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Comércio ilegal de cavalos-marinhos entre México e China prospera sem fiscalização

Cavalos-marinhos vindos do México são traficados por via aérea e marítima para uso na medicina tradicional
<p>Cavalos marinhos do México são contrabandeados para a China para uso na medicina tradicional (Imagem: Alamy)</p>

Cavalos marinhos do México são contrabandeados para a China para uso na medicina tradicional (Imagem: Alamy)

Em 19 de julho de 2018, Daquan Zhen embarcou em um voo em Belize com destino a Shanghai, com escala no México. Quando Zhen despachou sua bagagem no Aeroporto Internacional da capital mexicana, os agentes alfandegários notaram um forte cheiro de peixe fresco.

Ao revistar as malas de Zhen, os agentes encontraram seis bolsas pretas contendo 81 cavalos-marinhos, pepinos-do-mar e bexigas natatórias pertencentes a peixes não identificados. A maioria destas espécies marinhas que deixam o México é usada na medicina tradicional chinesa, por suas supostas propriedades afrodisíacas. Os cavalos-marinhos são triturados e misturados em sopas ou vinhos para melhorar a função renal, equilibrar o Yin-Yang, tratar a impotência masculina e a infertilidade feminina.

Você sabia?


O cavalo-marinho é o único peixe que pode nadar ereto

A China continental é o maior consumidor mundial de cavalos-marinhos, responsável pela compra de cerca de 500 toneladas por ano. Já o México é uma das principais fontes do produto, embora exportar cavalos-marinhos do país sem as devidas autorizações – só emitidas para fins de pesquisa – seja um crime punível por até nove anos de prisão.

Mesmo assim, o tráfico para a Ásia aumentou nos últimos anos, possibilitado pela incompetência e impunidade de ambos os lados do comércio. Não há cavalos-marinhos secos importados legalmente do México para consumo desde que uma proibição, acordada internacionalmente, entrou em vigor em 2012.

Entre 2001 e 2019, traficantes tentaram contrabandear 95.589 cavalos-marinhos do México, de acordo com a Agência Federal de Proteção Ambiental (Profepa). No entanto, é provável que o número real seja muito maior, já que especialistas apontam para uma considerável subnotificação de casos por parte das autoridades mexicanas.

Desse total, 64% foram destinados a Hong Kong, Beijing e Shanghai. O restante foi para o mercado local mexicano, de acordo com os registros de apreensões da Profepa obtidos pela Diálogo Chino por meio da lei de transparência do México.

A demanda chinesa por cavalos-marinhos continua alta, apesar das dificuldades para obter licenças para negociá-los legalmente. Traficantes costumam enviá-los via Hong Kong, onde as regras são mais frouxas e os comerciantes já estão familiarizados com rotas de contrabando para  a China continental.

O julgamento de Zhen

No dia 19 de julho, Zhen compareceu perante a juíza Angélica Lucio e admitiu ter cometido um crime ambiental. Ele foi colocado em prisão preventiva. No México, cavalos-marinhos estão listados como espécies sujeitas a proteção especial sob a Lei Geral de Equilíbrio Ecológico e Proteção Ambiental e a Lei Geral de Vida Selvagem. Além disso, também são mencionados no artigo 420 do Código Penal Federal e figuram no Segundo Apêndice da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies de Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (CITES), da qual o México faz parte.

Traficantes como Zhen não costumam receber mais do que uma multa. Mas o caso dele tomou outro rumo.O Juiz Lucio ordenou que Zhen fosse mantido em Reclusorio Sur, uma prisão localizada nos arredores da Cidade do México que abriga 4.594 detentos —  muitos dos quais cumprem penas por homicídios, violência sexual, roubo, extorsão e crime organizado. De acordo com os arquivos obtidos pelo Diálogo Chino, a acusação tinha provas suficientes para enviar Zhen à prisão. A indenização pelo crime foi acordada em 22.696 dólares.

