Clima & energia

A Argentina pode equilibrar divisas, empregos e justiça climática em Vaca Muerta?

Projeto em campo de petróleo gerou onda migratória de pessoas em busca de empregos bem remunerados, mas urgência da transição energética deixa dúvidas sobre sua continuidade
<p>Trabalhadores em uma refinaria de areia utilizada para o processo de fracionamento nos campos de petróleo e gás de Vaca Muerta, na província de Neuquén, Argentina (Foto: Agustin Marcarian / Alamy)</p>

Trabalhadores em uma refinaria de areia utilizada para o processo de fracionamento nos campos de petróleo e gás de Vaca Muerta, na província de Neuquén, Argentina (Foto: Agustin Marcarian / Alamy)

Para o governo argentino, os campos de extração de petróleo e gás em Vaca Muerta,  sobre uma formação geológica de 30 mil quilômetros quadrados na província de Neuquén (o equivalente a 20 cidades de São Paulo), representam uma oportunidade para resolver o abastecimento de energia do país, aumentar as divisas e criar empregos. Diante disso, o impacto ambiental foi deixado em segundo plano.

A Argentina gastou mais de US$ 6 bilhões nos primeiros seis meses do ano com importações de energia, 50% a mais do que no mesmo período de 2021. O aumento se explica em parte pelos transtornos sentidos no setor por causa da guerra na Ucrânia. Os impactos do conflito levaram a uma queda nas reservas do Banco Central da Argentina em US$ 100 milhões somente em outubro e agora elas estão em US$ 42 bilhões.

“O projeto poderia se tornar um dos mais importantes produtores de matéria-prima do país, algo que é urgentemente necessário”, diz Lara Bernstein, pesquisadora da empresa de consultoria Economia y Energía. Em outras palavras, a exploração de Vaca Muerta poderia resolver um dos vários problemas econômicos argentinos. Mas a janela de oportunidade está se fechando rapidamente em meio à crise climática e aos compromissos do país para enfrentá-la.

A Argentina se comprometeu a reduzir 19% de suas emissões de gases de efeito estufa até 2030 (em relação aos níveis de 2007) e atingir a neutralidade de carbono até 2050. O cumprimento dessas metas requer uma transição que se distancie dos combustíveis fósseis, atualmente responsáveis por mais de 50% das emissões do país. 

O governo defende usar o gás natural como um combustível de transição, em vez de mudar diretamente para energias renováveis, um argumento rejeitado por ambientalistas e especialistas em mudanças climáticas. Para Cecilia Nicolini, secretária de mudanças climáticas do país, Vaca Muerta é uma solução de curto e médio prazo, mas não de longo prazo.

“O desenvolvimento do gás nos permitirá deixar de importar combustíveis líquidos e exportá-los para países com matrizes energéticas poluentes, como o Chile, que ainda usa carvão”, disse Nicolini em entrevista recente ao Diálogo Chino.

Vaca Muerta e seus trabalhadores

Depois que o país atingiu o menor índice de produção de gás e petróleo em 2017, o gasoduto de Vaca Muerta surgiu como um substituto aos hidrocarbonetos convencionais no país.

“O volume de produção tem sido mantido em Vaca Muerta, tanto em gás quanto em petróleo, e a produção não convencional está se tornando cada vez mais importante”, explica Bernstein. “Estimamos que até 2025 tenhamos uma produção de um milhão de barris por dia”.

usina de gás
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Para atingir essa produção, novos projetos precisarão ser desenvolvidos no local que já abriga centenas de poços e está dividido em blocos pertencentes e operados pela estatal de petróleo e gás YPF, em parceria com diversas empresas internacionais. Mas a meta é ir tão longe quanto as capacidades tecnológica e humana permitirem. Por isso, o governo planeja subsidiar empresas na extração de combustíveis fósseis por meio de programas como o Plano GasAR, recentemente estendido até 2028. 

Vaca Muerta agora oferece salários que atingem o dobro da média nacional, atraindo milhares de pessoas, em sua maioria homens, que saem de várias regiões da Argentina para a cidade de Neuquén e outros municípios vizinhos. Os empregos, embora bem pagos, são muito arriscados, como evidenciado pelos vários acidentes ocorridos nos últimos anos. 

Na boca de poço, na superfície da estrutura, as funções são menos especializados e de maior risco, e a remuneração fica entre US$ 2 mil e US$ 2,7 mil por mês, segundo Sebastián Cortez, diretor da Câmara Empresarial da Indústria Petrolífera e Afins de Neuquén, que engloba empresas de serviços de petróleo e gás. Cortez diz que começou trabalhando no poço e que, “embora o trabalho seja árduo, o salário é incomparável”.

Em 2021, os setores de petróleo e mineração na Argentina empregavam diretamente mais de 84 mil pessoas, segundo um relatório do governo. A maioria dos empregos no setor de petróleo e gás está concentrada na província de Neuquén.

Quando Vaca Muerta começou, ele empregava cinco mil trabalhadores do petróleo. Um ano e meio depois, 3,5 mil haviam sido demitidos

Por lá, o crescimento populacional é mais do dobro da média do país. Em 12 anos, houve um aumento de quase 200 mil pessoas, o que alguns jornais argentinos chamaram de “efeito Vaca Muerta”.

