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Com investimento chinês, Brasil pode se tornar polo de veículos elétricos para América Latina

Mercado de veículos elétricos cresce rapidamente no Brasil com aportes bilionários do exterior. O que falta para o país entrar de vez na era da eletromobilidade?
<p>Apresentação do grupo Olodum em julho, na inauguração da fábrica da montadora chinesa BYD em Camaçari, Bahia. A empresa anunciou um investimento de R$ 3 bilhões em três fábricas no estado (Imagem: Alamy)</p>

Apresentação do grupo Olodum em julho, na inauguração da fábrica da montadora chinesa BYD em Camaçari, Bahia. A empresa anunciou um investimento de R$ 3 bilhões em três fábricas no estado (Imagem: Alamy)

Recordes de vendas de veículos eletrificados e investimentos chineses bilionários no setor podem marcar uma guinada na indústria automotiva do Brasil — e influenciar vizinhos da América do Sul. 

Embora os veículos elétricos e híbridos representem apenas 3,85% da frota brasileira, suas vendas mais que dobraram entre janeiro e agosto em relação ao mesmo intervalo de 2021, marca que levou a ABVE, associação que representa setor, a classificar o período como “os oito meses que mudaram a eletromobilidade” do país.

Veículos eletrificados

Veículos eletrificados incluem os 100% elétricos (VEs) e os híbridos (VEHs), que têm motores tanto a combustão quanto elétrico.

“Quando a participação [de veículos eletrificados] se aproximou dos 5% em outros países, a curva de crescimento passou a ser exponencial”, disse Thiago Sugahara, gerente de ESG da Great Wall Motors (GWM) Brasil, montadora chinesa de veículos eletrificados, e diretor da ABVE, em uma live em julho. 

Além do salto em vendas, dois anúncios de investimentos vultosos sacudiram o mercado brasileiro. 

No primeiro, a GWM arrematou a fábrica que pertencia à Mercedes Benz em Iracemápolis, em São Paulo, em 2021. Naquele ano, a GWM anunciou seus planos de investir R$ 10 bilhões até 2032 e começará sua produção de híbridos e elétricos, incluindo SUVs, em 2024.

“Nossa fábrica já vai ter capacidade instalada e licenciada de produzir 50 mil unidades [por ano], podendo chegar a cem mil”, disse o diretor de Assuntos Institucionais da GWM Brasil, Ricardo Bastos, ao Diálogo Chino. “Para essa capacidade de cem mil, estamos contando com as exportações [para a América Latina]”.

Em abril, o vice-presidente Geraldo Alckmin (ao centro) visitou a fábrica da montadora chinesa Great Wall Motors em Iracemápolis, São Paulo
Em abril, o vice-presidente Geraldo Alckmin (ao centro) visitou a fábrica da montadora chinesa Great Wall Motors em Iracemápolis, São Paulo. Ao lado dele, estavam o diretor de assuntos institucionais da GWM, Ricardo Bastos (segundo da esquerda para a direita), o embaixador chinês no Brasil, Zhu Qingqiao (segundo da direita), e James Yang (mais à direita), presidente regional da GWM para a América Latina (Imagem: GWM)

O segundo investimento de peso ficou por conta da maior montadora de veículos eletrificados do mundo, a Build Your Dream (BYD), em local simbólico para os entusiastas da transição energética: o Complexo de Camaçari, na Bahia, um dos maiores polos petroquímicos do hemisfério sul. 

A aliança começou a se delinear durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China em abril. E em julho, a BYD anunciou investimentos de R$ 3 bilhões em três fábricas dentro desse complexo: uma voltada à produção de chassis para ônibus e caminhões elétricos, outra para carros híbridos e elétricos e uma terceira para processar lítio e ferro fosfato, exportados para compor baterias de veículos. 

De Camaçari, sairá o primeiro veículo elétrico (VE) 100% brasileiro, o BYD Dolphin, hoje já um sucesso de importação pelo país. “O Brasil é um dos mercados automotivos de maior importância no mundo e, para a BYD, será o hub da América Latina”, disse Alexandre Baldy, conselheiro da BYD no Brasil. “Será a apresentação da greentech ao país da Amazônia, abrindo o mercado para o restante da região”.

E não para por aí. Em 2022, a fabricante de ônibus elétrico chinesa Higer Bus também declarou a intenção de investir US$ 50 milhões em uma fábrica na zona portuária de Pecém, em Fortaleza — região visada para a produção de hidrogênio verde no Brasil – e, neste ano, anunciou os planos de erguer uma segunda fábrica no Centro-Oeste. Em encontro com  o vice-presidente Geraldo Alckmin, em julho, o diretor da Higer América Latina, Marcelo Barella, afirmou que a empresa quer tornar o Brasil sua base de exportação para a América Latina. 

Sem falar na sueca Volvo, cuja maior parte pertence à chinesa Geely, que anunciou em 2022 investimentos de R$ 881 milhões em sua fábrica em Curitiba, Paraná, para pesquisa e desenvolvimento (P&D) focado em descarbonização. Até 2025, a montadora, que tem alguns dos VEs mais vendidos do Brasil, espera aportar R$ 1,5 bilhão no total.

