Justiça

Indígenas do Equador lutam contra mineração de cobre

Projeto de mineração chinês desalojou indígenas para extrair cobre no meio da Amazônia equatoriana
<p>Luis Sánchez Shiminaycela, um dos líderes de oposição à mina de cobre de Mirador, mostra as obras da estrada que leva à casa de onde foi despejado no final de 2015. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.</p>

Luis Sánchez Shiminaycela, um dos líderes de oposição à mina de cobre de Mirador, mostra as obras da estrada que leva à casa de onde foi despejado no final de 2015. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

Os moradores do vale do rio Quimi, na Amazônia equatoriana, não vivem em tranquilidade desde que, entre setembro e dezembo de 2015, 30 famílias indígenas foram removidas à força pela polícia e por seguranças particulares.

Onde antes viviam famílias shuar e cañari kichwa, é construído um gigantesco projeto de mineração a céu aberto que, no fim deste ano, deve começar a extrair cobre da Cordillera del Cóndor, uma pequena cadeia de montanhas no meio da Amazônia equatoriana.

O empreendimento chamado Mirador, que é a maior mina da história do Equador e um dos projetos estratégicos do governo do presidente Lenin Moreno, pode ir por água abaixo caso não se resolva o conflito social e ambiental entre a empresa chinesa Ecuacorriente e as comunidades nativas de Tundayme. Para tornar as coisas ainda mais complexas, o conflito ocorre numa parte do país que cientistas e biólogos consideram ter enorme riqueza natural.

Os desalojados de Tundayme

Ninguém no Equador sabe se Rosario Wari Ampush tinha 95, 107 ou até 120 anos — o que é bastante improvável —, mas todos concordam que ela foi a primeira de sua família a morrer fora de casa.

Dois anos antes da morte de Rosario, em julho de 2018, essa indígena shuar e seu filho haviam perdido seu lar ancestral. “Queimaram casa”, conta seu filho, Mariano Mashendo, de 64 anos, com um espanhol fragmentado e sem artigos. “Crescemos e vivemos lá”.

A área onde a mina será desenvolvida é povoada por famílias indígenas Shuar - que vivem em cabanas como esta - e Cañari Kichwa. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

Mashendo conta a história sentado numa humilde choupana de madeira, de onde se pode ver o telhado azul de um acampamento da mineradora que ocupa o exato lugar onde sua casa existia até fevereiro de 2016.

Ao menos 32 famílias — ou 126 pessoas — perderam suas casas em remoções descritas como violentas pela comunidade e por diversas ONGs. O modus operandi, conta-se, foi o mesmo em todos os casos: a polícia e os seguranças chegavam de madrugada com uma ordem de despejo, ordenando os indígenas a entregarem os terrenos à empresa e dizendo-lhes que receberiam um cheque indenizatório no escritório da agência nacional de regulação de mineração Arcom. Os representantes do governo e da empresa lhes davam cinco minutos para sair, demoliam suas casas e enterravam os escombros na frente dos próprios moradores.

“Fizemos denúncias, mas não adiantou”, conta Luis Sánchez Shiminaycela, um dos líderes mais conhecidos da oposição à mina, que se identifica como cañari kichwa. Nessas duas casas às margens do rio Tundayme, explica ele, viviam sua esposa, sua filha, seus pais, dois irmãos, suas esposas e cinco filhos.

No centro do conflito está uma lei polêmica chamada servidão minerária, segundo a qual o governo tem o poder de determinar que uma propriedade é necessária para um projeto e, em vez de expropriá-la, ordernar seu aluguel por duas ou três décadas. Em troca, os donos da terra recebem uma indenização.

Manuel Mashendo, indígena Shuar, aponta o lugar onde era a casa de sua família até o despejo em fevereiro de 2016. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

“O problema é que, embora as pessoas possam dizer que não querem ou que não entendem o procedimento, ele acontece”, afirma a advogada Francis Andrade, da Rede Eclesial Panamazônica (Repam), organização da Igreja Católica inspirada pela encíclica ambiental do Papa Francisco que acompanha comunidades na Amazônia.

