Poluição

Vazamentos de óleo mancham Amazônia peruana sem ação efetiva de autoridades

Cerca de 600 derramamentos ocorreram na região desde 1997. Inação do Estado obriga indígenas a viver com consequências econômicas, sanitárias e culturais de desastres
<p>Gilberto Guevara, líder de uma comunidade indígena, mostra sacos cobertos por derramamento de óleo no Bloco 192, uma área da Amazônia peruana onde mais de 200 derramamentos de óleo ocorreram desde 1997 (Imagem: Alessandro Cinque / Alamy)</p>

Gilberto Guevara, líder de uma comunidade indígena, mostra sacos cobertos por derramamento de óleo no Bloco 192, uma área da Amazônia peruana onde mais de 200 derramamentos de óleo ocorreram desde 1997 (Imagem: Alessandro Cinque / Alamy)

Cerca de 12 mil barris de petróleo vazaram da refinaria La Pampilla, operada pela gigante espanhola Repsol, em Ventanilla, a 20 km a norte de Lima, em 15 de janeiro. Foi um dos maiores desastres ambientais da história do Peru e está longe de ser exceção.

87 mil


barris de petróleo já foram derramados no Peru entre 1997 e 2021, segundo um levantamento da Oxfam e da CNDDHH

Entre 1997 e 2021, houve 566 vazamentos na Amazônia peruana, segundo um novo relatório da Oxfam e da Coordenadora Nacional de Direitos Humanos (CNDDHH), uma coalizão da sociedade civil peruana. Acredita-se que mais de 87 mil barris já foram derramados em todo o Peru.

Nos dias após o vazamento da Repsol, a organização Povos Indígenas Amazônicos Unidos em Defesa de seus Territórios (PUINAMUDT) emitiu uma declaração em solidariedade aos afetados e chamou atenção para a situação das comunidades amazônicas.

“Enquanto que no caso do derramamento em Lima a reação das autoridades, oficiais, membros do Congresso e da imprensa foi imediata, e até medidas legais foram tomadas para que representantes da Repsol não deixassem o país, nossas denúncias enfrentam adiamentos, indiferença e preguiça”, afirmou a PUINAMUDT.

Por relatar esse tipo de situação, fomos mortos, torturados e presos

A organização alega que no dia 22 de janeiro, uma semana após o acidente em La Pampilla, um derramamento de petróleo ocorreu no Bloco 192, maior campo petrolífero do país, no norte da Amazônia peruana. No entanto, há relatos de que agências estatais não apareceram para lidar com o desastre.

José Fachín, líder indígena da etnia Kichwa e assessor dos Povos Afetados pela Atividade Petrolífera (Paap), disse ao Diálogo Chino que após o derramamento de Ventanilla, as comunidades amazônicas “se sentiram discriminadas porque, além da ausência do Estado e da imprensa quando ocorrem derramamentos de petróleo na Amazônia, o pouco que é relatado sobre esses eventos acaba levando à perseguição dos povos indígenas, que têm sido frequentemente culpados por esses desastres ambientais”.

“Por reclamar ese tipo de situaciones nos han matado, nos han torturado, nos han encarcelado y seguimos perseguidos judicialmente”, afirmó Fachín. 

E acrescentou: “Por relatar esse tipo de situação, fomos [povos indígenas] mortos, torturados e presos e continuamos a ser perseguidos judicialmente”.

Os derramamentos na Amazônia ocorrem principalmente devido à falta de manutenção e negligência operacional, assim como ataques de terceiros. O relatório da Oxfam e do CNDDHH aponta que o maior número de vazamentos ocorreu no Bloco 192, com 233 incidentes; seguido pelo Bloco 8, com 189, um campo na província de Loreto, e o Oleoduto Norte-Peruano, com 111, que perpassa as regiões de Loreto e Amazonas.

Oleoduto Norte-Peruano: um caso estratégico

O Oleoduto Norte-Peruano (ONP) é o mais longo do país — e também o mais controverso.