Os juízes têm a tendência de não condenar porque parece duro demais alguém ir para a cadeia por ter ovos de tartaruga ou tripas de totoaba ou cavalos-marinhos

O julgamento, porém, foi leniente com Zhen. Os promotores substituíram a sentença por uma multa e advertiram Zhen a nunca mais voltar ao México. A pena foi reduzida para 6.600 dólares e Zhen foi liberado   mesmo tendo sido considerado culpado de tráfico para fins comerciais.

Israel Alvarado, ex-diretor geral de Crimes Federais contra o Meio Ambiente e Litígios no Profepa, disse que este tipo de caso quase sempre termina assim devido à corrupção e à falta de treinamento do pessoal do Profepa, do Ministério Público e dos juízes.

“Os juízes têm a tendência de não condenar porque parece duro demais alguém ir para a cadeia por ter ovos de tartaruga ou tripas de totoaba ou cavalos-marinhos”, disse Alvarado. 

O caso de Zhen é apenas um dos 56 casos trazidos pelo Profepa após apreensões de cavalos-marinhos, de acordo com o banco de dados. Destes 50, pelo menos 36 ocorreram no Aeroporto Internacional da Cidade do México, um importante centro mundial de transporte.

Tráfico de cavalos-marinhos

Segundo Sarah Foster, especialista em comércio global de cavalos-marinhos, é muito fácil cruzar fronteiras transportando cavalos-marinhos secos. “Eles são pequenos e, quando secam, duram por um bom tempo. É comum contrabandeá-los junto com remessas de outros frutos do mar secos, bagagem pessoal, ou por outras rotas difíceis de serem detectadas”, diz.

Foster salienta que evidências sugerem que boa parte dos cavalos-marinhos secos ou congelados que cruzam as fronteiras o fazem ilegalmente, e não são gerenciados ou monitorados, como exigido pela CITES. 

“Uma grande quantidade é levada através da DHL e outros serviços de entrega”, disse Alicia Poot, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesca do México (Inapesca). “Somente se os trabalhadores souberem que é ilegal e fizerem uma denúncia que é possível impedir que isso ocorra.as na maioria das vezes eles não sabem”, acrescentou ela.

Exportações de cavalos-marinhos são autorizadas pontualmente para fins de pesquisas comerciais e de aquicultura, desde que as partes envolvidas tenham um plano de manejo aprovado pelas autoridades ambientais, como informa Abraham Huerta, ex-funcionário da Secretaria de Pesca da Baja California.

Entretanto, nenhuma permissão é emitida atualmente para consumo doméstico ou comercial, o que tem ajudado a empurrar o comércio para o mercado clandestino. 

O epicentro de Hong Kong

A fraca fiscalização e a aplicação da lei no lado da demanda também permitem que o comércio ilegal de cavalos-marinhos prospere. Em parceria com Diálogo Chino, jornalistas do site de Hong Kong HK01 visitaram lojas que vendem cavalos-marinhos, encontrando pessoas dispostas e ansiosas para contrabandeá-los para a China continental.

Cavalos-marinhos podem ser facilmente encontrados nas lojas de frutos do mar secos de Hong Kong. São produtos caros devido ao seu fornecimento limitado.

O preço de 100 gramas de cavalos marinhos secos pode variar entre 120 e 580 dólares, dependendo do tamanho e da origem.

Sua popularidade, contudo, não se reflete nos dados do Departamento de Censo e Estatística de Hong Kong, que mostram um claro declínio da importação legal de cavalos-marinhos na última década. Os números têm caído desde 2010, quando foram importados quase 8 mil quilos, para apenas 221 quilos em 2019.

cavalos marinhos e outras espécies aquáticas em um mercado de Hong Kong Os cavalos marinhos são facilmente encontrados nas lojas de Hong Kong. O preço varia de acordo com o tamanho e a origem (Imagem: HK01)[/caption]

Entre 2009 e 2011, Hong Kong teve um aumento repentino no comércio de cavalos-marinhos com o México em comparação com os anos anteriores. Em apenas dois anos, as vendas saltaram de 200 quilos para 900 quilos o equivalente a 250 mil cavalos-marinhos. O México não informou estes números à CITES e nunca explicou a discrepância, de acordo com Foster. 