Entre os executivos consultados pelo Diálogo Chino, o discurso é de que o Brasil tem vantagens competitivas para se tornar um hub regional, como ter um parque fabril diversificado, que oferece desde peças à montagem; uma matriz energética predominantemente limpa, com base em hidrelétricas; além de reservas de lítio, essenciais para a produção de baterias.

E a China tem papel “crucial” no desenvolvimento deste setor no Brasil, segundo Paulo Roberto Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). “Mas ela quer nosso mercado”, pondera o pesquisador. “Compete ao governo brasileiro exigir da China a transferência de tecnologia, de apoio à criação de uma montadora nacional [de VEs], de formação de engenheiros, etc. A China faz isso com toda a empresa que se estabelece lá”.

A guinada chinesa em VEs

Não é à toa que os maiores investimentos na eletromobilidade no Brasil — e na América Latina — têm origem na China. Há pouco mais de uma década, a segunda maior economia mundial vislumbrou no setor não só a chance de se tornar uma potência automotiva global, como a de liderar a transição energética em um mundo pressionado pela emergência climática. 

“A China percebeu que essa tecnologia tinha o potencial de resolver vários problemas importantes, como o de reduzir a poluição do ar, a dependência de petróleo importado e reconstruir a economia após a crise financeira de 2008”, afirma Murilo Briganti, da Bright, uma das principais consultorias do mercado automotivo no Brasil. 

A partir daí, a China se tornou o maior mercado de veículos elétricos do mundo, respondendo hoje por cerca de dois terços das vendas mundiais — a cada quatro veículos vendidos na China, um é movido à eletricidade. Além das fabricantes nacionais, como a BYD e GWM, a americana Tesla, uma das líderes de vendas de VEs, também produz no país asiático — e fabrica mais em Xangai do que em sua unidade mais produtiva dos Estados Unidos, em Fremont, na Califórnia.

Homem carrega carro elétrico em uma estação em Beijing
Homem carrega seu carro elétrico em uma estação em Beijing. A China é o maior mercado global de veículos elétricos e responde por cerca de dois terços das vendas mundiais (Imagem: Alamy)

A China detém ainda cerca de 80% da capacidade mundial de refino das matérias-primas para baterias, como lítio e níquel, e em dez anos ampliou em 66 vezes a infraestrutura de recarga de baterias, hoje com duas milhões de estações públicas em todo seu território. 

Para assumir a liderança desse mercado, o governo chinês ofereceu uma série de subsídios e incentivos fiscais à indústria de veículos eletrificados e a seus consumidores. Estima-se que, entre 2009 e 2022, o país tenha distribuído US$ 29 bilhões em incentivos. 

“Uma das medidas [da China] foi zerar o imposto do carro elétrico ao consumidor, fazendo com que ele custasse o mesmo que um veículo à combustão”, explica Feldmann, da USP. 

Os subsídios chineses em VEs para clientes terminaram formalmente no início deste ano, mas um novo pacote de incentivos fiscais de quatro anos, no valor de US$ 72  bilhões, foi anunciado em setembro.

China investe na América do Sul

Os frutos da política chinesa de incentivo à eletromobilidade logo respingaram em outros países. O investimento chinês no mercado de VEs no exterior já aumentou 40 vezes, de US$ 605 milhões, em 2016, para mais de US$ 24 bilhões, em 2022. 

No Brasil, a produção de VEs atraiu 28% dos investimentos chineses em 2022, com um total de US$ 365 milhões, segundo um recente relatório do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). Além disso, todos os projetos chineses no setor automotivo brasileiro estão hoje ligados à agenda de transição energética, diz o relatório, seja pela fabricação de ônibus e carros eletrificados ou por iniciativas de P&D.

“O Brasil é um importante mercado consumidor de veículos da China, que produz muito, e pode servir como hub de vendas para o Mercosul”, disse Tulio Cariello, autor do relatório e diretor de pesquisa no CEBC, ao Diálogo Chino

Outro país sul-americano a receber recursos chineses para a eletromobilidade foi a Argentina. Em fevereiro, a montadora chinesa Chery anunciou a construção de uma fábrica para produzir 20 modelos de VEs e baterias de lítio, em parceria com a Gotion, empresa chinesa de baterias instalada no norte argentino, área próxima às reservas de lítio do país. Junto à Bolívia e ao Chile, a Argentina forma o chamado Triângulo do Lítio, onde está dois terços das reservas de lítio do mundo. 

Mas da mesma forma que no Brasil, o desafio argentino é levar a China a investir na indústria local. “A Argentina tem o recurso, mas temos que fazer com que a China avance junto conosco no desenvolvimento de células e baterias, como um sócio”, disse Flavia Royón, secretária de Energia do governo de Alberto Fernández, presidente argentino, ao Diálogo Chino. 