“Eles chegam sem lugar para ficar”, diz Vilma Castro, funcionária da prefeitura de Neuquén. “Na Avenida Argentina [a principal da cidade], você pode ver de dez a 20 pessoas por dia que vêm de fora à procura de trabalho”, diz. “Vi principalmente pessoas de Formosa, Chaco, Salta, localizadas no norte. Geralmente vêm sozinhos, sem família. Muitos chegam sem saber o que fazer. Nós os ajudamos”.

Entre as cidades com maior crescimento populacional da província, estão Rincón de los Sauces, Zapala e San Martín de los Andes. Porém, de acordo com Castro, a maioria das pessoas que procura trabalho no projeto firma residência na capital da província.

Sindicatos e organizações ambientais como o Observatório Petroleiro Sul (OpSur) denunciam que as condições de trabalho no projeto são imprevisíveis e dependem do preço internacional do petróleo, deixando os trabalhadores muito vulneráveis às flutuações.

“Quando Vaca Muerta começou, ele empregava cinco mil trabalhadores do petróleo. Um ano e meio depois, 3,5 mil haviam sido demitidos. Esta situação de contratar e depois dispensar é recorrente”, disse Martín Álvarez Mullaly, pesquisador da OpSur.

Uma transição energética justa?

Na recente cúpula climática da COP27, a Argentina apresentou um plano para honrar seu compromisso climático de 2030. Entre as mais de 250 medidas listadas no documento, o governo faz menção explícita à transição energética dos combustíveis fósseis, a ser alcançada por meio do desenvolvimento do setor de energia renovável.

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Em seu plano, o governo também incorpora o conceito de “transição energética justa”, que implica em garantir a equidade e justiça ao abandonar a exploração de combustíveis fósseis. Isso inclui, por exemplo, considerar os efeitos sobre os trabalhadores atualmente empregados no setor de petróleo e gás, que precisarão de treinamento e apoio financeiro para a transição a empregos menos prejudiciais ao meio ambiente.

Uma economia de baixo carbono na América Latina poderia gerar até 15 milhões de empregos líquidos e 1% de crescimento líquido adicional a partir de 2030, de acordo com um relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Embora alguns empregos sejam perdidos na pecuária e nos combustíveis fósseis, a estimativa é que outros sejam criados em energia renovável, agricultura de baixo carbono, construção e silvicultura.

Alcançar uma transição energética “não é fechar a torneira do gás e pronto”, diz Enrique Maurtua Konstantinidis, consultor argentino em mudanças climáticas. Mesmo assim, ele está confiante de que a “oferta de empregos com uma transição justa seja muito maior do que Vaca Muerta proporciona hoje”.

“O governo acredita que, para que o país avance, é necessário ter dólares. E esses dólares são gerados pela venda de commodities, como petróleo, gás e bois. Essas são três coisas que não fazem parte da solução climática”, acrescenta Konstantinidis.

Alcançar uma transição energética ‘não é fechar a torneira do gás e pronto’

Para Joaquín Etorena Hormaeche, coordenador da Parceria para a Ação em Economia Verde, programa da Organização Internacional do Trabalho que apoia países na transição para economias verdes, há muitas variáveis a serem consideradas ao se definir a velocidade e o rumo de uma transição energética justa.

“Precisamos saber que tipo de empregos as diferentes fontes de energia renovável podem gerar. Por exemplo, vento e energia solar requerem, principalmente, equipes na fase de instalação, mas depois disso o número de postos diminui significativamente”, diz Hormaeche.

Em 2018, mais de 8,8 mil pessoas trabalhavam no setor de energia renovável na Argentina, de acordo com as estimativas mais recentes divulgadas pelo governo, dos quais 8.329 eram empregos na construção civil – ou seja, temporários – e 488,permanentes.

Nos últimos anos, Hormaeche tem trabalhado com diferentes atores nos setores produtivos para fomentar o diálogo sobre a transição energética da Argentina. “Trabalhamos diretamente com três grupos: trabalhadores, empresas e o Estado”, diz. No entanto, cada grupo tem uma ideia diferente sobre como deve ser a transição energética.

Até agora, a prioridade dos sindicatos é a segurança no emprego, especialmente dadas as arriscadas condições de trabalho no setor de petróleo e gás. Alguns deles, como o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil da Argentina (Uocra), começaram a discutir o que procuram numa transição energética justa, mas esta não é a realidade da maioria das associações de trabalhadores do setor petrolífero.

A Confederação Sindical das Américas, organização regional latino-americana da qual o Uocra é membro, apresentou um posicionamento na COP27, apelando para o avanço de uma “transição verdadeiramente justa”. O parágrafo final do documento é categórico: “Somente quando a crise climática for abordada sob a premissa da justiça climática, ela deixará de ser um problema financeiro e de redução de emissões de gases de efeito estufa e poderá finalmente ser abordada em toda sua magnitude, considerando sua dimensão social e histórica”.