Comércio & Investimento

Pac-man, a onça-pintada que denunciou traficantes chineses no México

Redes de caça ilegal chinesas buscam o maior felino das florestas mexicanas
<p>As onças-pintadas são o terceiro maior felino do mundo, depois do leão e tigre da Sibéria, e no México estão ameaçadas de extinção (Imagem: Pixabay)</p>

As onças-pintadas são o terceiro maior felino do mundo, depois do leão e tigre da Sibéria, e no México estão ameaçadas de extinção (Imagem: Pixabay)

Pac-man caminha com rapidez, balança a ponta do rabo e ofega enquanto ostenta suas presas. De repente, ele para e levanta levemente a pata traseira esquerda. Ele se vira, e surge Cam, caminhando a passos firmes. As duas onças-pintadas desaparecem em meio à Selva Lacandona. 

A única testemunha desse momento foi uma armadilha fotográfica instalada em um dos hábitats da onça-pintada mexicana, a área natural protegida de Yaxchilán, no estado de Chiapas, na fronteira com a Guatemala. Ali vivem cerca de 115 onças que, por seus hábitos solitários e noturnos, são quase impossíveis de detectar.

A cena foi capturada em janeiro de 2019 como parte dos monitoramentos de Pac-man, uma onça-pintada macho, com cerca de 5 anos de idade e 55 quilos de músculos. Foi a última vez que Pac-man foi fotografado. A onça terminou nas mãos da caça ilegal. Tornou-se o primeiro caso conhecido no México que pode envolver uma rede de tráfico operada da China.

Sabe-se que o Pac-man foi vítima do tráfico de animais silvestres pelo modus operandi, que inclui a remoção das presas, garras, cabeças e genitais, que, juntos, podem custar até 20 mil dólares e são especialmente cobiçados por integrantes da elite chinesa.

“Pac-man foi o primeiro sinal de que o comércio ilegal chinês em busca da onça-pintada está operando em território mexicano. Estamos vendo esse comércio ilegal em todo o continente”, explica o ecólogo Rodrigo Medellín. “Evidentemente é o crime organizado.” 

Jaguares do Programa Floresta Maia, em colaboração com os vigilantes comunitários de Frontera Corozal - CONANP

Medellín trabalha no laboratório do Departamento de Ecologia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e se dedica a estudar a onça-pintada na Selva Lacandona. Uma dessas onças era Pac-man. 

A investigação “Illegal trade in wild cats and its link to Chinese‐led development in Central and South America”, que sistematizou pela primeira vez o tráfico da América do Sul e América Central até a China, revelou que a caça de onças-pintadas aumentou com o tempo e que a maioria das peças de onça apreendidas foram caninos. Cerca de 34% dos relatórios envolviam a China.

“Os países de origem com níveis relativamente altos de corrupção e investimento privado chinês e renda per capita baixa tiveram de 10 a 50 vezes mais apreensões de onças-pintadas que os outros países incluídos na mostra”, acrescenta o relatório.

Não é a primeira vez que o tráfico chinês espreita a fauna mexicana. A rota México-China já existe há pelo menos duas décadas, com o peixe marinho totoaba, o pepino-do-mar, o cavalo-do-mar e o tubarão, segundo relatórios oficiais. Por isso, segundo Medellín, é urgente uma lei que considere “delito grave” matar uma onça-pintada. Essa foi uma das bandeiras da Procuradoria Federal de Proteção ao Meio Ambiente (Profepa) do México durante a Conferência Regional de Alto Nível das Américas sobre o Comércio Ilegal de Vida Silvestre, sediada no Peru em outubro de 2019.

“É muito preocupante que, num país como o México, onde não se vê a redução da ilegalidade e do crime organizado, haja um mercado lucrativo para a onça-pintada, porque já vimos o que aconteceu com o totoaba e a vaquita [espécie de boto marinho] … Podemos perder o controle”, alerta María José Vilalnueva, diretora de conservação da WWF México.

Não são apenas leopardos. Desde setembro de 2017, foram emitidas pelo menos 46 permissões governamentais para o comércio e uso de partes de espécies que estão sob os mais altos níveis de proteção

A medicina tradicional chinesa tem sido uma das principais propulsoras do tráfico de espécies. Um relatório recente da Agência de Investigação Ambiental (EIA) revelou que 24 empresas farmacêuticas chinesas incluíam ossos de leopardo como ingrediente em seus medicamentos tradicionais.

