Energia

Como a América Latina pode financiar sua transição energética

Governos têm metas ambiciosas para as energias renováveis, mas há barreiras como incentivos a combustíveis fósseis e limites a investimentos em energia limpa
<p>Painéis solares são limpos no deserto do Atacama. O Chile teve notáveis sucessos no aumento da capacidade instalada de energias renováveis nos últimos anos, mas como muitos na América Latina, ainda enfrenta obstáculos financeiros e políticos na transição energética (Imagem: Francisco Javier Ramos Rosellon / Alamy)</p>

Painéis solares são limpos no deserto do Atacama. O Chile teve notáveis sucessos no aumento da capacidade instalada de energias renováveis nos últimos anos, mas como muitos na América Latina, ainda enfrenta obstáculos financeiros e políticos na transição energética (Imagem: Francisco Javier Ramos Rosellon / Alamy)

A América Latina tem quase tudo o que precisa para fazer uma transição para energias renováveis: metas ambiciosas, enorme potencial solar e eólico e indústrias locais em crescimento. Mas o financiamento para tal é insuficiente, e várias barreiras terão que ser superadas para reverter essa situação.

A Agência Internacional de Energia (AIE) estima que os países emergentes, categoria que inclui grande parte da América Latina e do Caribe, precisarão de US$ 1 trilhão por ano até 2050 para financiar sua transição energética. Em contraste, em 2020, US$ 150 bilhões foram disponibilizados para investimentos em energia limpa.

Plataformas de petróleo na área de Vaca Muerta, na província de Neuquén, Argentina
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Atingir essa meta exigirá um papel de destaque do setor privado, que deve impulsionar mais de 70% dos investimentos em energia limpa, de acordo com dados da AIE. Instituições financeiras, como a Corporação Andina de Fomento (CAF), do Banco de Desenvolvimento da América Latina, também devem desempenhar um papel importante, embora limitado.

Juntamente com a CAF, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco de Exportação-Importação da China e a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional têm sido os principais investidores na energia da América Latina nas últimas duas décadas, segundo dados do Observatório Econômico Latino-Americano.

No entanto, os recursos têm sido insuficiente e fortemente inclinados para combustíveis fósseis. Um aumento dos recursos deve, portanto, ser acompanhado de seu redirecionamento, avaliam especialistas.

“É um problema político, não econômico”, disse Leonardo Stanley, pesquisador do Centro de Estudo de Estado e Sociedade (Cedes) da Argentina. “Olhando para os custos, é mais racional investir em energias renováveis do que em combustíveis fósseis. Mas é política a decisão sobre quais setores receberão o dinheiro, com base no lobby de petrolíferas”.

Transição energética na América Latina

O setor energético da América Latina é responsável por quase metade das emissões de gases de efeito estufa da região, sendo que cerca de 25% é proveniente da eletricidade gerada por combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás. O setor de transportes também é responsável por uma parte substancial das emissões.

Governos latino-americanos se comprometeram a reduzir emissões no âmbito do Acordo de Paris. Ao todo 15 países já assinaram a meta de incluir pelo menos 70% de energias renováveis em sua matriz energética até 2030, por meio da Iniciativa de Energias Renováveis na América Latina e Caribe (Relac).

usina solar no deserto do Atacama, Chile
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A América Latina tem fatores a seu favor: possui abundantes reservas de minerais estratégicos, como o lítio, necessário para a produção de baterias e equipamentos das energias renováveis, além de um potencial excepcional de sol e vento e a produção de hidrogênio verde.

Entretanto, sem o aumento do financiamento, será muito difícil atingir essas metas, como já apontado por governantes latino-americanos na Cúpula do Clima, a COP26, realizada em novembro passado. O argumento é que, como a América Latina é responsável por menos de 10% das emissões globais, a região deveria, portanto, receber mais apoio na transição para as energias renováveis.

Rebecca Ray, pesquisadora do Centro de Política de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, argumenta que a China pode desempenhar um papel crescente na transição energética pós-pandêmica da América Latina, em linha com os investimentos já feitos em energia solar e eólica, veículos elétricos e produção de lítio.

