Negócios

Cinturão e Rota: qual é o legado e o futuro da iniciativa da China

Conversamos com seis analistas sobre os resultados da Iniciativa Cinturão e Rota da China na última década e o que se pode esperar daqui para frente
<p>Ferrovia em construção na Malásia, em abril de 2023. A linha será conectada a uma rede férrea pan-asiática, que está sendo planejada como parte da Iniciativa Cinturão e Rota da China (Imagem: Alamy)</p>

Ferrovia em construção na Malásia, em abril de 2023. A linha será conectada a uma rede férrea pan-asiática, que está sendo planejada como parte da Iniciativa Cinturão e Rota da China (Imagem: Alamy)

Em 7 de setembro de 2013, o presidente chinês Xi Jinping anunciou na Universidade Nazarbayev, no Cazaquistão, sua proposta de “unir esforços para construir uma nova Rota da Seda”. O discurso é considerado o ponto de partida para o enorme programa de investimento, conectividade e cooperação da China no exterior: inicialmente conhecido como Cinturão Econômico da Rota da Seda, ele se tornou Um Cinturão, Uma Rota e, finalmente, Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês).

A BRI mirou primeiro nos países da Ásia Central com vínculos históricos com a antiga Rota de Seda — uma rede que ligava a Ásia com mercados de outros continentes —, mas a iniciativa cresceu tanto desde então que hoje já abrange 148 países em todos os continentes — menos a Antártica. Até junho de 2023, esses países receberam pouco mais de US$ 1 trilhão em investimentos e contratos para projetos de infraestrutura, além de estabelecer importantes relações comerciais e planos de cooperação sob a bandeira do Cinturão e Rota. 

Os investimentos e oportunidades de desenvolvimento renovaram as esperanças do Sul Global, mas também geraram controvérsias. A implementação da BRI muitas vezes foi relapsa com os impactos socioambientais e muitos desses investimentos favoreceram projetos com alta emissão de carbono. Só em 2019, com o 2º Fórum do Cinturão e Rota, a China acatou os apelos para tornar o Cinturão e Rota mais “verde”.

Nesses últimos dez anos, como foi a evolução da BRI? E o que devemos esperar da iniciativa para a próxima década? O China Dialogue conversou com seis especialistas sobre suas perspectivas a respeito do assunto.

Ma Tianjie, consultor em Beijing, especializado em governança ambiental e investimentos chineses no exterior

Quando a BRI foi proposta pela China, pouco se falava sobre as implicações ambientais dos investimentos chineses no exterior. Na verdade, um dos objetivos declarados da iniciativa era a exportação da capacidade industrial chinesa para países menos desenvolvidos. Dez anos depois, há diversas políticas e diretrizes para “tornar a BRI mais verde”. As ponderações sobre o clima e a biodiversidade têm se destacado cada vez mais nas conversas a respeito da BRI. O principal programa de investimentos da China no exterior percorreu um longo caminho até atingir a governança ambiental.

Mas há uma crítica válida sobre as políticas da “BRI verde”, apontando que elas são fracas e pouco aplicáveis no exterior. O Ministério de Ecologia e Meio Ambiente da China, que liderou a missão de tornar a BRI mais responsável com o meio ambiente, não tem governança no exterior, nem mecanismos contra empresas que operam em jurisdições estrangeiras, onde os padrões e regras ambientais geralmente ficam muito aquém do que é aplicado na China. Talvez o principal avanço ambiental da BRI na última década seja a mudança da política industrial chinesa para o exterior, formulada pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma e seus braços financeiros.

A BRI não só abandonou a ideia original de exportar o excesso de capacidade industrial como também adotou políticas setoriais alinhadas ao mercado interno de tecnologias de ponta. Em 2022, por exemplo, a exportação de energia movida a carvão teve seu financiamento cortado. À medida que avançamos para a segunda década da BRI, as intenções da China de aumentar o apoio à energia verde e limpa também precisará de uma intervenção concreta na política industrial.

Chen Yunnan, pesquisadora do programa de Desenvolvimento e Finanças Públicas do Overseas Development Institute, no Reino Unido

Quando a BRI foi anunciada, a China vivia sua fase mais recente da globalização, e o programa refletia as necessidades de sua economia interna. Naquela época, o objetivo era dar um destino ao excedente de produção, apoiar seus principais setores e exportar tecnologias e equipamentos chineses. Como a economia da China e suas prioridades mudaram, o contexto da BRI também vai mudar.

