Alimentos

Soja não transgênica: alta demanda global, mas baixa aceitação entre agricultores sul-americanos

Nos principais países agrícolas da América Latina, as culturas não geneticamente modificadas representam menos de 3% da área plantada de soja, apesar da crescente demanda por exportação
<p>Agricultor monitora cultivos de soja transgênica em Salto, no Uruguai. Atualmente, o plantio de soja não transgênica é limitada nos principais países produtores da América do Sul (Imagem: Joerg Boethling/Alamy)</p>

Agricultor monitora cultivos de soja transgênica em Salto, no Uruguai. Atualmente, o plantio de soja não transgênica é limitada nos principais países produtores da América do Sul (Imagem: Joerg Boethling/Alamy)

A crescente demanda global por grãos de soja convencionais — não geneticamente modificados (GM) — não tem atraído produtores agrícolas da América Latina.

A soja convencional requer um manuseio mais complexo do que a GM, o que é compensado por seu preço de venda mais alto. Mas ela ainda não se mostrou competitiva no mercado de massa, com sua adoção hoje limitada a produtores de nicho.

As dificuldades no manejo da soja convencional estão ligadas ao uso de agrotóxicos — uma tarefa que, ao contrário das GMs, segue um calendário rigoroso de datas e horários. Ambas as alternativas envolvem o uso de agrotóxicos, e sua eliminação total só ocorre na produção da soja orgânica.

Preferência dos produtores

Embora não existam estatísticas consolidadas em nível regional, a análise do Diálogo Chino constatou que na Argentina, Brasil e Uruguai — que juntos representam quase metade da produção mundial de soja — as GMs representam entre 97% e 98% da área semeada do grão. Este percentual é maior do que há uma década, quando era de 88%, segundo um estudo do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).

98%


da área semeada com soja na Argentina, Brasil e Uruguai é de variantes geneticamente modificadas

“Para que a produção convencional de soja seja lucrativa, é necessário um alto grau de eficiência, já que o manejo deve ser muito mais específico, estar muito atento ao momento do controle de ervas daninhas e fazer mais aplicações de agrotóxicos”, disse Pedro Rocha, um dos autores do relatório.

“Somado a isto, existe a necessidade da rastreabilidade para evitar a presença acidental de soja GM, o que também aumenta os custos [da convencional]”, acrescentou Rocha. 

Além dessas complexidades, há agora uma crescente demanda por soja não transgênica, impulsionada por novas tendências globais de consumo e mudanças nas políticas alimentares na Europa e na Ásia. Pelas projeções, esse mercado deve crescer dos atuais US$ 23,2 bilhões para cerca de US$ 38,2 bilhões até 2027.

Por enquanto, a tendência não atraiu os produtores. Segundo dados do governo argentino, na colheita de 2020-21, mais de 97% da área plantada de soja foi de GM. Enquanto isso, no Brasil, o Instituto Soja Livre, uma associação que reúne produtores, comerciantes e empresas de sementes, informou recentemente que a soja não transgênica responde por 2% da área plantada. No Uruguai, fontes do Ministério da Agricultura explicaram que na última colheita, a soja não transgênica representou menos de 1% da produção total.

Um caminho difícil — por enquanto

“A soja convencional é destinada a nichos de mercado, ao contrário da soja transgênica, que oferece quantidade e volume”, explicou Julio Ferrarotti, diretor da Haziak, empresa argentina que se compromete com variedades tradicionais desde 2016. Ela cultiva 200 hectares na Argentina e está em processo de licenciamento para fazer o mesmo no Uruguai. Ferrarotti explicou que a empresa focava em “melhoramento genético”, antes de se associar com os produtores. 

Pés e pernas de uma pessoa medindo uma planta de soja
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Ferrarotti disse ainda que o diferencial de preço dos grãos de soja convencionais varia dependendo do cliente. “É discutido contrato por contrato”, disse ele, destacando que o modelo da Haziak não é simples devido aos altos custos envolvidos. 

Sergio Ceretta, que supervisiona o programa de cultivo de soja no Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola (Inia), no Uruguai, faz coro: “Embora você tenha um diferencial de preço, também tem mais custos porque tem que garantir uma cadeia onde o grão esteja livre de contaminação”.

O preço também foi mencionado como uma barreira por Dante Servian, produtor da região de Itapúa, no Paraguai. “O premium às vezes é menos de 10% do que a soja transgênica. Se fosse 25% ou 30%, teria mais impulso”, disse ele ao Diálogo Chino

Em 2018, Servian e um grupo de empresários construíram uma unidade de estocagem para produtos não GM, mas não conseguiram avançar, “porque o governo não garantiu a certificação das sementes, uma exigência de compradores”.

O apoio oficial à soja não transgênica tem sido escasso até agora, diz Servian. O Diálogo Chino entrou em contato com o Ministério da Agricultura brasileiro, buscando mais informações sobre os incentivos a variedades convencionais e recebeu como resposta que “não cabe ao governo interferir em questões de mercado”. 

Leonardo Olivera, diretor de serviços agrícolas do Ministério da Agricultura do Uruguai, deu uma declaração semelhante, alertando que “nós, como governo, não temos preferência por nenhuma cultura”. Na Argentina, o Executivo não se manifestou.

Mas existem programas para promover a soja convencional. Sergio Ceretta explicou que o Inia tem um estudo em andamento para avaliar o mercado asiático para essa variedade, buscando melhorar a rentabilidade dos produtores uruguaios.

Na Argentina, o Instituto Nacional de Tecnologia Agrícola, órgão independente de pesquisa, tem apoiado vários projetos relacionados com o tema. Um dos mais bem-sucedidos levou ao patenteamento, em julho, de La Manuela — uma soja não geneticamente modificada com alto valor protéico. 

“Comecei isto em 2007. Agora posso dizer que deixei minha marca no mundo”, disse Francisco Ferramondo, agricultor encarregado de seu desenvolvimento. Ele continuou dizendo que “a soja convencional tem um futuro promissor”.

Perguntamos a Ferramondo por que não há maior adoção dessas variantes. “Em nosso caso, não temos meios de conseguir publicidade e, ao mesmo tempo, o lobby da GM é muito forte”, disse ele, acrescentando que “os produtores olham para os números, e todos dizem que é mais confortável optar pela GM”. 

Ceretta concordou, indicando que, atualmente, “o mercado tem preços que certamente não são atraentes o suficiente para adentrar um negócio complicado”.

Mão segurando espiga de milho
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Uso de agrotóxicos

Sempre que são mencionados assuntos ligados às culturas GM, há um debate sobre seu impacto ambiental. Para Ferramondo, que desenvolveu La Manuela, a contribuição de tais variedades não transgênicas é, comparativamente, “um mimo para o meio ambiente”. Mas Pedro Rocha, do IICA, disse que “não há nenhuma evidência experimental que apoie os aspectos negativos da soja transgênica”. 

Como o Diálogo Chino explorou anteriormente, o debate sobre a GM não está encerrado, principalmente porque ainda não existem pesquisas suficientes para se chegar a uma conclusão categórica.

A soja orgânica foi o foco principal do último Congresso Mercosoja, realizado no Brasil em maio deste ano. Foi informado no encontro que a Bolsa Mercantil de Chicago — o maior mercado mundial de opções e futuros — analisa a possibilidade de ter um preço de referência para esse produto, já impulsionada pela crescente demanda global por este tipo de alimento.