Ao contrário da venda local em Hong Kong, é necessário ter licenças para a exportação de cavalos-marinhos secos para a China continental, o que pode desestimular potenciais vendedores. 

“Não leve cavalos-marinhos para a China continental você mesmo. A alfândega vai te prender”, disse longe das câmeras um vendedor numa loja de frutos do mar secos em Mong Kok, um importante centro comercial de Hong Kong. “Nós conhecemos o caminho das pedras, você não precisa se preocupar. Temos clientes na China continental”, acrescentou.

O vendedor alegou que seus cavalos-marinhos secos vêm principalmente das Américas, incluindo o México, e são importados por fornecedores de medicamentos para a indústria de medicina tradicional chinesa. Os funcionários da loja explicaram que um serviço de entrega pode ser fornecido por uma taxa adicional de 26 dólares, mas que nenhum serviço de entrega regular aceitaria o pedido. 

Você sabia?


acredita-se que existam entre 33 e 71 espécies de cavalos-marinhos em todo o mundo, das quais quatro habitam os mares mexicanos

“Não é fácil atravessar a fronteira com as mercadorias. Temos que buscar a ajuda de outros. De qualquer forma, temos nossas próprias maneiras. Também temos que fornecer produtos a restaurantes em Shenzhen”, disse o vendedor. 

“Não há como enviar cavalos-marinhos secos para a China continental usando os procedimentos convencionais. A única maneira de fazê-lo é traficando”, disse outro proprietário de uma loja de frutos do mar secos no distrito de Sheung Wan. 

O proprietário explicou que a solicitação de licenças de exportação envolve pesados impostos, mas que ele poderia ajudar. “Eu posso te ajudar a arrumar isso, não importa o produto. Se as pessoas estiverem dispostas a aceitar seu dinheiro, isso pode ser feito”, disse.

A demanda da medicina tradicional chinesa

De acordo com Zhang Shiping, professor associado da Escola de Medicina Chinesa da Universidade Batista de Hong Kong, a medicina tradicional acredita que os cavalos-marinhos ajudam a fortalecer o rim e a equilibrar o Yin-Yang. 

“Eles funcionam graças aos hormônios sexuais dos cavalos-marinhos. Os hormônios sexuais em nosso corpo diminuem devido ao envelhecimento, então as pessoas mais velhas podem precisar tomá-los”, disse Zhang.

É possível eliminar as proibições e tomar medidas para um comércio legal e sustentável. Para o comércio de cavalos-marinhos, pelo menos, existem ferramentas para fazê-lo corretamente

Embora alguns praticantes de medicina tradicional prescrevam cavalos-marinhos, Zhang enfatizou que os usos culinários na sopa ou no vinho são mais comuns em Hong Kong e na China continental, e que têm menos efeitos colaterais. 

Zhang também disse que é possível substituir cavalos-marinhos por algumas ervas que compartilham propriedades curativas semelhantes. Apesar de os produtos substitutos serem encorajados, a demanda por cavalos-marinhos persiste.

Para Foster, a proibição do comércio de cavalos-marinhos não está funcionando e os altos custos e dificuldades na obtenção de licenças para sua venda legal no México, Hong Kong e China continental servem apenas para incentivar o comércio ilegal. Na ausência de aplicação de medidas eficazes, o mínimo que poderia ser feito é garantir que o comércio funcione dentro de parâmetros internacionais existentes para a proteção dos cavalos-marinhos.

“É possível eliminar as proibições e tomar medidas para um comércio legal e sustentável. Para o comércio de cavalos-marinhos, pelo menos, existem ferramentas para fazê-lo corretamente”, diz.