Uma dessas transformações já ocorreu na forma de financiamento. Desde 2016, os órgãos reguladores financeiros da China têm procurado diminuir seus investimentos. As repercussões disso foram evidentes no enorme declínio do financiamento antes e depois da pandemia de Covid-19. É pouco provável que esse tipo de financiamento volte a ser como antes. O crédito concedido a megaprojetos foi trocado por operações de pequena escala.

No futuro, veremos meios mais inovadores de financiamento verde. Internamente, o Banco Industrial e Comercial da China e o Banco da China têm sido os principais emissores de títulos verdes, cujos recursos podem ser usados para apoiar a energia renovável e outros investimentos em infraestrutura verde. Até o momento, esse mecanismo tem sido pouco utilizado na BRI, mas poderia reduzir o risco no financiamento desses importantes projetos de infraestrutura. 

A tecnologia limpa e de baixo custo da China também pode beneficiar países em desenvolvimento a abrir caminho rumo a um crescimento de baixo carbono — mas isso precisa de um financiamento significativo. Assim como os megaprojetos da BRI se moldaram a partir dos investimentos internos em infraestrutura, a própria transição energética da China provavelmente vai moldar esse processo no exterior. Esse é o caso tanto da exportação de novas tecnologias a novos mercados — como de energia renovável e mobilidade elétrica — quanto da demanda por minérios como cobre, lítio e terras raras, essenciais para essas novas cadeias verdes de produção. 

O importante é entender como os países contemplados pelo Cinturão e Rota aproveitarão essas oportunidades para atualizar seus próprios setores: é nessa área que novos programas de cooperação, como a Iniciativa de Desenvolvimento Global, em conjunto com uma BRI repaginada, podem desempenhar um papel importante.

Lina Benabdallah, professora de política e assuntos internacionais da Wake Forest University, nos EUA

Dez anos após a criação da BRI, ainda não está claro quais são seus parâmetros, orçamento ou objetivos de expansão. No que diz respeito às relações África-China, os primeiros acordos da BRI só foram assinados em 2017. E a pandemia atrasou ainda mais a realização dos primeiros projetos em países africanos. Por ser uma iniciativa relativamente nova no continente, a BRI ainda não teve tempo suficiente para ser devidamente testada. 

No entanto, sabemos por pesquisas do Afrobarometer realizadas em 2021 que 63% dos africanos entrevistados acreditam que a influência econômica e política da China em seus países é positiva. Da mesma forma, as perspectivas de a BRI trazer investimentos e projetos de infraestrutura continuam atraentes para as elites políticas. Por exemplo, o presidente da Argélia, Abdelmadjid Tebboune, disse em uma visita à China em julho que o país estava pronto para desempenhar um papel ativo na BRI e assinou 19 acordos para expandir a cooperação sino-argelina em diversos setores, incluindo tecnologia, energia e defesa.

Nos últimos anos, também houve preocupações sobre a sustentabilidade tributária de vários projetos da BRI na África. Alguns deles, como os de infraestrutura portuária e mineração, receberam bastante atenção da imprensa — e são estratégicos sob o olhar dos governos ocidentais. Para os africanos, a disputa por esses investimentos estratégicos e minerais essenciais pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição. 

Os líderes africanos e as partes interessadas precisam se posicionar a respeito de tendências econômicas globais, como a transição energética. Isso será fundamental para evitar a dependência da exportação de minerais brutos de baixo valor sem aproveitar o potencial de participação na produção de baterias elétricas, veículos e outros bens de valor agregado. Os africanos podem desempenhar papéis vitais nas transformações globais se aproveitarem seus pontos fortes e negociarem acordos vantajosos no âmbito da BRI ou de outras estruturas de cooperação internacional.

Margaret Myers, diretora do programa de Ásia e América Latina do Diálogo Inter-Americano

Nos últimos anos, a América Latina viu uma redução da participação econômica chinesa, seja por meio da BRI ou de outros mecanismos — já que o Brasil, a Colômbia e outras nações da região não são oficialmente membros da BRI.

Essa queda dos investimentos não se aplica necessariamente à relação comercial, que tem sustentado a dinâmica China-América Latina por mais de duas décadas, impulsionada pela busca da China por alimentos, energia e segurança em suas cadeias de abastecimento. As empresas chinesas agora focam em projetos menores e setores que apoiam os objetivos de crescimento econômico da própria China. 