Alguns dos desalojados eram inclusive funcionários da Ecuacorriente no momento da remoção. “Me tiram de casa e me causam um prejuízo enorme, um golpe emocional e psicológico. Meus pais gastaram a vida se esforçando para deixar algo para nós, e essa empresa nos deixou sem nada. A casa e a terra eram tudo”, conta William Uyaguari, que trabalhou durante sete anos carregando máquinas de perfuração para a mina. Uyaguari, que também se identifica como kichwa, diz que foi demitido após reclamar com a empresa sobre a remoção.

Como outros moradores da localidade, os três haviam negado ofertas de compra anteriores e, indignados pela remoção, decidiram não pedir a compensação. Organizados na Comunidad Amazónica de la Cordillera del Cóndor Mirador (Cascomi), que reúne famílias indígenas shuar, kichwas e campesinas, eles hoje lutam contra a mina localizada na província de Zamora Chinchipe, a poucos quilômetros da fronteira com o Peru.

No fim das contas, não restou nem uma casa na margem leste do rio Quimi entre os córregos Tundayme e Wawayme, que correm montanha abaixo. Onde uma vez esteve o pequeno vilarejo de San Marcos, com uma igreja e uma escola, hoje há um penhasco inclinado em cuja parte superior — que não se pode ver da estrada — se esconde um gigantesco buraco que logo se tornará uma piscina de resíduos para processar a rocha.

No horizonte se vê um prédio de cinco andares, colado a uma colina que esconde o ponto onde a Ecuacorriente S.A. — também conhecida como Ecsa — está abrindo o sulco de onde extrairá cobre. Os dois proprietários do edifício são a Tongling Nongerrous Metals Group (um conglomerado minerador da província de Anhui que é o segundo maior produtor chinês de cobre) e a China Railway Construction Corporation, ou CRCC (uma das maiores empresas de construção do mundo). Ambas são empresas estatais, o que significa que operam com recursos públicos chineses.

Tundayme não é uma história isolada. Os indígenas shuar que viviam onde hoje opera a mina de cobre Panantza-San Carlos, localizada em outra parte da Cordillera del Cóndor, a 40 quilômetros dali, têm denunciado remoções violentas muito parecidas. A proprietária da mina é uma empresa chamada ExplorCobre S.A. (Exsa), controlada pelas mesmas empresas que detêm a mina de Mirador: Tongling e CRCC.

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Cientistas como Santiago Ron considerar a região de Condor uma das mais ricas em biodiversidade e menos exploradas no Equador. Foto de Diego Paucar

Dos protestos aos tribunais

Frente à impotência das remoções, os indígenas da Cascomi mudaram de estratégia: levaram a empresa e o governo aos tribunais. O caso ilustra a popularização da estratégia no Equador, onde ativistas tem cada vez mais recorrido à justiça em vez de enfrentar a polícia em protestos nas ruas

Muitos estão ganhando. Como contamos em outra reportagem desta série, em meados de 2018, dois tribunais determinaram que os indígenas kichwa de Río Blanco não haviam sido consultados previamente à construção de uma mina de ouro em seu território. Em outubro, outro tribunal decidiu proteger os indígenas cofán de Sinangoe, que apresentaram uma queixa similar contra várias concessões de mineração. Há dois meses, os indígenas waorani da Amazônia ganharam um caso idêntico que envolvia um projeto petroleiro.

Os moradores de Tundayme tiveram menos sorte, mas continuam apostando nas vias jurídicas para resolver o conflito com a mina de Mirador. No caso deles, é difícil ordenar a confusão de ações legais em curso, já que há pelo menos cinco aguardando decisão judicial.

A primeira — e a que recebeu mais atenção da mídia — é uma ação legal que denuncia a violação de direitos ambientais.

Em 2013, quando Rafael Correa ainda era presidente, quatro ONGs, uma universidade e as comunidades shuar deram início a essa ação, argumentando que a avaliação de impacto ambiental da mina reconhecia que a floresta onde se faria a perfuração era hábitat de duas espécies endêmicas de aves. De acordo com a ação, se a Constituição de 2008 reconhece a natureza como um sujeito de direitos, a extinção de uma espécie equivale a violar esses direitos.

