Comércio & Investimento

Congelamento de empréstimos da China à América Latina reflete reavaliação de Beijing

Ausência de nova política para a região em 2021 evidencia prioridades domésticas e comerciais da China, à medida em que surgem estratégias para melhorar a gestão de risco da BRI
<p>Nos últimos 15 anos, o Banco de Desenvolvimento da China concedeu quase 100 bilhões de dólares em empréstimos soberanos para a América Latina, mas não emitiu nenhum novo empréstimo para a região em 2021 (Imagem: Alamy)</p>

Nos últimos 15 anos, o Banco de Desenvolvimento da China concedeu quase 100 bilhões de dólares em empréstimos soberanos para a América Latina, mas não emitiu nenhum novo empréstimo para a região em 2021 (Imagem: Alamy)

Foram-se os tempos de empréstimos soberanos da China à América Latina — pelo menos por enquanto. Pelo segundo ano consecutivo, em 2021, bancos estatais chineses — China Development Bank (CDB) e China Exim Bank (Exim) — não emitiram novos empréstimos para a região, segundo o mais recente relatório do The Dialogue e da Universidade de Boston.

Embora a ausência de novos empréstimos coincida com a crise econômica gerada pela pandemia da Covid-19 — que levou o CDB e o Exim a se concentrar em projetos existentes no exterior e a apoiar o próprio desenvolvimento da China—, os números têm diminuído ano a ano desde 2015 quando foram emitidos US$ 21,3 bilhões. Há uma nova ênfase em se evitar riscos e na rentabilidade, segundo Margaret Myers, diretora da Iniciativa Ásia e América Latina no The Dialogue.

“Os esforços da China para alinhar engajamento externo e objetivos internos de crescimento levaram-lhe a focar em setores específicos, geralmente de alta tecnologia e que promovem sua modernização industrial”, diz Myers. “Suas instituições financeiras vêm cada vez mais tentando identificar projetos financiáveis e de ‘alta qualidade'”.

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A redução dos acordos entre estados que caracterizaram a fase inicial da parceria China-América Latina — e produziram resultados mistos — corresponde a uma diversidade crescente de atores financeiros envolvidos. Bancos comerciais, incluindo o braço comercial do CDB, geralmente emitem empréstimos corporativos diretamente para empresas chinesas e latino-americanas, enquanto fundos de private equity e iniciativas de cofinanciamento estão ativamente buscando oportunidades de investimento na região.

O modelo anterior de empréstimos com lastro em commodities é exemplificado pela Venezuela, que tomou US$ 62,5 bilhões emprestados de bancos estatais chineses desde 2005, cerca de 45% do total emitido para a região. No entanto, a economia da nação petrolífera colapsou em meio aos baixos preços das commodities e às sanções dos Estados Unidos, provocando desafios políticos e de segurança, e uma reavaliação por seus credores chineses.

Apesar disso, não se pode descartar a possibilidade de futuros empréstimos à América Latina, e o congelamento desses empréstimos não deve ser confundido com falta de interesse, diz o relatório.

Finanças chinesas na América Latina: sem armadilha da dívida

Com a Venezuela acumulando bilhões de dólares em dívidas da China, proliferaram-se acusações de que a China deixava uma “armadilha da dívida” — um meio de garantir a dependência econômica e o fornecimento de petróleo ao atrelar os reembolsos dos empréstimos a vendas futuras. No entanto, os últimos dois anos mostraram que tais alegações eram equivocadas, segundo Rebecca Ray, coautora da pesquisa pela Universidade de Boston.

“Já vimos a hipótese da ‘armadilha da dívida’ ser completamente desmentida nos últimos dois anos, já que a China suspendeu os pagamentos da dívida em vez de executar os ativos atrelados às dívidas insustentáveis”, disse Ray ao Diálogo Chino.

