Poluição

Por que indígenas Ese Ejja na Bolívia terão que parar de consumir peixe

Mulheres da Amazônia são contaminadas por mercúrio, mas o Estado não está enfrentando a causa — a mineração
<p>Na parte norte da bacia do rio Beni, dragas chinesas, colombianas e bolivianas estão envolvidas na mineração de ouro a céu aberto (Imagem: <span style="font-weight: 400;">Reacción</span> climática)</p>

Na parte norte da bacia do rio Beni, dragas chinesas, colombianas e bolivianas estão envolvidas na mineração de ouro a céu aberto (Imagem: Reacción climática)

No extremo oeste do estado de Beni e ao norte da capital de La Paz, na Bolívia, as florestas amazônicas estão cada vez mais degradadas. Essa área remota, na fronteira com o Peru e o Brasil, era um verdadeiro paraíso antes da corrida do ouro dos anos 1980.

Esse canto da Bolívia é repleto de áreas protegidas, mas isso não impediu a entrada de atividades econômicas, como a mineração do ouro, que trazem impactos negativos a rios, florestas e à população. Comunidades indígenas são as mais prejudicadas devido à sua maior dependência do ambiente natural. E o receio de que a mineração afete seus modos de vida já é uma realidade.

Mulheres com mercúrio

Um estudo recente sobre a exposição de mulheres ao mercúrio nos países produtores de ouro da América Latina — Brasil, Venezuela, Colômbia e Bolívia —, realizado pela Rede Internacional de Eliminação de Poluentes (IPEN) e pelo Instituto de Pesquisa em Biodiversidade (BRI), encontrou níveis alarmantes do metal.

Embora a pesquisa não tenha estabelecido provas conclusivas da causa, a forte atividade mineira nos rios próximos às comunidades dificilmente é uma coincidência. O ouro é encontrado no solo e nos sedimentos. No processo de mineração, o mercúrio ajuda na extração do mineral, mas acaba poluindo a água. Os peixes, por sua vez, o ingerem, e as populações indígenas acabam também contaminadas.

Pessoa que manipula o peixe
Estudos recentes apontam os peixes como a principal fonte de contaminação por mercúrio nas comunidades que vivem na bacia do rio Beni (Imagem: Reacción Climática)

Os pesquisadores coletaram amostras de cabelos de voluntárias em idade reprodutiva de áreas onde há mineração em pequena escala. Na Bolívia, participaram mulheres de duas comunidades do povo Ese Ejja, um grupo étnico amazônico que vive nas florestas cercadas pelo rio Beni. Mineiros da região extraem partículas de ouro de baixa qualidade.

As duas comunidades às margens do rio Beni — Eyiyo Quibo (ao norte de La Paz) e Portachuelo (estado de Pando, fronteira com Beni) — estão a mais de 300 quilômetros de distância. No entanto, apresentaram uma quantidade “extremamente alta” de metal em seus corpos. Foram, inclusive, os níveis mais altos detectados desde que o IPEN iniciou seu programa de biomonitoramento de mercúrio em 2011.

Os dados que recebemos são alarmantes e nos dizem que toda a bacia do rio Beni está comprometida

Para Carmen Capriles, da organização Reacción Climática, que ajudou com o trabalho na Bolívia, existe o risco de que as gerações futuras também possam ser afetadas.

“O mercúrio afeta o sistema nervoso. Presumimos que os peixes estão contaminados. Os dados que recebemos são alarmantes e nos dizem que toda a bacia do rio Beni está comprometida”, disse Capriles ao Diálogo Chino.

A pesquisa do IPEN descobriu que o envenenamento por mercúrio em uma mãe pode resultar em deficiências neurológicas, redução de QI e danos aos rins e ao sistema cardiovascular do feto durante a gravidez.

Limbert Miquere Melchor, presidente da Organização Territorial de Base Eyiyo Quibo, em Rurrenabaque, cidade às margens da floresta amazônica e do rio Beni, diz que duas mulheres em sua comunidade estão “totalmente contaminadas”. Ele acredita que isto tem relação com o consumo de peixe.

Você sabia?


A concentração de metilmercúrio em humanos não deve exceder uma parte por milhão (1 ppm). Nas comunidades Ese Ejja, uma das amostras excedeu os 180 ppm.

Segundo a Agência de Proteção Ambiental dos EUA, a concentração de metilmercúrio em humanos não deve exceder uma parte por milhão (1 ppm). Porém, nessas comunidades na Bolívia, 60 das 64 mulheres participantes excederam em muito esse valor. 

