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Opinião: Acordos de lítio no Chile são exemplo de desenvolvimento predatório

Enquanto governo de Gabriel Boric vende slogan de administração ecológica, decisões recentes sobre lítio sugerem o contrário, escreve a especialista em políticas chilenas
<p>Processo de evaporação em piscinas de lítio, no deserto do Atacama, Chile. Há cerca de 60 salinas no país, mas apenas 30% estão em áreas protegidas (Image: Freedom Wanted / Alamy)</p>

Processo de evaporação em piscinas de lítio, no deserto do Atacama, Chile. Há cerca de 60 salinas no país, mas apenas 30% estão em áreas protegidas (Image: Freedom Wanted / Alamy)

A intensidade da crise climática e ecológica está se tornando cada vez mais evidente. Ondas de calor escaldantes, secas implacáveis, enchentes devastadoras, clima polar extremo e incêndios florestais são o resultado de atividades como o desmatamento, a superexploração de minerais e a expansão descontrolada do agronegócio, para citar alguns exemplos. Esses fenômenos geram uma constante preocupação, dada a alarmante perspectiva de que as temperaturas globais continuem a subir. 

O consumo excessivo é uma das causas dessa destruição — principalmente pelos países mais ricos e apoiado por Estados que não promovem medidas ambiciosas para reduzi-lo. É por causa dessa inação que estamos próximos de um ponto de virada. Esse momento é resultado da inércia e da falta de vontade política para implementar medidas que respeitem os limites planetários e de enfrentar o modelo de desenvolvimento predatório: atividades econômicas baseadas em uma lógica de crescimento infinito, antropocêntrica e utilitarista da natureza — uma natureza que não pode satisfazer as demandas de um sistema que persiste por um caminho destrutivo.

Nesse contexto, o Chile foi visto como um lugar de esperança quando, ao assumir o poder em 2022, o governo de Gabriel Boric apresentou uma “administração ecológica”. Um de seus slogans — “se o Chile foi o berço do neoliberalismo, também será seu túmulo” — propunha uma nova narrativa, defendendo uma maneira diferente de fazer as coisas e de se relacionar com a natureza. Infelizmente, quase dois anos depois, pouco desse slogan soa como verdadeiro. De fato, o aprofundamento de atividades extrativistas em todo o país está na ordem do dia, e o lítio é um excelente exemplo dessa tendência.

A política do governo chileno para o lítio busca expandir sua fronteira da mineração. O status quo é o que define o rumo da estratégia de lítio, e não os estudos sobre as salinas. Além disso, mesmo com o avanço tecnológico das operações, não há garantias de preservação dos ecossistemas onde elas funcionam, dada sua fragilidade. 

Em última análise, a prioridade do governo é a extração. Até agora, das cerca de 60 salinas do Chile, apenas 30% estão protegidas. Essa é uma medida retrógrada para o meio ambiente e levanta a questão: quais salinas merecem ser preservadas e quais não merecem? Dada a escala da crise climática e ecológica, a verdade é que não podemos prescindir de nenhum ecossistema — nossa vida depende disso. 

A política do lítio desenvolvida pelo governo Boric considerou elementos sociais, ambientais e econômicos ao criar um instituto de pesquisa sobre salinas e estabelecer um diálogo com organizações e especialistas, entre outras medidas. Mas isso foi deixado de lado após a assinatura, em dezembro de 2023, de um memorando de entendimento entre a estatal Codelco e o grupo minerário SQM, que prevê a extração conjunta de lítio no Salar do Atacama. O memorando está enquadrado na lógica extrativista do século 20, com a previsão de parcerias de longo prazo, sem considerar as crises climáticas e socioeconômicas e uma perspectiva ética. As comunidades indígenas, por exemplo, afirmam não terem sido consultadas sobre a iniciativa.

Produção de carbonato de lítio nas instalações da SQM
Produção de carbonato de lítio nas instalações da SQM. Desde dezembro passado, a mineradora chilena detém os direitos exclusivos de exploração de lítio no Salar de Atacama até 2030 (Imagem: Lucas Aguayo Araos / Alamy)

O envolvimento da SQM, que tem um histórico de financiamento político irregular, contradiz a suposta transformação do governo rumo a uma gestão ecológica. Além disso, sendo assinado por entidades privadas, o memorando desconsidera elementos-chave: originalmente buscava-se fortalecer o Estado e estabelecer uma empresa nacional de lítio. Nesse novo acordo, a SQM não só mantém os direitos exclusivos de exploração do salar até 2030, como também planeja dobrar sua extração entre 2031 e 2060. Essa extensão terá um impacto profundo na dinâmica entre as salinas e as espécies que as habitam.

Hoje, há narrativas concorrentes e pressões globais em torno do lítio e de outros minerais. A estratégia capitalista verde busca estruturar uma nova narrativa focada na redução de emissões sem modificar o consumo do Norte Global. Isso exerce pressão adicional sobre os recursos naturais do Sul Global e não respeita os limites planetários. 

Essa narrativa nos impõe a ideia de que devemos cooperar para salvar o mundo, reduzindo de forma individual as emissões. Essa realidade está longe de ser autêntica; é a crise ecológica que está intensificando a crise climática e, sem mudanças nos padrões de consumo, a renovação tecnológica não alcançará uma transição genuína. 

O imperativo da mudança tecnológica é inegável, mas essa estratégia não pode ocorrer a todo custo. Hoje, prevalece a lógica da venda pelo maior lance, sem compromisso de melhorar o cenário mais amplo. Estamos vivendo em um mundo cada vez mais propenso à escassez, no qual é cada vez mais difícil sobreviver. Se o século 20 foi marcado pela abundância, o século 21 parece estar caminhando inexoravelmente para a escassez.

A crise ecológica que está intensificando a crise climática e, sem mudanças nos padrões de consumo, a renovação tecnológica não alcançará uma transição genuína

É importante observar que não estou defendendo o fim da mineração — um argumento que faço com frequência. O que estou propondo é simplesmente que a atual fronteira de mineração, que já é considerável, não seja expandida. No caso do lítio, as salinas e as espécies que as habitam têm o direito fundamental de existir como estão, assim como as gerações futuras têm o direito de conhecer e desfrutar desses ecossistemas.

Também é essencial avançar com medidas econômicas que promovam soluções baseadas na natureza, como o florestamento e a agricultura regenerativa, bem como a adaptação e a resiliência. Considerar esses aspectos é fundamental se quisermos reverter o modelo de desenvolvimento predatório e construir um futuro mais sustentável.