Em 2022, a Y-TEC, empresa estatal argentina de pesquisa à indústria energética, anunciou a primeira fábrica para produzir baterias de lítio na América Latina, que deve fomentar o ainda incipiente mercado de eletrificados no país: em 2022, foram vendidos apenas 240 VEs, enquanto o segmento dos híbridos está relativamente mais desenvolvido, com 7697 unidades vendidas no mesmo período, segundo a Andefa, associação de fabricantes de automóveis. 

Já o Chile é um dos líderes em eletrificação do transporte público na região: um quinto dos 7,4 mil ônibus da rede pública da capital, Santiago, são elétricos, segundo um levantamento feito por Franco Basso, pesquisador da Universidade Católica de Valparaíso e especialista em mobilidade sustentável. E em agosto, o governo chileno lançou uma política para expandir a eletrificação da frota de ônibus a outras quatro regiões do país até 2025. 

Segundo Diego Mendoza Benavente, secretário-geral da Associação Nacional Automotiva do Chile, um programa em curso deu incentivos à renovação de táxis para elétricos. “E a próxima fase terá como alvo o transporte interurbano e os veículos particulares”, explicou ao Diálogo Chino.

Ônibus elétrico em Santiago, Chile
Ônibus elétrico em Santiago, Chile. A meta do país é acabar com as vendas de carros e ônibus com motor a combustão até 2035 (Imagem: Benjamin Lecaros / Alamy)

A meta do país é abandonar carros e ônibus a combustão até 2035 e investir na exploração mineral da transição energética: em outubro, o presidente Gabriel Boric anunciou que a chinesa Tsingshan Holding Group investirá US$ 233 milhões em uma fábrica no país destinada a produzir fosfato de ferro-lítio, utilizado nos veículos elétricos. 

O Uruguai também deve impulsionar a eletromobilidade a partir do transporte público, com subsídios governamentais. Juan Salgado, presidente da CUTCSA, principal empresa de transporte público uruguaia, comprou 20 ônibus elétricos da BYD em 2019 e, dois anos depois, decidiu não mais adquirir veículos a gasolina. “O objetivo é renovar, a partir de 2025, 25% da frota a cada cinco anos até chegar a 2040 com toda ela renovada”, disse. 

Enquanto isso, o mercado de veículos leves cresce no país: de 2020 para cá, as vendas aumentaram sete vezes, com 1.225 veículos vendidos em 2022.

Faltam políticas para VEs no Brasil

Enquanto os vizinhos implementam planos nacionais de incentivo à indústria de VEs, questões burocráticas do governo brasileiro emperram o anúncio do Mobilidade Verde, programa voltado para o setor automotivo, com incentivos à sua descarbonização. “Fala-se muito na mobilidade verde, mas de prático nada acontece”, diz Paulo Roberto Feldmann, da USP. “Não há nenhum país que tenha entrado na rota da transição energética da indústria automotiva sem incentivos e investimentos públicos”. 

Além disso, o governo pretende derrubar a atual isenção de imposto à importação de VEs, medida criticada pela ABVE.

Não há nenhum país que tenha entrado na rota da transição energética da indústria automotiva sem incentivos e investimentos públicos
Paulo Roberto Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP

“Reduzir o imposto de importação é uma forma de fomentar esse mercado no país. O consumidor passa a conhecer o produto e incentiva o nascimento de um novo ecossistema necessário a uma futura produção nacional”, diz Daniel Caramori, diretor de veículos leves da ABVE e gerente sênior de relações governamentais da GM. “Se o imposto aumentar, vai dar uma freada neste mercado no Brasil e atrapalhar os planos das empresas que estão se instalando aqui”.

Segundo os executivos consultados pelo Diálogo Chino, a esperança das montadoras chinesas é que o setor se torne uma prioridade na agenda ambiental do governo Lula. Uma das sinalizações importantes foi a nomeação de Adalberto Maluf, ex-BYD e ABVE, para a Secretaria Nacional do Meio Ambiente Urbano.

Em entrevista ao Diálogo Chino, Maluf explicou que sua pasta trabalha para eletrificar o transporte público e que, apesar de reconhecer a demora no lançamento do Mobilidade Verde, o governo federal aprovou em agosto a distribuição mais de R$ 10 bilhões para financiar a compra de ônibus elétricos e relançou um projeto um adormecido: a Plataforma Nacional da Mobilidade Elétrica, que reúne governo, academia e empresas para debater políticas para o setor.

“É verdade que ainda não há uma política clara, mas vontade política há de sobra”, afirma Maluf. “A eletromobilidade dará um salto no Brasil em 2024, especialmente no setor de ônibus, com prefeitos querendo renovar a frota em ano eleitoral”. 

O secretário citou planos já em curso para ônibus, como as metas da prefeitura do Rio de Janeiro de eletrificar 100% da frota até 2032 e a de São Paulo, de 20% até 2024.

O governo federal também liberou R$ 368 milhões para o governo do Pará comprar 265 ônibus elétricos e movidos a gás natural para a cidade de Belém, que deve sediar a conferência climática COP30 em 2025. A ideia do governo é tornar Belém, capital do estado líder em desmatamento, um modelo de cidade sustentável para o mundo.