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Esta é a nova espécie de sapo descoberta na Cordilheira de Condor este ano. Foto de Alex Achig

A ação, que um juiz de Quito indeferiu mas que está ativa na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, mostra como um conflito que em princípio era social e ambiental também se tornou político.

No fim de 2013, Correa fechou a Fundación Pachamama — uma das instituições que abriu a ação judicial — acusando-a de ingerências políticas de Estado e de atentado contra a segurança nacional. Outra ação da mesma ONG havia terminado, em junho de 2012, numa decisão histórica contra o governo do Equador na Corte Interamericana, envolvendo um projeto petroleiro que não havia consultado os indígenas kichwa de Sarayaku.

Um ano depois, um dos opositores mais conhecidos da mina — o líder shuar José Isidro Tendetza — foi encontrado brutalmente assassinado e com sinais de tortura, num caso que também está na CIDH. Como diz Mario Melo, advogado que participou de ambos os casos da Pachamama, “tudo isso demonstra como Mirador é um assunto sensível”.

Com a chegada de Lenin Moreno à presidência em 2017, reduziu-se o número de enfrentamentos com setores de oposição à mineração, a quem o presidente anterior chamava de “atrasados” e violentos. Contudo, embora o ex-vice-presidente de Correa tenha se distanciado do estilo beligerante de seu mentor (e do próprio Correa), as comunidades reforçaram suas apostas nas vias legais.

Em fevereiro de 2018, os indígenas da Cascomi abriram uma segunda ação de proteção, acusando o governo de violar seu direito à moradia digna (com as remoções) e à consulta prévia, exigindo que a Ecsa lhes compensasse por esses prejuízos.

O pedido, apoiado pela Repam e pela ONG de assuntos jurídicos Inredh, baseou-se em três argumentos. Primeiro, que os indígenas nunca foram notificados das remoções. Em segundo lugar, que essas remoções foram arbirtárias e violentas/ Por último, que não houve um plano de reassentamento, motivo pelo qual muitas famílias continuam morando em casas emprestadas ou pagam aluguel em outros lugares onde não podem se sustentar.

O governo centrou sua defesa no fato de não considerar a Cascomi uma comunidade ancestral, argumentando que em Tundayme não há um título coletivo que demarque a presença de um povo étnico que deveria ter sido consultado.

O juiz ordenou uma perícia antropológica para aclarar esses pontos, uma novidade que foi percebida como séria por distintos atores. A conclusão da perícia, contudo, não deu fim às incertezas: segundo o relatório, a Cascomi não é uma organização indígena, mas o território sim. A única coisa clara da perícia é, como diz a advogada Francis Andrade, que “reconhece que o território é complexo”.

Em 15 de janeiro de 2019, o juiz de Quito recusou o pedido de proteção, concordando com o governo no argumento de que a Cascomi não seria indígena e que as remoções haveriam seguido a lei. Após o recurso, em 7 de junho passado, três juízes do tribunal provincial de Pichincha ratificaram a primeira decisão. Agora, a comunidade está preparando um último recurso para a Corte Constitucional e irão apresentar o caso ao Comitê de Direitso Econômicso, Sociais e Culturais das Nações Unidas.

Na esteira desses dois processos, vieram inúmeros ações legais complementárias que estão em diferentes fases e que serão julgadas nos próximos meses.

Há uma ação penal contra a Ecuacorriente por danos ambientais a fontes hídricas, apresentada pelo governador provincial Salvador Quishpe (que é indígena) e pela Confeniae, que agrupa os povos indígenas do Amazonas.

Há também um pedido de medidas cautlares ante a Corte Constitucional para prevenir que a represa em construção por Ecsa no rio Tundayme se rompa e cause um desastre como o de Brumadinho, no Brasil. A base da ação é um estudo realizado pelo hidrólogo Steve Emerman, professor da Universidade de Utah Vallew.