“Essa é apenas a ponta do iceberg”, explica Aron White, ativista da EIA Wildlife e especialista em China. “Não são apenas leopardos. Desde setembro de 2017, foram emitidas pelo menos 46 permissões governamentais para o comércio e uso de partes de espécies que estão sob os mais altos níveis de proteção.”

Embora a onça-pintada não faça parte da lista de espécies protegidas em nível nacional na China, ela aparece no Apêndice I da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Fauna e Flora Silvestres (CITES) e deve ser tratada como espécie sob proteção estatal especial de primeira classe. 

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Empresas farmacêuticas chinesas incluem osso de leopardo em suas prescrições

Segundo White, a onça-pintada não aparece especificamente em textos de medicina tradicional chinesa, já que é uma espécie americana. Ainda assim, o termo “osso de leopardo”, utilizado tanto em documentos políticos como em livros de referência da medicina tradicional chinesa, permissões e embalagens, é ambíguo e pode referir-se a qualquer espécie cujo nome chinês termine com o caractere de leopardo. Em chinês, onça-pintada se traduz literalmente como “leopardo americano”.

Cena do ecocrime

Pac-man foi encontrado a 35 metros da margem do rio Usumacinta, com abutres ao redor. Marcas na lama indicavam que o felino havia sido arrastado: não tinha cabeça, patas, cauda ou genitais. Havia apenas um torso e a pele. Ao redor, havia pegadas dos caçadores. Assim o encontraram os vigias comunitários, que avisaram a Comissão Nacional de Áreas Naturais Protegidas (Conanp). O fedor era intenso. O Diálogo Chino confirmou essas informações em um relatório inédito da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México, ao qual teve acesso.

A Profepa não publicou o episódio em relatório. Tampouco fez uma denúncia penal à Procudadoria Geral da República, como poderia ter sido feito já que se trata de uma espécie em perigo de extinção no México, e denúncias semelhantes haviam sido feitas em outros casos. A pena para caça ilegal chega a 9 anos de prisão. O Diálogo Chino questionou a Profepa sobre o caso, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Os vigias comunitários acreditam que, devido à seca, Pac-man foi até o rio beber água durante a noite. Segundo essa versão, os traficantes o avistaram de um barco e atiraram enquanto navegavam rio abaixo. Outra versão sugere que Pac-man foi morto na Guatemala e seus restos foram despejados no México. Trata-se de uma operação comum na região. Ouvem-se tiros todas as noites; os vigias comunitários e guardas florestais temem por suas vidas e, como não têm poderes legais para deter ou portar armas, os traficantes transitam tranquilamente.

Os vigias mexicanos acusam traficantes oriundos das comunidades guatemaltecas La Técnica, Arbolitos e La Esperancita. As caças, dizem, não são parte do sustento familiar dessas comunidades, mas parte de redes criminais.

“Como não há selvas na Guatemala, o mais fácil para eles é cruzar o rio em seus barcos e começar a depredar o lado de cá”, explica um vigia ambiental que pediu anonimato por medo de represálias. “Vale esclarecer que nem todos os habitantes dessas comunidades são ligados a essas organizações que vêm de fora das aldeias. Isso está mais ligado a redes de tráfico.”

Demanda chinesa por onças-pintadas

Pesquisadores identificaram o cadáver de Pac-man por uma mancha no lado esquerdo do tronco que lembra o personagem do videogame Pac-man. A bióloga Paulina Arroyo, encarregada do Programa de Monitoramento de Onças-Pintadas da Selva Maya, foi quem batizou Pac-man e quem reconheceu o corpo.

A equipe de Rodrigo Medellín — formada por Antonio de la Torre, Arroyo e Ivonne Cassaigne — estava consternada. Já haviam visto cenas semelhantes antes, mas as mortes haviam ocorrido em comunidades que se “vingam” dos felinos por atacar seus rebanhos de gado; um problema com o qual lidam aos poucos, trabalhando junto às comunidades.

