Clima

América Latina tem ‘meio caminho andado’ em direção à boa governança ambiental

Região progrediu nas leis de proteção ambiental, mas falha na aplicação. Entrada em vigor do Acordo de Escazú oferece esperança de melhoria
<p>Um mural antimineração em Mendoza, Argentina, onde as comunidades se opuseram às tentativas de reforma das leis da água para permitir a extração em larga escala (Imagem: Alamy)</p>

Um mural antimineração em Mendoza, Argentina, onde as comunidades se opuseram às tentativas de reforma das leis da água para permitir a extração em larga escala (Imagem: Alamy)

A distância entre as leis ambientais e a realidade do meio ambiente está aumentando na América Latina, à medida que as mudanças climáticas, a poluição do ar e da água, o desmatamento e a perda de biodiversidade se tornam mais urgentes, de acordo com um relatório recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do World Justice Project

A pesquisa analisou as instituições e as regras que regulam a proteção ambiental, que juntas compõem o que o relatório chama de governança ambiental, em 10 países da região Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Jamaica, Peru e Uruguai. Embora todos tenham incorporado a legislação ambiental, o relatório encontrou sérias deficiências em sua implementação. 

“Nós nos concentramos em analisar o estado de aplicação da lei, o que acontece quando há uma violação dessas leis, e o que os cidadãos ou empresas podem usar para ir aos tribunais quando discordam de certas políticas”, disse Alejandro Ponce, um dos autores do relatório.

Em uma escala de 1 a 10, sendo 10 o estado mais grave, o relatório concedeu ao grupo de países notas de 8,1 e 8, respectivamente, para poluição da água e desmatamento. Pelo menos uma destas questões ocupa o primeiro ou segundo lugar nos países estudados. As mudanças climáticas e a fauna e flora terrestres em perigo de extinção vêm logo em seguida.

A participação dos cidadãos é mais do que uma simples consulta prévia: é cocriar políticas levando em conta o impacto ambiental

O relatório também identificou a agricultura e a indústria de mineração como as atividades que representam a maior ameaça potencial ao meio ambiente, com médias regionais de 8,4 e 7,7, respectivamente. A sobrepesca também recebeu uma pontuação alta.

Embora os países tenham progredido na realização de estudos de impacto ambiental, o relatório aponta que é necessário incluir explicações mais detalhadas sobre a decisão dos governos em relação aos projetos. As organizações de cidadãos e grupos indígenas também precisam ser consultadas adequadamente.

Ataques a defensores do meio ambiente também foram destacados no relatório. Em 2019, cerca de 150 ambientalistas foram mortos na América Latina, de acordo com a organização Global Witness.

Governança ambiental na América Latina: da lei à implementação

Perguntado pelo Diálogo Chino sobre a ampla lacuna entre as leis ambientais e sua correta implementação na América Latina, Ponce disse: “Há uma falta de recursos e de pessoal qualificado nas partes ambientais dos governos. A coordenação com outras agências é um problema e há uma falta de transparência e responsabilização”.

Entretanto, a pesquisa mostrou que a maioria dos países da região progrediu na aprovação de leis ambientais e naquelas relativas ao acesso à informação. Para Ponce, a América Latina tem “meio caminho andado” para alcançar bons níveis de governança ambiental.

“A participação dos cidadãos é mais do que uma simples consulta prévia: é cocriar políticas levando em conta o impacto ambiental e incorporando o que sai dessas consultas. Isso ainda é um longo caminho”, disse ele.

O relatório destaca os casos do Uruguai e da Costa Rica, que têm muitos indicadores positivos, tais como responsabilidade, transparência, combate à corrupção e conservação de florestas e da biodiversidade. Entre os desafios comuns a todos os países, a gestão dos oceanos recebeu classificações fracas em todos os âmbitos.

Natalia Gómez Peña, ativista do grupo da sociedade civil Civicus, uma aliança global de ONGs, destacou os conflitos ambientais na região gerados por grandes projetos de infraestrutura. “Eles não são planejados com os direitos das populações afetadas em mente. É por isso que é fundamental que as instituições financeiras e os investidores incorporem indicadores de governança ambiental”, disse Peña. 

86


número de projetos de infraestrutura com financiamento chinês na América Latina (2005-2019)

As duas principais fontes de financiamento de infraestrutura da América Latina são o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a China. Entre 2005 e 2019, instituições chinesas financiaram 86 projetos de infraestrutura na região no valor de quase 80 bilhões de dólares, de acordo com o Monitor de Infraestrutura 2020 da Rede Acadêmica Latino-Americana sobre China. 

Muitos desses investimentos motivaram conflitos em razão de seus potenciais impactos ambientais, como o porto de São Luís na Amazônia brasileira, as barragens no rio Santa Cruz na Patagônia Argentina, ou o parque solar na península mexicana de Yucatán.

Licenças sociais

Para Andrés Nápoli, diretor executivo da Fundação Argentina do Meio Ambiente e Recursos Naturais (FARN), a governança ambiental é mais do que a aplicação da lei. As decisões de alto nível e as aprovações parlamentares de projetos são legitimadas por meio da participação da sociedade civil. “Isso é o que muitas classes dirigentes da região não entendem”, disse ele.

Um caso em questão são as tentativas do governador de Mendoza de reformar a Lei da Água em 2019 para permitir a mineração a céu aberto na província. A modificação possibilitou o uso de cianeto, ácido sulfúrico e outras substâncias nocivas na extração de minérios. Segundo críticos das mudanças na lei, o uso dessas substâncias pode contaminar fontes de água.

Embora um número suficiente de legisladores tenha aprovado a reforma, o governador foi forçado a recuar. Um dos pontos de pressão contra o projeto era a ausência de uma licença social, uma espécie de aval informal dado pela sociedade civil que serve para dar mais legitimidade às operações de uma empresa. Sem essa licença, governos podem se recusar a emitir a autorização das operações.

“Não é suficiente com os projetos que deveriam melhorar o emprego ou alavancar a economia, mas outras dimensões que têm a ver com a sustentabilidade devem ser levadas em conta e incorporadas, pois caso contrário haverá um conflito generalizado”, advertiu Nápoli.

Acordo de Escazú: reforçando a governança ambiental

O Acordo de Escazú é uma oportunidade para preencher a lacuna entre as leis e sua correta aplicação, segundo Gómez Peña do grupo da sociedade civil Civicus. “O acordo poderia dar aos países mais ferramentas para implementar efetivamente essas leis”, disse ela.

Escazú é o primeiro tratado ambiental regional que procura promover os direitos de acesso à informação, participação e justiça em matéria ambiental. É também o primeiro acordo no mundo a estabelecer garantias para proteger pessoas que defendem os direitos humanos em questões ambientais.

Este acordo deverá entrar em vigor em 2021, 90 dias após a Argentina e o México os últimos países a ratificarem o texto submeterem suas ratificações à ONU.

Nápoli está otimista com a entrada em vigor do tratado. “Escazú é uma resposta aos problemas ambientais da região”, disse. “Os países terão que ser responsáveis pelo que estão fazendo, comprometer-se com melhorias e a sociedade civil será capaz de fazer exigências diretas que agilizarão os processos nacionais”.

Para Ponce, os indicadores de governança ambiental de seu relatório ressaltam a necessidade do acordo. “Nosso estudo serve para demonstrar com evidências o que existe e o que falta nas questões centrais do Escazú, informação, participação e acesso à justiça”, disse.