“Uma das amostras excedeu os 180 ppm, o que é alto demais para alguém que não está envolvido em mineração ou em contato constante com mercúrio”, diz Capriles, que reforçou a necessidade de mais pesquisas para estabelecer a mineração como a causa definitiva.

Ese Ejja: um povo pescador

Em seu compêndio de etnias indígenas e ecorregiões da Bolívia, o antropólogo Álvaro Díez Astete explica que os Ese Ejja têm uma forte relação com os rios amazônicos. “A pesca é considerada uma atividade cultural diária das famílias (…), é a base fundamental de sua dieta”, escreveu o pesquisador.

Com base no censo de 2012 e nos números do Instituto Nacional de Estatística, em 2015 havia cerca de 1.687 pessoas que se autodeterminaram como Ese Ejja na Bolívia.

É precisamente na parte norte da bacia de 1178 km do rio Beni, onde dragas chinesas, colombianas e bolivianas mineram ouro a céu aberto.

O homem toca a cabeça da menina
Estudo encontrou altos níveis de mercúrio no povo Ese Ejja, especialmente em mulheres grávidas (Imagem: Reacción Climática)

Um estudo de abril do ano passado do Centro de Documentação e Informação Boliviano (Cedib) revelou que a Bolívia é o segundo maior importador mundial de mercúrio, depois da Índia. O país compra muito mais do que mineiros artesanais e de pequena escala precisam. Somente em 2015, o país importou 152 toneladas, doze vezes mais do que no ano anterior. Acredita-se que o excedente tenha sido contrabandeado para o Peru.

Nós pescamos, mas o peixe já é insípido. Se isso continuar, vai acabar com nossas vidas

Valentín Luna, presidente da associação de comunidades ao longo dos rios Beni, Tuichi e Quiquibey, contou pelo menos 50 dragas em atividade na região.

Limbert Miquere concorda que há poluição nos rios. “Para aqueles de nós que vivem nas comunidades, o principal alimento é o peixe. É quase 70% do nosso alimento. Nós pescamos, mas o peixe já é insípido. Se isso continuar, vai acabar com nossas vidas”, disse ao Diálogo Chino, em entrevista por telefone.

Bolívia e a Convenção de Minamata

A Convenção Minamata, de 2017, é o tratado internacional destinado a proteger a saúde humana contra os impactos adversos do mercúrio. A Bolívia ratificou a convenção por meio da lei 759.

Em março de 2020, o governo boliviano se reuniu com representantes da ONU para discutir a necessidade de coordenar um plano de ação nacional para cumprir com a Convenção Minamata. O artigo 7 do tratado estabelece que os governos são obrigados a tomar medidas para reduzir ou eliminar o uso de mercúrio e seus compostos.

Para Óscar Campanini, pesquisador do Cedib, o Estado não cumpre o tratado. “Está estabelecido que o plano de ação nacional deve ser apresentado três anos após a entrada em vigor da Convenção, e esses três anos foram completados em agosto do ano passado”.

Além disso, a investigação do IPEN descobriu que autoridades estatais bolivianas sabiam, em 2014, que, nas áreas de Alto Beni e Bajo Madre de Dios, havia risco de contaminação da intensa atividade de mineração de ouro local.

Magín Herrera, vice-ministra do Meio Ambiente na Bolívia, disse ao Diálogo Chino que seu departamento trabalha em um decreto que visa a reduzir os impactos do mercúrio. O documento aguarda revisão do Ministério de Mineração. O Diálogo Chino solicitou uma resposta do ministro da pasta, Ramiro Villavicencio, mas não foi atendido.

Investigação contra o mercúrio

O parlamentar Pando Sergio Maniguary, da aliança Creemos, acredita ser necessária uma investigação “profunda e exaustiva” por parte de acadêmicos e do Estado.

Maniguary contou que até mesmo seu amigo próximo apresentou altos níveis de mercúrio no corpo: “Ele atribui isto ao fato de consumir peixe da região”.

Os autores da pesquisa cobram agora a proibição do uso de mercúrio na Bolívia: “Os resultados deste estudo deixam claro que as mulheres e seus filhos nas regiões dos países latino-americanos avaliados correm um risco significativo, a menos que o uso de mercúrio seja proibido, e a proibição seja imposta pelas autoridades”.

Campanini concorda e reforça que isso deve ser feito “o mais rápido possível”.