Florestas

Povo Sápara, da Amazônia equatoriana, leva ao mundo sua luta contra petrolíferas

Comunidade indígena do Equador atrai atenção internacional por combater avanço de petrolíferas em seu território e ganha adeptos à sua tradição de interpretação de sonhos
<p>Manari Ushigua, líder da nação Sápara, na conferência Climate Solidarity, em Gdansk, Polônia, em setembro de 2019 (Imagem: Wojciech Strozyk / Alamy)</p>

Manari Ushigua, líder da nação Sápara, na conferência Climate Solidarity, em Gdansk, Polônia, em setembro de 2019 (Imagem: Wojciech Strozyk / Alamy)

“Vimos que eles estavam chegando e sabíamos o que fariam”, disse o líder indígena Manari Ushigua, ao se lembrar do pesadelo em que sua comunidade se defendia de forasteiros que chegavam à floresta em busca de petróleo.

Curandeiro tradicional e líder político dos Sápara, na Amazônia equatoriana, Manari contou que outros membros de sua comunidade tiveram o mesmo sonho. E o que eles viram, mais tarde, se tornaria realidade.

Um povo que desaparece


Os Sápara são indígenas originários da Amazônia que chegaram a ocupar 12 milhões de hectares de floresta no Equador e no Peru. Agora, os Sápara moram em uma área de 360 mil hectares.

Em novembro de 2011, o Ministério de Energia e Recursos Não Renováveis do Equador apresentou um novo cadastro de terras, detalhando o interesse de petrolíferas em 21 campos na Amazônia equatoriana que cobria uma área de 3,6 milhões de hectares. Os campos foram incluídos no ano seguinte no leilão da Décima Primeira Rodada Petrolífera, uma série de licitações lançadas pelo governo.

Em 2014, a Secretaria de Hidrocarbonetos do Equador anunciou a concessão de dois desses campos – os blocos 79 e 83 – ao consórcio Andes Petroleum, formado pelas estatais chinesas Sinopec e China National Petroleum Company. Os contratos foram assinados em 2016. Ambos os blocos se sobrepõem às terras ocupadas pelas comunidades Sápara e têm impacto potencial em quase 190 mil hectares, o equivalente a 52% de seu território.

Um livro de 2016 sobre as lutas dos Sápara conta como esse povo já ocupou cerca de 12 milhões de hectares da floresta amazônica, dos quais 4,7 milhões – uma área equivalente ao estado brasileiro do Rio de Janeiro – estavam na Amazônia equatoriana. Hoje, os Sápara vivem em uma área de cerca de 360 mil hectares.

À medida que seu território encolhe, também encolhe sua população e, com ela, sua cultura. Estima-se que, no século 19, havia 20 mil falantes da língua Sápara. Atualmente, dos quase 600 indivíduos Sápara sobreviventes, menos de dez falam a língua ancestral.

Com uma população dizimada e sob risco de desaparecer, as tradições orais e manifestações culturais dos Sápara foram reconhecidas pela Unesco em 2001 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade – um título destinado a proteger o patrimônio ao redor do mundo de valor universal e excepcional. Nessa categoria, está incluída a interpretação dos sonhos dos Sápara, uma prática espiritual utilizada para orientar a tomada de decisões e interpretar sinais de ameaças à sua própria existência.

Diante desses riscos, o povo Sápara escolheu levar suas histórias a uma audiência global. Em defesa de seu território contra a exploração de petróleo e frente aos novos desafios das energias renováveis, suas comunidades lançaram uma série de campanhas e projetos para aumentar a conscientização de suas lutas e para promover sua cultura – e salvá-la do desaparecimento.

Oposição à exploração de petróleo

Líderes Sápara foram contrários às atividades petrolíferas antes da abertura do leilão da Décima Primeira Rodada, mas sofreram consequências. No início de 2013, o filho de 13 anos de Alcides Ushigua, na época presidente da nação Sápara, foi assassinado, o que ocorreu apenas uma semana após receber ameaças por se opor à extração petrolífera em uma assembleia local. Até mesmo o então presidente do Equador, Rafael Correa, menosprezou a demanda desse povo em rede nacional, rotulando de “ambientalistas infantis” os opositores da exploração de petróleo na Amazônia.

Desde então, o Sápara têm liderado campanhas nacionais e internacionais para conscientizar sobre os planos de perfuração de petróleo e feito apelos para que sejam abandonados. Líderes como Manari Ushigua levaram a mensagem a eventos como a Marcha dos Povos pelo Clima em Nova York, em 2014, e o Levante Indígena em Washington, em 2017, onde conheceram o ator Leonardo DiCaprio.