Já vimos a hipótese da ‘armadilha da dívida’ ser completamente desmentida nos últimos dois anos

Ray aponta para os processos de renegociação da dívida chinesa com Equador, Suriname e Argentina. Esses três países têm acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que obriga a renegociação da dívida com credores estrangeiros. Embora a Venezuela não tenha um acordo com o FMI, ela provavelmente renegociará a dívida com a China, que tem mostrado leniência ao oferecer períodos de carência para o pagamento de empréstimos.

Essas, entretanto, são medidas de curto prazo, e ações mais abrangentes e de longo prazo são necessárias, diz Ray. Mas, além da sustentabilidade da dívida, os casos de Venezuela, Equador e Argentina — grandes beneficiários de empréstimos chineses para projetos de combustíveis fósseis e outros planos energéticos — também levantaram questões sobre a sustentabilidade ambiental do portfólio de empréstimos da China para a América Latina.

Tornando a Iniciativa Cinturão e Rota verde

Este ano, a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), termo genérico para o projeto chinês de desenvolvimento da infraestrutura no exterior, retornou à América Latina. A Argentina e a Nicarágua aderiram à estratégia em fevereiro e janeiro, respectivamente, elevando o número de membros latino-americanos da BRI para 21.

Os países-membros podem, entretanto, encontrar novas limitações entre as instituições financeiras chinesas que apoiam a iniciativa. “O governo pediu aos bancos estatais que reduzam os riscos dos empréstimos, e isso não é exclusivo à América Latina”, disse Yingzhi Tang, do Instituto Internacional de Finanças Verdes, sediado em Beijing, ao Diálogo Chino.

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Sinosure, empresa estatal que fornece seguros de não-pagamento e risco político a investimentos da China no comércio exterior, está cada vez mais atenta à estabilidade macroeconômica dos países anfitriões e exige perfis de risco equilibrados para os projetos, diz Tang.

Esses não são os únicos riscos que devem ser considerados. “É necessária uma estratégia mais profunda de gestão de riscos ambientais para que a BRI continue a crescer”, diz Ray.

Notavelmente, as diretrizes divulgadas em janeiro deste ano pelos ministérios do Comércio e da Ecologia e Meio Ambiente da China fornecem uma direção mais clara para as empresas chinesas sobre como gerenciar os riscos da BRI e reconhecem que os padrões do país anfitrião podem ser insuficientes. O CDB, principal financiador da BRI, também está desenvolvendo suas próprias diretrizes para a avaliação de impactos socioambientais, diz Tang.

Em vez de um plano detalhado, a BRI é mais bem compreendida como um processo de integração humana e de infraestrutura. Seu avanço na sustentabilidade também é um processo, diz Tang. Isto consiste em três elementos: compromissos relevantes garantindo o redirecionamento do financiamento em projetos “sujos” para “limpos”; a abertura dos mercados de capital da China para a emissão de títulos verdes chineses; e avaliações de impacto ambiental mais rigorosas para todo o ciclo do projeto, indo além do cumprimento de leis locais e considerando-se as melhores práticas internacionais.

Exigindo sustentabilidade

O alinhamento da BRI com as metas climáticas e de sustentabilidade tem sido até agora determinado em grande parte pela demanda dos países-membros, o que às vezes é negligenciado, diz Tang. Os ministérios das finanças dos países beneficiários e os portfólios de projetos de suas agências de infraestrutura muitas vezes determinam quais projetos da BRI recebem luz verde.

Os países anfitriões precisam assumir a responsabilidade pelo tipo de projetos que querem e pelos projetos que podem pagar

Christoph Nedopil, diretor do Centro de Finanças e Desenvolvimento da Universidade de Fudan em Xangai, concorda que não tem havido atenção suficiente do lado da demanda. Ele diz que existem diretrizes melhores, por exemplo, o sistema de semáforos para projetos da BRI e que sua implementação deve ser acelerada.

“É uma faca de dois gumes porque a China não quer dizer aos outros em que tipos de energia investir. Os países anfitriões precisam assumir a responsabilidade pelo tipo de projetos que querem e pelos projetos que podem pagar”, diz ele. “Não ajuda culpar os outros. A pró-atividade é extremamente importante”.