Justiça

Povos indígenas do Peru lutam para sobreviver à Covid-19

A pandemia de coronavírus teve um efeito devastador sobre as comunidades indígenas amazônicas do Peru, que têm acesso muito limitado aos serviços de saúde pública
<p>A pandemia tem sido especialmente devastadora entre as comunidades indígenas amazônicas do Peru (imagem: Sebastián Castañeda)</p>
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A pandemia tem sido especialmente devastadora entre as comunidades indígenas amazônicas do Peru (imagem: Sebastián Castañeda)

Quando a pandemia de Covid-19 chegou ao Peru em março de 2020, a cidade de Lima foi a primeira a ser atingida. O vírus parecia estar longe da Amazônia, uma região que carece seriamente de serviços públicos e onde muitas comunidades indígenas vivem em áreas inacessíveis.

Mas isso não impediu que o vírus chegasse rapidamente à comunidade amazônica do bairro de Cantagallo, próximo ao centro da cidade. Trata-se de um assentamento com casas precárias, sem serviços de água e saneamento, habitado principalmente por migrantes Shipibo-Konibo da região de Ucayali.

Muitos são artesãos e sua renda depende do que podem vender a cada dia. Assim, quando o lockdown foi decretado em 15 de março de 2020, ficou cada vez mais difícil para a comunidade cobrir suas despesas. Quando a primeira morte foi relatada na vizinhança, a polícia estabeleceu um cordão de isolamento, tornando o acesso à água, alimentos e serviços de saúde ainda mais difícil.

Notícias de pessoas mortas pela Covid-19 em Cantagallo rapidamente chegaram à cidade amazônica de Pucallpa, capital de Ucayali, do outro lado dos Andes, onde há uma expressiva comunidade Shipibo-Konibo.

Embora o vírus ainda não tivesse chegado por lá, Shimpukat Soria, um artista mais conhecido como Shimpu, soube que um colega de Cantagallo havia contraído o vírus e morrido de Covid-19. Ciente de que já havia pessoas em quarentena, sem possibilidade de sair em busca de remédios, Shimpu pôs mãos à obra.

Ele e outros jovens Shipibo de Pucallpa coletaram folhas de mático (Piper aduncum), uma espécie de planta muito usada pela sua aldeia devido às suas propriedades medicinais em tratamento de feridas e inflamações. O grupo enviou um carregamento para o bairro de Cantagallo, que até então estava isolado para evitar a propagação da doença.

Comunidades indígenas afetadas

A América Latina tem algumas das maiores taxas de infecções e mortes de Covid-19 do mundo, mas a pandemia tem sido especialmente devastadora entre as comunidades indígenas amazônicas. Espalhadas ao longo dos rios, com pouco acesso a água limpa e saneamento, e muitas vezes sem nem mesmo centros de saúde básicos, essas comunidades dependem fortemente da medicina tradicional.

Até dezembro de 2020, mais de 73 mil casos haviam sido relatados entre os povos indígenas das regiões amazônicas dos nove países que compartilham a bacia, e mais de 2.100 pessoas haviam morrido, de acordo com relatórios compilados pela Igreja Católica e pela Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA).

O número real é provavelmente maior, dado que muitos casos e mortes não são relatados, diz Gregorio Díaz, um dos coordenadores da COICA. Fato é que os povos indígenas são, em grande parte, invisíveis nas estatísticas nacionais. O Peru só começou a tomar nota da origem étnica dos pacientes muito tempo depois da primeira onda da pandemia.

Para os povos indígenas, a perda é irreparável. O vírus tende a ser mais mortal em pessoas com mais de 50 anos de idade e afeta de maneira desproporcional os idosos indígenas.

Ilda Ahuanari morreu no dia 10 de maio no porto de Nauta, no rio Marañón, a 100 quilômetros de Iquitos, no final da única rodovia pavimentada da região de Loreto. Ela tinha 78 anos. Ahuanari, uma mulher Kukama, ajudou a reacender o interesse pela língua Kukama em Nauta e cidades vizinhas depois que a geração mais jovem havia parado de usá-la.

Shimpukat acredita que a única maneira de lidar com o coronavírus nas comunidades indígenas é combinar as práticas tradicionais com a medicina ocidental. Os especialistas em saúde, incluindo os da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), estão de acordo, mas a ideia está longe de se concretizar.

Uma reação rápida, mas drástica

A Covid-19 pegou o Peru desprevenido. No entanto, o governo reagiu rápida e drasticamente. O primeiro caso confirmado foi relatado em 6 de março e, já no dia 15 de março, o então presidente Martín Vizcarra anunciou o fechamento total do país, confinando todos exceto os trabalhadores essenciais às suas casas.

Mas o governo tampouco estava preparado para as consequências. Cerca de 70% dos trabalhadores peruanos estão empregados na economia informal e geralmente ganham apenas o suficiente para sobreviver. A ajuda do governo tardou a chegar, então, quando suas escassas economias se esgotaram, eles foram forçados a sair e procurar trabalho, violando as leis de isolamento.

Foi o que aconteceu em Iquitos, a maior cidade amazônica do Peru e a maior área urbana da Amazônia não acessível por rodovias. Na época em que o governo declarou lockdown, muito provavelmente o coronavírus já estava em plena e silenciosa expansão pelas favelas superpovoadas próximas aos portos e ao redor dos limites da cidade.