Manari Ushigua, líder do povo indígena Sápara
Manari Ushigua, líder do povo indígena Sápara, fala na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, em outubro de 2014 (Imagem: CIDH / Flickr, CC BY 2.0)

“Quando a Andes Petroleum começou a nos incomodar, nos mantivemos firmes”, diz Auneka Ushigua, sobrinha de Manari, ao Diálogo Chino. “Meu tio viajou para outros países, e nós daqui mandamos a mensagem de nosso povo”.

Depois de testemunharem as transformações no norte da Amazônia equatoriana, região que sofreu impactos das operações da Chevron-Texaco e de outras petrolíferas, os Sápara estão determinados a evitar que a história se repita. “Ao norte, há empresas que estão extraindo em todos os poços, mas as comunidades não veem qualquer benefício nisso”, conta Manari. Os Sápara também denunciaram a falta de consulta prévia sobre os projetos petrolíferos em suas terras, o que tem causado disputas entre as comunidades. Um representante da comunidade que assinou um acordo com o Estado e o consórcio chinês foi descrito por Manari como “ilegítimo” e “aliado do governo”.

Quando a Andes Petroleum começou a nos incomodar, nos mantivemos firmes

Após anos de pressão e resistência, os esforços dos Sápara trouxeram resultados. Em 2019, a Andes Petroleum pediu ao Estado equatoriano que declarasse motivo de força maior para desistir do projeto no bloco 79, devido à oposição da comunidade. Nenhuma decisão foi tomada em relação ao bloco 83. Os contratos foram suspensos em 2019, e a empresa ainda não tem presença no território.

Mario Melo, advogado da Fundação Pachamama e reitor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Equador, explicou que essa suspensão é, no entanto, “uma medida temporária”, pois os contratos ainda seguem em vigor, mas não estão sendo executados. Os Sápara exigem a anulação dos contratos.

O Diálogo Chino procurou a Andes Petroleum para comentar o caso, mas não houve resposta até o dia da publicação.

Pesadelo da extração de madeira

Manari Ushigua conta outro sonho que teve em 2019: “Vinha algo muito forte, mas não ia funcionar”.

Com o aumento dos esforços globais para atingir as metas de energia renovável, cresceu também a demanda por pau-de-balsa equatoriano, madeira leve, usada para produzir hélices de turbinas eólicas. Boa parte dessa demanda veio da China, país com a maior capacidade eólica instalada e sede de importantes produtores e exportadores mundiais de equipamentos de energia eólica.

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O Equador é o maior produtor mundial de madeira de pau-de-balsa, mas a busca pelo recurso gerou um aumento da extração ilegal, incentivada por um lucrativo mercado em expansão.

De acordo com dados obtidos junto à Unidade Policial de Proteção Ambiental do Equador, ao menos 6.845 metros cúbicos de pau-de-balsa ilegal foram apreendidos em 2020, um aumento de 81% em relação a 2019. Também em 2020, a província de Pastaza, onde estão localizadas as terras dos Sápara, viu o terceiro maior número de apreensões de pau-de-balsa de todas as províncias equatorianas.

Auneka Ushigua lembra que, em 2020, a comunidade de Llanchamacocha se organizou contra a extração ilegal. Eles criaram o Kaunu (palavra Sápara que significa “cobras”), um grupo dedicado a defender os acessos à sua área.

Nesse mesmo ano, Auneka formou o Yarishaya Itiumu (em português, “mulheres florescendo”), um coletivo Sápara dedicado a promover o empoderamento feminino e de defesa dos povos indígenas.

“Como mulheres do território, não permitiremos que nos machuquem”, diz Auneka.

O grupo foi criado em resposta às tentativas de atividades extrativistas no território e visando promover alternativas econômicas ao petróleo e à madeira.

Junto com outras campanhas lançadas para jogar luz sobre a situação em Llanchamacocha, esses esforços ajudaram a barrar, no final de 2020, a entrada de madeireiros ilegais à procura de pau-de-balsa. Porém, Manari diz que, depois disso, continuou a encontrar evidências de extração madeireira, incluindo cinco mil árvores de pau-de-balsa cortadas rio acima.

Como mulheres do território, não permitiremos que nos machuquem

Christian Riofrío, diretor-executivo da Associação Equatoriana da Indústria Florestal e Madeireira (Aima), disse ao Diálogo Chino que “não há nada mais falso” do que as acusações de que as madeireiras de pau-de-balsa entraram na Amazônia em 2019 e 2020 para desmatar. “Não houve ingresso na floresta, [a madeira] foi extraída de onde já havia ocorrido algum evento disruptivo”, acrescentou.

O setor legal de madeira de pau-de-balsa viu um boom na atividade em 2020, com exportações totais avaliadas em US$ 570 milhões, segundo dados da Aima.