E, por último, a Cascomi e as comunidades do projeto vizinho de Panantza-San Carlos, dos mesmos donos chineses, iniciaram uma ação de descumprimento na Corte Constitucional. Nela, argumentam que o governo não executou as recomendações do exame especial da Controladoria Geral do Estado nas duas minas no Cóndor, sobre falhas na consulta prévia e no controle minerador.

A isso se soma o fato de que os líderes indígena falaram sobre o caso em audiências da CIDH em Washington e do exame periódico de direitos humanos da China frente às Nações Unidas em Genebra, tentando aumentar a pressão internacional sobre a Ecsa e o governo equatoriano.

O mundo perdido de Cóndor

Ao atravessar o rio Zamora, de repente se vêem montanhas de um intenso verde-esmeralda.

Duas expedições científicas realizadas em 2016 e 2017 à reserva biológica El Quimi — localizada a 10 quilômetros em linha reta da mina de cobre — demonstraram que a remota Cordillera del Cóndor é um dos lugares mais biodiversos do Equador.

Entre as plantas anãs que crescem nos cumes rochosos e planos, aonde as expedições chegaram após dois dias de caminhada, os cientistas encontraram uma minúscula rã marrom com manchas amarelas que chamou sua atenção imediatamente. Após dois anos de pesquisa, em janeiro de 2019 os cientistas anunciaram seu descobrimento: essa rã arbórea, batizada de Hyloscirtus hillisi, era uma espécie nova para a ciência. A característica mais particular do anfíbio — que apareceu na revista National Geographic — é uma garra no polegar, que poderia ser um mecanismo de defsa contra predadores ou outros machos.

A rã não foi a única descoberta científica nesse enigmático ecossistema amazônico de tepuis que se elevam a 2 mil metros acima da floresta. Ao menos duas outras rãs, um lagarto e um roedor estão em processo de descrição e em breve serão anunciados como novas espécies.

“Era um lugar realmente tão extraordinário, e onde nunca se havia feito coletas, que tivemos que voltar. Há muitas outras espécies esperando ser descobertas ali”, conta o biólogo evolucionário Santiago Ron, professor da Universidad Católica e um dos herpetólogos mais reconhecidos do país.

Os cientistas do Museu de Zoologia ainda não sabem ao certo as razões por que Cóndor é um lugar tão biodiverso, mas há várias hipóteses. Uma causa possível seria o solo de calcário formado por milhões de minúsculas conchas marinhas, algo inusitado nos Andes mas comparável com os grandes tepuis rochosos do Escudo Guianês que se elevam no meio da Amazônia colombiana até as Guianas. Outra hipótese argumenta que os riachos da região têm uma composição mineral estranha, fruto de alguns taninos vegetais que lhe dão a cor de Coca-Cola.

Tudo isso se traduz em habitats únicos com uma alta porcentagem de endemismo, ou seja, espécies que dificilmente existem em outros lugares. Por isso, o grupo de cientistas recomendou classificar a nova rã arbórea de Hills como em “perigo crítico” devido ao tamanho reduzido de seu nicho geográfico e à destruição de seu hábitat pela mina de cobre de Mirador, tão próxima.

Esse valor biológico é também a razão pela qual muitos pedem um parque nacional na Cordillera del Cóndor que proteja seus tesouros.

“A cordilheira é única e por isso conservá-la é tão importante, mas infelizmente não há nenhuma área protegida”, conta Ron, que acaba de voltar de uma nova expedição ao Cóndor, no rio Nangaritza — que deságua no Zamora, Marañón e finalmente no maior rio da selva sul-americana. “Para mim isso é alucinante, honestamente. O Equador é um país megadiverso e, justamente por isso, tem uma responsabilidade muito grande de proteger seus recursos biológicos. Temos tanto a perder e não estamos cuidando de recursos que podem beneficiar toda a humanidade”.

A cor Coca-Cola de rios como o Quimi, produto de taninos vegetais, é uma das características naturais mais peculiares da Cordilheira do Condor. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

Há outra razão poderosa — e mais política — por que a proteção do Cóndor é importante.