De la Torre, que coordena o estudo de onças-pintadas na Selva Lacandona, se perguntou: “Por que não levaram o corpo inteiro? Não levaram nem mesmo a pele. Isso significa que sabiam o que tinha mais valor”.

Nos Estados Unidos, um canino de onça-pintada pode chegar a custar 1,5 mil dólares, e na China, 5 mil. Pelo conjunto de pele, garras e genitais, paga-se entre 2 mil e 3 mil dólares localmente, e cerca de 20 mil dólares em Xangai.

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Dólares podem custar presa de onça-pintada na China

“Esse padrão de cortar a cabeça e as garras é parecido com o que ocorre na China. Alguns relatórios do Suriname nós levam a pensar que há uma relação entre os casos”, explica de la Torre, em referência ao relatório ”Exploitation of the jaguar, Panthera onca and other large forest cats in Suriname”, publicado pela ONG ambiental WWF em 2010.

Os pesquisadores lembram que, em janeiro de 2018, apareceu uma onça-pintada decapitada no rio Belice, no país vizinho Belize. As autoridades ofereceram uma recompensa por informação que levasse à captura dos criminosos.

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Na China, presas de onça-pintada são frequentemente usadas como afrodisíacos e amuletos | Foto: Ecobol

As redes de tráfico de espécies costumam subcontratar traficantes de comunidades locais. Por exemplo: os chineses contratam pescadores ilegais da península de Yucatán para capturar pepinos-do-mar; o mesmo acontece no noroeste, com o totoaba. Essa mecânica foi documentada no livro “Tráfico de animales, comercio ilegal en México”.

Segundo ex-funcionários da Profepa, a subcontratação é realizada por intermediários asiáticos — principalmente da China — que fingem ser turistas. Uma vez que têm o produto em mãos, há duas possibilidades: seguem por terra até a Cidade do México para então embarcar em um avião no Aeroporto Internacional, já que ali existe uma rede internacional até Xangai, como ocorre com o totoaba.

A segunda possibilidade é o serviço de correios do país de origem, como ocorreu na Bolívia. Ou também via redes sociais: uma investigação do Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal revela que, com subprodutos de onças-pintadas, se vendem pulseiras, porta-celulares, anéis, cintos e licores medicinais.

Ameaças

Conhecidas sob o nome científico de Panthera onca, as onças-pintadas são terceiro maior felino do mundo, atrás apenas do leão e do tigre siberiano. Vivem em 18 dos 21 países da América Latina, onde sofrem com a redução de seu hábitat, pecuária e caça ilegal.

Em nível internacional, a espécie é “quase ameaçada”, segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). No México, por outro lado, a onça-pintada está em perigo de extinção e sua caça é proibida.

Para reverter o problema, foi lançado o Plan Jaguar 2030 que, segundo Villanueva da WWF México, busca proteger as áreas naturais, fortalecer os corredores biológicos, desenvolver políticas públicas que coexistam com o meio ambiente, trabalhar com as comunidades e combater a caça ilegal.

A estimativa atual das onças-pintadas mexicanas é de 4,8 mil indivíduos até 2018, segundo o Censo Nacional da Onça-Pintada a cargo do Instituto de Ecologia da UNAM, a Comissão de Áreas Naturais Protegidas (Conanp) e a Aliança WWF-Foundation Telmex Telcel. Todos esses indivíduos fornecem “um equilíbrio ecológico”, segundo Heliot Zarza, vice-presidente da Aliança Nacional para a Conservação da Onça-Pintada.

“As onças-pintadas não apenas se alimentam de animais doentes, mas também de animais fracos, fazendo essa limpeza sanitária do meio ambiente”, explica.

Pac-man foi visto de outubro de 2015 até janeiro de 2019, enquanto Cam foi observado de junho de 2016 até o fechamento desta reportagem. Cam e seus futuros filhotes enfrentarão um novo problema dessa fronteira já alvo de outros tipos de contrabando; um problema encarnado por traficantes que possuem mais armas que as autoridades, que operam à vontade sem que qualquer ônus judicial recaia sobre eles ou seus financiadores, e que ameaçam os guardas florestais em números limitados por orçamentos reduzidos.

Este texto faz parte de uma colaboração jornalística entre o Mongabay Latam e o Dialogo Chino