A Diretoria Regional de Saúde foi pega de surpresa e respondeu apressadamente, reservando o hospital público regional para os pacientes da Covid-19. Entretanto, este e demais centros de saúde já estavam com falta de pessoal mesmo antes da pandemia, e a região logo começou a operar com cerca da metade do número usual de médicos.

Em poucas semanas, o hospital ficou sobrecarregado. Corredores e salas de espera foram transformados em enfermarias improvisadas. Quando não havia mais camas, os pacientes se deitavam em esteiras no chão, cada uma presa por um tubo flexível a um cilindro de oxigênio. Algumas pessoas relataram que corpos embrulhados em lençóis se amontoavam mais rápido do que podiam ser retirados.

Então, Iquitos ficou sem ar. A planta geradora de oxigênio do hospital estava apenas parcialmente operacional quando a pandemia chegou, e a demanda excedeu rapidamente a capacidade de fornecimento. Parentes desesperados de pacientes em estado grave fizeram fila durante horas em frente às duas usinas geradoras privadas da cidade.

Um xamã realiza um ritual
Um xamã realiza um ritual em uma comunidade indígena no Peru (imagem: Sebastián Castañeda)

Fiel à lei de oferta e demanda, o preço de um cilindro de oxigênio que teria custado cerca de 150 dólares em janeiro, havia disparado para mil dólares em maio. Os medicamentos essenciais, já escassos, tornaram-se proibitivamente caros.

Estranhamente, a contagem oficial de casos aumentou pouco e o número de mortes permaneceu estável por dias, em torno de 90. Mas, esses números eram uma ilusão. Em parte, a baixa contagem de casos aconteceu pela falta de kits de teste: apenas os casos com resultado positivo foram contados oficialmente, e com kits em falta e pouco tempo para reagir, os médicos trataram qualquer pessoa com sintomas como se fosse um paciente da Covid-19.

Também há uma outra explicação para o baixo número de morte: todos os membros da Unidade de Epidemiologia do hospital, exceto um, estavam doentes com o vírus, de modo que não havia pessoal para atualizar os registros.

Comunidades indígenas organizadas na Peru

Deixadas à sua própria sorte, as comunidades indígenas se organizaram. Em algumas comunidades, famílias deixaram suas casas e foram para a floresta, onde construíram abrigos. Em uma nova casa, essas famílias aguardavam até que a pandemia passasse, e se alimentavam com os alimentos que caçavam, pescavam ou cultivavam em pequenas hortas.

Outras comunidades optaram por se fechar ao resto do mundo, mas isso se mostrou quase impraticável, uma vez que os aldeões que haviam migrado para as cidades logo voltavam para casa quando o dinheiro e a comida se tornavam escassos.

A pandemia levou mais tempo para chegar a Pucallpa, embora a cidade tenha uma ligação terrestre com a densamente povoada costa peruana. Mas as autoridades pouco fizeram para evitar o colapso do sistema de saúde tal como ocorrera em Iquitos. E em pouco tempo, o hospital de Pucallpa ficou sobrecarregado também.

Muitos indígenas estavam relutantes em ir ao hospital, então mais uma vez Shimpukat e seu grupo se mobilizaram. Dessa vez, os jovens promoveram remédios tradicionais, não apenas folhas de mático, mas também gengibre, cebola, alho e eucalipto para aqueles que combatiam a doença em casa. Uma paróquia católica cedeu-lhes espaço para montar um abrigo.

A medicina tradicional não é uma pílula. É uma forma de tratar-se holisticamente, em que as ervas são um outro elemento da visão do mundo

O grupo combinava a medicina tradicional e medicina ocidental, tratando os sintomas na tentativa de evitar que as pessoas fossem hospitalizadas. 

Luis Gutiérrez Alberoni, um pediatra especializado em saúde intercultural que tem trabalhado com a Opas, disse que “a medicina tradicional não é uma pílula. É uma forma de tratar-se holisticamente, em que as ervas são um outro elemento da visão do mundo. “

Mesmo em cidades como Iquitos e Pucallpa, os povos indígenas buscam primeiro a medicina tradicional e consideram a medicina ocidental como complementar, acrescenta Gutiérrez.

Na sua opinião, é preciso diálogo para criar pontes entre as duas práticas. Os profissionais da medicina ocidental e as autoridades sanitárias, em particular, devem ouvir e aprender com os curandeiros e membros das comunidades indígenas, a fim de preencher a lacuna entre as duas formas de saúde.

Após a primeira onda da pandemia, o abrigo de saúde para os grupos indígenas estava momentaneamente vazio. Mas, em meados de dezembro do ano passado, o local voltou a receber pacientes, o que para Shumpukat é um indício da segunda onda de infecções.

 De fato, desde janeiro, o número de infecções no Peru aumentou drasticamente. Em apenas seis semanas o país voltou a registrar a taxa de mortalidade de agosto do ano passado, de 200 mortes diárias. 

 Os números na floresta são proporcionalmente altos. Em Loreto, a incidência de casos de Covid-19 aumentou de 6 para 60 por 100.000 habitantes no mês de janeiro. Novamente, há um sentimento de desespero devido à escassez de oxigênio medicinal.

A situação é crítica. Para Shimpukat, “o que estamos procurando é apoio, que sejamos considerados uma parte fundamental da Direção Regional de Saúde, e que nos incluam como médicos tradicionais, para continuar nosso trabalho”.

Esta publicação é parte de um projeto jornalístico liderado por Periodistas por el Planeta (PxP) na América Latina. Licença Creative Commons.