Entre janeiro e fevereiro de 1995, cerca de cem pessoas morreram durante a breve guerra entre o Equador e o Peru, cujo epicentro foi o rio Cenepa, do lado peruano do Cóndor. Um dos compromissos do tratado de paz assinado pelos dois países em Brasília, em outubro de 1998, que dava fim a mais de um século de disputas territoriais, foi criar parques nacionais contíguos que conservariam a zona fronteiriça e mitigatiam conflutos futuros. Estipulou-se, inclusive, que os parques deveriam ter o mesmo nome e que os indígenas poderiam transitar entre ambos sem controle.

“Ambos os países tomamos a decisão de que no lugar onde antes havia combate, no lugar onde antes soldados peruanos e equatorianos morriam, temos que honrar suas memórias da melhor maneira que podemos: celebrando a vida. Por isos, nesse mesmo lugar criamos dois parques ecológicos perpétues (…) para que nunca mais se possa derramar uma gota de sangue nessa região de nossos territórios”, disse o então presidente equatoriano Jamil Mahuad.

Em 2007, o Peru criou o Parque Nacional Ichigkat Muja – Cordillera del Cóndor, que proteje 887 quilometros quadrados de floresta. Embora o parque seja menor que o previsto inicialmente e seja hoje palco de um intenso conflito com os indígenas awajún por concessões mineradoras outorgadas à empresa Afrodita, o governo peruano cumpriu sua parte.

O Equador, por sua vez, apenas criou duas pequenas reservas biológicas (a do Quimi e a do Cóndor), que somam 114 quilômetros quadrados.

“Nós nos sentimos enganados porque ajudamos o governo do Equador a construir essas estradas de que o Exército precisava na guerra e, agora, quando nós precisamos, nos abandonam”, conta Luis Sánchez.

Os cientistas tentam dar mais visibilidade às suas descobertas, mas continuam preocupados com o risco que uma mina a céu aberto representa para a biodiversidade do Cóndor. Contudo, lamenta Ron, “no Equador não consideramos os percalços ambientais da mineração”.

A área ainda esconde enormes bunkers escavados na montanha durante a guerra entre Equador e Peru. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

Mina de interesse nacional para Equador e China

Em meio a uma baixa mundial no preço do petróleo, os últimos dois governos do Equador buscaram alternativas para substituir essa receita e apostaram na mineração.

Com 3,18 milhões de toneladas de cobre, além de 3,39 milhões de onças de ouro e 27,11 milhões de toneladas de prata, Mirador é a joia da coroa com a qual o país andino quer alcançar a meta de ter 4% do PIB nacional vindo da mineração até 2020.

O governo federal e a Ecuacorriente insistem que estão centrados em fazer tudo direito. Nenhum dos dois reconhece o legado de conflitos sociais e jurídicos que persiste em Mirador, e que poderia dificultar a operação da mina no futuro.

Para o governo atual, os erros foram causados pela atitude beligerante de Correa. “Queremos fazer as coisas de uma maneira diferente. Estamos pavimentando o caminho para uma nova indústria minereadora, porque acreditamos que ela será o pilar do país nos próximos anos. Queremos condições financeiras, legais e de segurança adequadas para que os investidores venham para cá, cumprindo as leis e as normas vigentes”, explica o vice-ministro de minas Fernando Benalcázar. Como exemplo, ele cita a decisão do presidente Moreno em 2018 de criar um superministério para estimular uma política de longo prazo em hidrocarbonetos, mineração e energia.

Segundo a visão do governo, as vantagens da mina são evidentes: a criação de 3 mil empregos diretos e 10 mil indiretos, 211 milhões de dólares de royalties antecipados e impostos, que somam uma receita total de 5,5 bilhões de dólares para o governo e 60% dos royalties investidos por lei nas esferas local e provincial. Além de tudo isso, associar-se a uma empresa chinesa lhes dá acesso garantido ao maior comprador de cobre do mundo.

Mirador é um dos quatro projetos estratégicos de mineração para o Equador, que aposta nos recursos do setor para substituir a renda do petróleo. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

“Não vi conflito nenhum. O que observei me leva a pensar que há uma boa relação: há projetos comunitários muito interessantes que trabalham com questões ambientais e sociais”, afirma Benalcázar, que recentemente trabalhou no setor petroleiro na Colômbia e na Síria.