“Queremos justificar o uso desse material, que é o mais sustentável para as turbinas eólicas”, afirmou Riofrío.

Além do ciclo de vida e das condições em que cresce, essa árvore tem um significado especial para o povo Sápara. “O pau-de-balsa é um remédio para nós”, diz Auneka. Pela tradição, ela equilibra a vida na floresta: se for cortada, diz, haverá um impacto sobre as pessoas, a vida selvagem e os ecossistemas.

Ecoturismo com o povo Sápara

Os sonhos dos Sápara não só os alertam para a chegada das ameaças, mas também mostram caminhos para combatê-las.

Em 2011, nasceu o projeto Naku – um centro de ecoturismo comunitário que tenta promover e preservar a cultura Sápara. A ideia do centro, diz Manari Ushigua, também surgiu em um sonho. As comunidades entenderam que a visão era um chamado dos espíritos ancestrais enquanto seu lar era ameaçado pelas petrolíferas.

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Naku, palavra Sápara que significa “floresta”, se concentra no turismo espiritual. A partir do momento em que os visitantes embarcam em um pequeno avião – a única maneira de chegar ao território Sápara –, já entram em uma viagem de “transformação e cura”. Os viajantes dormem em cabanas e aprendem sobre a cosmovisão da comunidade. E a renda das atividades vai para um fundo comunitário, que financia a educação e a saúde dos Sápara.

Em 2013, Naku começou oficialmente a receber turistas. Seu visitante mais famoso até agora é o ator americano Channing Tatum, que se disse fascinado pela visita e decidiu contribuir com o projeto. Mais tarde, Manari viajou a Los Angeles com Tatum para levantar mais recursos, esforço que ajudou o projeto a construir um “centro de cura” e possibilitou que outras áreas de Naku recebessem visitantes.

Sonhos virtuais dos Sápara

Com a chegada da pandemia de Covid-19, os sonhos dos Sapará foram levados para o mundo virtual. Naku se tornou um espaço de conforto e troca de experiências, ainda em operação.

Com o rosto pintado, penas coloridas e vestes tradicionais, Manari está em frente ao seu computador para realizar suas cerimônias virtuais. Do outro lado da tela, há centenas de pessoas conectadas em mais de 30 países.

Desde o início da pandemia, o líder Sápara já teve mais de 900 alunos por meio da plataforma Dream World, que oferece cursos baseados nas práticas dos sonhos Sápara. Durante quatro semanas, os participantes aprendem a decifrar o significado do que observam no sono, a distinguir os diferentes tipos de sonhos e a desenvolver métodos para lembrar o que viram.

“Quando você entra naquele mundo, vê que tudo o que faz ou diz tem um impacto”, diz Manari.

Em sua conta Instagram, Manari faz transmissões ao vivo e realiza cerimônias da floresta para seus mais de 49 mil seguidores. O programa Dream World segue crescendo e agora oferece cursos com duração de até um ano. Enquanto isso, Manari promove o projeto Naku como um modelo econômico que pode ajudar outras comunidades a deixar a dependência de atividades extrativistas.

Projetos futuros

Alinhadas à ideia de compartilhar sua cultura com o mundo, as comunidades Sápara atualmente trabalham no Shimaka (“sabedoria viva”, em português), um projeto que planeja criar um currículo para disseminar conhecimento em escolas e universidades de outros países. Eles planejam apresentar o programa este ano nas cidades de Quito, Nova York e Roma.

Os jovens Sápara também desempenham um papel ativo na disseminação de sua cultura. Sani Montahuano, de 25 anos, é co-fundadora do Tawna, projeto artístico centrado no “cinema desde e para o território”. Ele nasceu do sonho de seu irmão Yanda.

“Outras pessoas viriam para nos filmar e levar todo aquele material com eles, nós nunca o veríamos”, explica Montahuano.

Os irmãos criam documentários, vídeos e fotografias que destacam os esforços dos Sápara para proteger o território amazônico das atividades extrativistas. A estreia de cada filme ocorre na própria comunidade.

Montahuano se esforça para aprender sua língua ancestral por meio de canções. Seus avós falavam Sápara, mas sua mãe, não. “É muito importante fazer esse resgate e ensinar os que não sabem, para que nos ajudem a defender a terra”, diz.

Refletindo sobre os projetos e campanhas que seu povo lançou nos últimos anos, Manari Ushigua ainda sonha com uma Amazônia livre de desmatamento ou exploração petrolífera:

“Tomamos a decisão de compartilhar nosso conhecimento, porque o mundo Sápara corria o risco de desaparecer. Se outros aprendem com nossa sabedoria, nossas raízes serão mais fortes”.