudo

Em uma cerimônia privada realizada na noite de 31 de maio na cidade de Manágua, executivos da consultoria ambiental britânica Environmental Resources Management (ERM) reuniram-se com os diretores do Grupo HKND, empresa de infraestrutura sediada em Hong Kong que planeja a construção de um canal interoceânico na Nicarágua. O evento teve como finalidade a entrega oficial de um estudo ambiental às autoridades nicaraguenses. No documento, elaborado em 14 volumes, foram analisadas as consequências da construção de uma nova e colossal hidrovia cortando a América Central. No dia seguinte, em um evento de imprensa televisionado, uma cópia completa do Estudo de Impacto Ambiental e Social para o Canal da Nicarágua foi exibida em uma pequena mesa, disponibilizada aos fotógrafos da imprensa. A ERM e os executivos da HKND apresentaram um discurso alinhado com o das autoridades da Nicarágua, afirmando que a construção do canal é segura e viável e defendendo a qualidade da avaliação ambiental. O governo e a HKND veem o documento, que não está disponível para consulta pública, como argumento fundamental para o início das escavações – possivelmente ainda neste ano. “O estudo tem como finalidade fornecer uma avaliação objetiva e atualizada, baseada em conhecimentos científicos”, declarou aos repórteres Manuel Coronel Kautz, presidente da Autoridade do Grande Canal Interoceânico da Nicarágua. Edwin Castro, oficial sandinista de alto escalão, acrescentou que “este foi um trabalho de mais de dois anos, realizado pela ERM com os recursos científicos e a seriedade da empresa”. No entanto, nem a qualidade dos dados da consultoria ambiental, nem a exatidão de suas conclusões sobre os danos potencialmente causados pela construção e operação do canal são tão inquestionáveis quando afirmam as autoridades da Nicarágua e os diretores da HKND. Em março, a ERM convidou 15 cientistas ambientais e especialistas em projetos desta natureza para uma reunião em Miami, onde eles passaram dois dias analisando quatro capítulos do estudo ambiental. Na avaliação resultante, de 11 páginas, obtida pelo portal Circle of Blue, os membros do painel concluíram que o estudo da ERM contém várias falhas significativas. Os membros do painel expressaram frustração, considerando insuficientes os dados levantados quanto a aspectos como qualidade da água, geologia, sedimentos, espécies da fauna e flora, erosão e criadouros de peixes. Os especialistas lamentaram a superficialidade da análise feita pela ERM sobre os dados que chegou a coletar. Em diversos pontos do relatório, o painel faz duras críticas à consultoria, chamando de “indefensáveis”, “implausíveis”, “equivocadas” e “não realistas” suas conclusões científicas. Os membros do painel especial, provindos em sua maioria de universidades americanas, também questionaram fortemente a real viabilidade da construção e operação do canal, que deverá custar US$ 50 bilhões e ter 278 quilômetros de extensão. As questões mais preocupantes, disseram os membros do painel, envolvem o entendimento sobre a geologia existente sob o Lago Nicarágua; a forma de disposição do 1,1 bilhão de toneladas de sedimentos finos (silte) que seriam removidos do lago para a construção de hidrovias com quase 28 metros de profundidade e até 520 metros de largura; e a disponibilidade de água em quantidade suficiente para a operação de dois conjuntos de comportas, caso ocorram os prolongados períodos de extrema seca previstos na região como resultado das mudanças climáticas. “Me pareceu que o processo do estudo de impacto ambiental foi feito para criar uma base científica ilusória”, disse Michael T. Brett, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), em entrevista ao Circle of Blue. “Eu fiquei com a impressão que a maioria das seções apresentadas a nós tinham a qualidade de uma tese de mestrado que seria considerada fraca em qualquer grande universidade de pesquisas. Em vários momentos, nós perguntávamos, ‘Isto não poderia ter sido feito de um jeito melhor?’ Não foi um trabalho muito bom.” Conforme revelado nas entrevistas, os membros do painel também se perguntaram se as deficiências do estudo comprometeriam a reputação mundial da ERM, reconhecida pelo rigor e pela alta qualidade de seu trabalho. Ao ser perguntado sobre isso, David Blaha, sócio-diretor na sede da ERM em Londres, encaminhou o seguinte e-mail como resposta ao Circle of Blue: “Como vocês talvez já saibam, a ERM patrocinou o painel de especialistas. Não tínhamos a obrigação de fazer isso, mas acreditamos que um projeto desta magnitude mereça uma análise como essa, de alto nível. Nós da ERM estamos gratos pelos comentários que recebemos do painel e respondemos a todos eles no Estudo de Impacto Ambiental e Social [ESIA, na sigla em inglês]. No nosso entendimento, o ESIA é um documento robusto e faz uma análise objetiva dos efeitos do projeto. Eu os incentivo a analisá-lo (ou, pelo menos, seu sumário executivo), quando se tornar disponível, antes de tirar qualquer conclusão sobre o estudo.” A ERM responde O Circle of Blue também obteve uma cópia da resposta da ERM ao painel especial. O documento, de 16 páginas, foi a única parte do estudo disponibilizada ao público. Em sua resposta, a ERM concordou, de maneira geral, com os pontos fracos apontados pelo painel. Segundo a consultoria ambiental, algumas das análises foram refeitas. Na maioria dos casos, disse, por conta do prazo apertado para a realização do estudo encomendado pela HKND, de apenas dois anos, os pesquisadores muitas vezes não tiveram tempo suficiente para aprofundar o levantamento de dados. A consultoria recomendou que a HKND e as autoridades nicaraguenses contratassem pesquisas que respondessem às questões levantadas não apenas pelo painel especial, mas também por diversas outras organizações científicas e ambientais, que também realizaram avaliações e fizeram críticas às consequências potencialmente graves da construção do canal sobre os recursos hídricos e as florestas, regiões costeiras, fauna nativa e comunidades humanas. Na forma proposta pela HKND, o Canal da Nicarágua teria uma extensão mais de três vezes maior do que a do Canal do Panamá; incluiria dois monumentais conjuntos de comportas, ainda maiores do que os que estão sendo construídos no Canal do Panamá; exigiria a construção de um lago artificial de 395 quilômetros quadrados; e expulsaria milhares de pessoas de suas casas. Conforme apontado no relatório do painel especial, a área do corredor proposto e os ambientes marinhos costeiros próximos às entradas Pacífica e caribenha do canal sustentam grandes criadouros de peixes e funcionam como reservas de espécies tropicais exóticas de plantas e animais, além de abrigarem dezenas de comunidades indígenas. A ruta proposta do canal. Para ver o mapa na tela inteira clique aqui. Segurança do projeto não é garantida As conclusões do painel também apontam que os quatro capítulos do estudo disponibilizados para análise continham dados “limitados”, no que diz respeito aos habitats florestais e outros recursos essenciais que seriam afetados pelo canal. “Nossa maior preocupação foi a escassez de informações levantadas e apresentadas”, disse Sudeep Chandra, professor adjunto de Ciências Biológicas na Universidade de Nevada, em Reno (EUA), em entrevista cedida ao Circle of Blue. “Não se trata apenas do impacto ambiental. Também há a questão da viabilidade do projeto. Não parece ter havido diligência suficiente para verificar se o projeto é mesmo viável. Ficamos muito surpresos com a falta de resposta a cada um dos pontos que levantamos. Este talvez seja um dos estudos ambientais mais mal-administrados que eu já li.” Uma das principais preocupações do painel é a segurança do Lago Nicarágua, o maior lago da América Central, cujas águas rasas, limpas e bem oxigenadas são utilizadas como fonte de água doce por milhares de pessoas, bem como um próspero criadouro de peixes. A HKND está propondo a escavação de um canal de 105 quilômetros de extensão, atravessando o lago. A nova trincheira