A Ecuacorriente — que afirma já ter investido 1,4 milhão de dólares em Mirador — reconhece que as relações com a comunidade foram tensas no começo. A empresa insiste, contudo, que as tensões foram se amenizando à medida que se abriram canais de diálogos e que se investiu em projetos como o de dança folclórica. A Ecuacorriente ainda defende que o sistema judiciário lhe deu razão na questão das remoções, embora atribua ao governo a decisão de recorrer à ferramente de declarar as terras de utilidade pública e expulsar os proprietários.

“Se as duas partes não conseguem chegar a um acordo e o preço não é razoável, o governo pode recorrer ao direito de servidão por se tratar de um projeto estratégico nacional. O responsável por isso não foi nossa empresa, mas o governo equatoriano. Eles propuseram essa solução quanto o projeto estava paralisado”, conta Zhu Jun, gerente de relações com governo e comunidades da Ecsa. A empresa, explica Zhu, pagou até seis vezes o preço comercial da terra e está construindo o novo povoado de Nuevo San Marcos para realocar as famílias prejudicadas.

Nem a empresa nem o governo reconhecem a Cascomi como agente legítimo, insistindo que as cortes provaram que não se trata de uma organização indígena — e, por tanto, que não tem direitos coletivos — e que tem sido manipulada por agentes externos.

 “Os sul-americanos são muito gentis, mas o problema é que também são facilmente mobilizados por slogans, sobretudo em questões espirituais e imateriais. Embora eles sejam pobres, não veem que o dinheiro lhes pode ajudar a resolver problemas. As ONGs podem se aproveitar disso e lançar mão de assuntos ilusórios e espirituais — como opor-se à mineração ou proteger o meio ambiente para gerações futuras — e é fácil acreditar nisso”, conta Zhu, que trabalha com a Ecuacorriente desde 2013 e não fala espanhol.

Como o caso de Río Blanco, Mirador mostra que a autoidentificação como indígena é um assunto espinhoso no Equador. “Para ser honesto, não acredito que a autoidentificação seja uma iniciativa própria. Há influência de várias ONGs, para o bem e para o mal. Sou completamente a favor de que haja verificações independentes em projetos tão críticos e estratégicos. Mas é difícil lidar com ONGs que têm posições extremas e se opõem a qualquer tipo de desenvolvimento”, argumenta Benalcázar, desconhecendo que o próprio governo equatoriano promoveu a autoidentificação desde o censo populacional de 2010.

Muitas organizações sociais e acadêmicas discordam dessa visão, argumentando que se tratam de comunidades mistas com preocupações legítimas.

“Muitas vezes se pensa que as comunidades não têm autodeterminação, que suas estratégias e seu discurso vêm de outras partes, que os manipulam, como se fossem crianças. O governo acha que é uma questão de emprego, royalties e investimento estrangeiro direto e não de meio ambiente”, afirma Ivonne Yánez, bióloga da ONG Acción Ecológica que acompanhou o caso. “Isso não significa que não existe o direito, que deve ser respeitado e tutelado, de que essas populações sejam consultadas e que tenham suas moradias protegiadas”, concorda Mario Melo, que dirige o Centro de Derechos Humanos da Universidad Católica

Ecuacorriente falou sobre um plano de realocação para as famílias despejadas de San Marcos, mas sua realização não é tão evidente. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

A essa dificuldade se soma o fato de que ainda não há um procedimento oficial de consulta prévia no Equador, embora a decisão da Corte Interamericana sobre Sarayku em 2012 tenha ordenado a regulamentação do processo de acordo com padrões internacionais. Essa foi uma das questões que guiou a visita oficial de Victoria Tauli-Corpus, relatora especial das Nações Unidas sobre povos indígenas, em novembro passado. Um dos seis lugares visitados por Tauli-Corpus foi justamente Mirador.

O governo — confirmou o viceministro Benalcázar — trabalha no texto de regulamentação, que ainda não divulgou à sociedade civil.