As lições de mais de duas décadas de envolvimento chinês com a região também moldaram as perspectivas da BRI. A Venezuela, que já foi o principal destinatário dos investimentos e financiamentos chineses na América Latina, não recebe mais a mesma atenção de bancos e empresas chinesas, que andam cada vez mais preocupados com o risco político em algumas partes da região. À medida que tentam pagar suas dívidas externas, alguns governos latino-americanos são receosos quanto ao apoio da China em seus projetos. No Chile, alguns políticos expressaram preocupação com a dependência econômica em relação à China, embora o investimento lá ainda seja bem mais limitado do que em outras partes da região.  

Os interesses da China na América Latina têm um histórico ambiental duvidoso, mesmo com a promessa de uma BRI mais verde. A China tem desempenhado um papel fundamental no fornecimento de soluções em energia renovável e na eletrificação do transporte, mas a atividade das empresas chinesas no setor de mineração também cresce em meio à elevada demanda por minerais essenciais. A China também continua sendo um dos principais impulsionadores da produção de soja e de outros produtos agrícolas em larga escala na região, com graves implicações para o meio ambiente. 

Oyintarelado (Tarela) Moses, analista de dados do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, nos EUA

Entre 2008 a 2021, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação e Importação da China forneceram sozinhas quase US$ 500 bilhões em empréstimos a outros países, o equivalente a 83% dos empréstimos feitos pelo Banco Mundial, o maior banco de desenvolvimento do mundo. Esse crédito proporcionou aos países da Ásia, África, Europa, América Latina e Caribe um novo acesso a capital para projetos de desenvolvimento. Porém, com a paralisação econômica provocada pela pandemia, cresceu também o endividamento dos projetos contemplados pela BRI.

Os credores chineses no exterior agora são incentivados a financiar projetos menores e mais benéficos para o meio ambiente. Enquanto isso, a China está diversificando seus tipos de empréstimo. Em vez de uma eliminação progressiva da BRI, a tendência é que o financiamento mude de forma e escopo, com uma roupagem voltada à sustentabilidade financeira e ambiental.

Zofeen Ebrahim, jornalista, Paquistão

Quando cresci em Lahore, na província de Punjab, nas décadas de 1970 e 1980, conheci muitos chineses. Os salões de beleza eram administrados por mulheres chinesas, assim como os melhores restaurantes chineses, e faziam muito sucesso. Todas elas falavam urdu e inglês, usavam roupas paquistanesas e seus filhos estudavam conosco. Anos depois, na década de 2010, uma nova onda de trabalhadores chineses chegou ao Paquistão. Dessa vez, eram banqueiros, empresários, engenheiros, trabalhadores da construção civil e mineração, trabalhando em projetos de infraestrutura do Corredor Econômico China-Paquistão (Cpec).

Mas, na maior parte do tempo, não interagimos com eles. Além da enorme barreira do idioma, a maioria dos trabalhadores chineses vive em bairros projetados em seus locais de trabalho, sob forte segurança. Eles raramente se misturam com paquistaneses e, portanto, nunca experimentam a cultura paquistanesa em primeira mão.

Como jornalista que fez reportagens sobre o Cpec na última década, tive que passar por longos processos só para obter permissão para falar com um engenheiro chinês que trabalhava na fazenda de energia solar em Bahawalpur; com um trabalhador chinês de minas em Tharparkar; ou com um funcionário do porto em Gwadar. Além disso, eles só falavam sobre seu trabalho. Era quase impossível descobrir como era para eles viver e trabalhar no Paquistão.

Essa opacidade e a falta de contato entre chineses e paquistaneses contribuíram para a desconfiança e a suspeita em relação aos projetos chineses.

Além disso, o Cpec tem prometido demais e cumprido de menos. As autoridades paquistanesas afirmam que o corredor é um “divisor de águas” que criou quase 200 mil empregos para os paquistaneses, mas a população que vive nas áreas próximas de vários que visitei estão descontentes e reclamam da falta de oportunidades de emprego.

A falta de transparência também contribuiu para a suspeita sobre a verdadeira dívida do Paquistão com a China, que cresceu como resultado dos empréstimos para os projetos do Cpec e das usinas de carvão ainda em construção.

À medida que o Cpec entra em sua segunda década, é preciso resgatar a confiança e a compreensão do povo paquistanês. Em vez de uma abordagem de cima para baixo, pergunte à população local o que ela quer, dê a ela a propriedade e o controle dessa iniciativa.Permitir e incentivar uma melhor cobertura da imprensa sobre o Cpec seria um passo importante para melhorar a confiança e o entendimento, inclusive para os jornalistas apontarem eventuais falhas. A China deve permitir críticas e não se sentir ameaçada.

Esta matéria foi publicada originalmente no China Dialogue.