seria tão larga e profunda que exigiria um projeto de remoção de sedimentos e lama cinco vezes maior do que foi necessário para a construção do aeroporto próximo à costa de Hong Kong, o maior projeto deste tipo já realizado. De acordo com a proposta da HKND, seriam construídas três ilhas dentro do lago, que receberiam uma parte do material escavado. O resto seria despejado no lago de forma a depositar-se a cada lado do canal escavado, formando bermas de três metros de altura ao longo de toda a sua extensão. O painel de especialistas concluiu que os dados sobre as consequências do despejo de tamanha quantidade de sedimentos no fundo do lago, no que diz respeito ao efeito que teriam sobre os criadouros e a qualidade da água, eram “limitados”. Isto não impediu que os pesquisadores da ERM argumentassem, na versão preliminar do estudo, que “a magnitude do impacto é considerada pequena”. Os 15 membros do painel consideraram absurda tal conclusão. “Este resultado, dizendo que o impacto da escavação teria significância moderada, é cientificamente indefensável”, concluiu o painel em seu relatório. O despejo de uma quantidade tão grande de sedimentos finos em um lago raso turvaria a água, geraria deficiência de oxigênio, introduziria nutrientes que levariam a uma intensa proliferação de algas, danificaria dramaticamente os importantes criadouros de peixes existentes no lago e degradaria seriamente sua qualidade como fonte de água potável. “Esta argila fina provavelmente teria um grande impacto sobre o plano de disposição de sedimentos no lago, gerando um forte comprometimento da qualidade da água”, disse o relatório elaborado pelo painel. Ameaça às tartarugas marinhas O painel também criticou os levantamentos de fauna e flora realizados pela ERM no corredor do canal, considerando-os “sumários e incompletos”. De acordo com os especialistas, os pesquisadores da ERM deram pouca atenção ao efeito que o projeto teria sobre a capacidade migratória dos animais, já que o canal proposto formaria uma nova barreira terrestre. Uma preocupação adicional do painel foram as grandes lacunas na gama de tópicos ambientais que os pesquisadores da ERM escolheram abordar. Por exemplo, a consultoria não levou em consideração o potencial efeito do canal sobre a costa Pacífica da Nicarágua, que é um dos habitats mais importantes do mundo, com praias de desova de quatro das sete espécies existentes de tartarugas marinhas. O governo nicaraguense não tornou público o estudo da ERM, nem deu qualquer indicação de quando irá fazê-lo. Os membros do painel destacaram a extrema importância da liberação dos 14 volumes do estudo para consulta pública. “Este é o problema mais urgente do processo, no curto prazo”, disse Ryan Stoa, advogado e pesquisador na Universidade Internacional da Flórida, que ajudou a organizar o painel de análise independente. “O governo está retendo estas informações. É difícil alguém julgar os méritos do estudo sem ter acesso à pesquisa completa. Na nossa opinião, é alarmante que o governo não tenha divulgado o relatório publicamente ou mesmo indicado uma data para isto. Os dados científicos que nós analisamos tinham problemas, mas eu acredito que a versão final do estudo irá explicitar sérios receios quanto aos impactos do canal. É essencial que o público ganhe acesso a esta pesquisa o mais rápido possível.” “É certo que todos nós ficamos muito preocupados com os potenciais impactos ambientais de um projeto desta magnitude”, acrescentou Adam Henson, membro do painel e diretor técnico da Fauna & Flora International, uma respeitada organização internacional de conservação que tem atuado na Nicarágua desde 1998. “O mais interessante para nós seria a existência de um processo de avaliação ambiental cientificamente robusto e publicamente transparente. Neste momento, esperamos que o estudo seja divulgado em audiência pública, de forma a garantir uma análise científica robusta e uma ampla consulta à comunidade científica da Nicarágua, além da sociedade civil em geral.