Em última análise, vários dos agentes parecem desconhecer as complexidades de um território onde diversos grupos têm convivido desde meados do século XX. Os shuar, o povo mais numeroso entre os que vivem na Amazônia equatoriana e que já foram nômades, se assentaram na zona em 1910, começando com a família Ampush. Quatro décadas depois, milhares de famílias kichwa migraram da serra à selva, em busca de terras para cultivar. Entre elas está a família de Luis, que veio das montanhas de Sigsig.

Muitos chegaram por meio de incentivos agrícolas da ditadura militar que tomou o poder em 1963, com o intuito de proteger a fronteira com o Peru em tempos de tensão diplomática. Em muitas partes do Amazonas, contudo, essa política significou que indígenas da serra ocuparam territórios ancentrais de outros grupos étnicos e que o governo não reconheceu títulos coletivos de povos amazônicos como os shuar de Tundayme, pavimentando o caminho para conflitos como o que ocorre hoje em Mirador.

No fundo, casos como este mostram como — na ausência de uma presença real do Estado nos territórios mais isolados e na falta de espaços de diálogo onde os distintos grupos possam expor suas preocupações — os problemas rapidamente se tornam conflitos abertos. Quando o governo se dá conta dos problemas, de maneira reativa, muitas vezes já é tarde demais.

“Em vez de militarizar e remover pessoas, de enviar máquinas e retroescavadoras para derrubar casas, o Estado deveria intervir de outra maneira, ajudando as comunidades a planejar, divulgando os projetos e chegando a acordos com os moradores desses locais”, defende Jaime Vargas, líder achuar e presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que reúne todos os indígenas do país. 

O governo equatoriano insiste que a mina traria desenvolvimento e recursos que esta esquecida região da selva ainda não viu. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

O tema ambiental, contudo, parece relegado a segundo plano.

“Se a região é tão rica, se cumpre os critérios que configuram as áreas protegidas — que é um processo exaustivo — e se torna uma dessas áreas, isso será respeitado. Essa foi a decisão do povo equatoriano”, declara o vice-ministro de minas, referindo-se ao referendo de fevereiro de 2018, que proibiu a mineração em áreas protegidas. O vice-ministro não havia ouvido falar da nova espécie de rã, nem do compromisso do Estado em criar um parque nacional no Cóndor, embora tenha assegurado que quer trabalhar com ONGs internacionais como a World Wildlife Fund, Wildlife Conservation Society e a The Nature Conservancy em pesquisas sobre biodiversidade e gestão da água.

A Ecuacorriente, por sua parte, insiste que nunca ocorreram acidentes em Tongling e que sua mina segue os mais altos padrões técnicos.

“O fato de que uma represa no Brasil tenha se rompido não significa que todas as represas do mundo serão afetadas. Eles não devem ter feito bem o trabalho”, afirma o gerente social Zhu, acrescentando que o projeto do China Nonferrous Technical Design Institute e da empresa de engenharia canadense KP Engineering foi compartilhado com técnicos e acadêmicos na Universidad Central de Quito. Ainda assim, acrescenta Zhu, ele espera uma reconciliação com a Cascomi e todos os povos que habitam Tundayme

 “Apesar dos sinais de tranquilidade que a empresa e o governo tentam transmitir, uma parte significativa dos moradores dessa região ainda sente que suas preocupações não foram ouvidas. O acúmulo de processos legais em curso mostra que — se as partes não se esforçam para resolver o conflito — a mina de Mirador começará a extrair cobre sem a licença social.

Como diz o advogado Melo, “a gente viu que as ações legais podem ser uma alternativa para chegar às vias de fato. Isso é bom porque, quando a violência aumenta, todos saem perdendo.”

A riqueza natural da Cordilheira do Condor tem sido um dos aspectos mais ausentes do debate público sobre a mina de Mirador. Foto: Andrés Bermúdez Liévano.

Esta é a segunda de uma série de três reportagens sobre os impactos ambientais e sociais de dois projetos de mineração chineses no Equador. Esta série recebeu apoio da Rainforest Journalism Fund por meio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.