A China investiu US$ 58 bilhões no setor energético da América Latina entre 2000 e 2020, dos quais mais de 15% foram para as energias renováveis, de acordo com dados da Universidade de Boston. Argentina, Brasil, Bolívia e Chile foram os principais beneficiários.

“Se os governos desejam expandir o setor de energias renováveis, eles encontrarão um parceiro na China. Mas cabe a eles impulsionar os projetos e direcionar o relacionamento com a China para esse caminho”, disse Ray. “Investidores chineses não irão [à América Latina] para convencer governos a investir em energias renováveis”.

Enquanto isso, o investimento em combustíveis fósseis continua, com a maioria dos governos usando o gás natural como combustível de transição ao petróleo e carvão. Isso significa que fundos públicos e privados vão para projetos de infraestrutura de gás que poderiam, em vez disso, serem usados para energias renováveis.

“Para os países da região que têm muitos recursos e empregos ligados aos combustíveis fósseis, falar sobre transição é difícil”, disse Jeremy Martin, vice-presidente de energia e sustentabilidade do Institute of the Americas, um think tank americano. “Os combustíveis fósseis dão um dinheiro fácil, em contraste com a mudança para as energias renováveis”.

Obstáculos à transição energética

Além dos compromissos governamentais com a transição energética, garantir recursos na América Latina exigirá a superação de uma série de obstáculos, dizem especialistas. O primeiro e mais importante é o custo do capital, que é mais alto do que nos países desenvolvidos e em outras regiões emergentes.

Isso se deve a diversos fatores, como a volatilidade de muitas economias da região, os riscos constantes de desvalorização cambial, sistemas financeiros subdesenvolvidos e instabilidade política, como sugeriram recentemente Mauricio Cárdenas, ex-ministro de Finanças da Colômbia, e Luisa Palacios, da Universidade de Columbia, na publicação online Americas Quarterly.

Esse é o caso da Argentina, onde 91 projetos de energias renováveis enfrentam um futuro incerto em meio à crise econômica do país. O México é outro exemplo, já que investidores do setor energético podem enfrentar impasses com as recentes manobras do presidente Andrés Manuel López Obrador para reformar o setor de energia.

“Lidar com essas restrições é particularmente importante porque financiar a transição energética não é como financiar combustíveis fósseis”, argumentam Cárdenas e Palacios. “Nas indústrias extrativas, as empresas estatais ou multinacionais estrangeiras estão prontas para investir porque a rentabilidade compensa riscos macro e políticos”.

Precisa-se de muito mais capital, e o desafio é de onde ele virá. Por enquanto, tudo não passa de promessas

A transição também é um desafio fiscal para os governos da região, cujas economias dependem fortemente das exportações de combustíveis fósseis — ao contrário das energias renováveis, que ainda não são grandes fontes de receita tributária e exigem apoio governamental, como subsídios, para seu desenvolvimento.

Reverter essas tendências — e hábitos arraigados — exigirá amplas reformas dos sistemas fiscais da região, como redirecionar os atuais subsídios dos combustíveis fósseis para a energia limpa, como Stanley, do Cedes, argumenta em uma análise para a Fundação Carolina, organização sediada na Espanha. Governos deveriam até mesmo considerar o bloqueio do financiamento público e privado para os combustíveis fósseis, ele avalia.

Para Carlos de León, economista mexicano especializado no setor energético, é muito difícil que países dependentes da receita do petróleo, como México e Brasil, encontrem incentivos para investir em energias renováveis. Ele diz que os veículos elétricos são uma das poucas exceções, com políticas para a eletrificação cada vez mais evidentes na região.

“A transição não é um problema isolado de um país, ela está em toda a América Latina”, diz de León. “Precisa-se de muito mais capital, e o desafio é de onde ele virá — se a região vai se alinhar com a China como aliada para a transição ou se novos fundos de investimento serão criados. Por enquanto, tudo não passa de promessas”.