O ONP entrou em operação em 1976 e transporta petróleo bruto da Amazônia à costa peruana por 1.100 quilômetros, passando pelas regiões de Loreto, Amazonas, Cajamarca, Lambayeque e Piura.

mapa mostrando a extensão do oleoduto do norte do Peru e os derramamentos de óleo

De acordo com o relatório da Oxfam e CNDDHH, 33% dos derramamentos ocorridos ao longo do ONP entre 1997 e 2021 foram resultado de falhas operacionais; 22,3% ocorreram devido à corrosão; 31,1% por culpa de “terceiros”, enquanto que 13,6%, devido a causas naturais, como terremotos e deslizamentos de terra.

Os casos mais notórios ocorreram na última década. Em 2014, mais de 2.500 barris de petróleo foram derramados em Cuninico, em Loreto. Em 2016, 1.444 barris vazaram em Morona, também em Loreto. No mesmo ano, mais três mil barris foram derramados em Imaza, no Amazonas. Só nesses três casos, quase sete mil barris foram derramados nos rios, córregos e solos da Amazônia.

O incidente ocorrido em Cuninico em 2014 é possivelmente o mais emblemático, de acordo com Juan Carlos Ruiz, advogado e coordenador no Instituto de Defesa Legal, organização peruana de direitos humanos.

Antes do derramamento, comunidades que viviam perto do local do desastre eram frequentemente acusadas de danificar ou vandalizar a infraestrutura, explicou Ruiz. Isso era conveniente para a Petroperú, petrolífera estatal que opera o oleoduto, pois a isentava de qualquer responsabilidade, ele acrescenta.

Ruiz explicou, entretanto, que esse argumento não se sustentava legalmente e que em 2015, a Oefa, agência de avaliação e fiscalização ambiental do governo, apresentou uma resolução histórica sobre o caso.

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“Pela primeira vez, ela declarou a responsabilidade administrativa da Petroperú: em primeiro lugar, por não fazer a manutenção do oleoduto; em segundo, por danos à flora e fauna; e em terceiro, por potenciais danos à saúde. Tal decisão nunca havia sido tomada”, lembrou o advogado.

Esse caso serviu como precedente para outros, como os de Imaza e Morona. Neles, a Oefa multou a Petroperú em US$ 7 milhões por não realizar a manutenção do oleoduto, falhar na adoção de medidas para controlar, minimizar os impactos do derramamento e por causar danos à saúde, entre outras acusações.

Nos três derramamentos, acrescentou Ruiz, “as vítimas queriam que fosse reconhecido que elas não tinham quebrado o gasoduto. Elas ficaram indignadas por estarem sendo acusadas”.

Ele disse ainda que as comunidades afetadas “queriam mais saúde, uma vez que, mesmo após a coleta do óleo, houve efeitos secundários”. Segundo Ruiz, elas disseram ainda terem sido prejudicadas economicamente, “porque perderam suas fazendas e não podiam pescar nos rios, e por isso queriam uma indenização. Depois queriam garantias de que não haveria outro derramamento”.

Em 2017, o Congresso do Peru criou uma comissão de investigação para determinar o responsável pelos derramamentos do Oleoduto Norte-Peruano. Em seu relatório final, ela afirma que se “verificou a ineficiência, inoperabilidade e falta de comprometimento com que a Petroperú atua na gestão do oleoduto Norte-Peruano, na conservação do meio ambiente, na gestão de riscos e no relacionamento e responsabilidade social para com as comunidades nativas”.

Em agosto de 2019, foi promulgada a Lei 30.993, que declarou a modernização do ONP como medida de interesse nacional. O Diálogo Chino questionou a Petroperú sobre o progresso do trabalho, mas não recebeu nenhuma resposta.

Como reduzir (e pôr fim) a vazamentos de óleo?

Lissette Vásquez, representante de meio ambiente, serviços públicos e povos indígenas da Ouvidoria peruana, salientou que antes de elaborar um plano ou aprovar um regulamento em torno dos vazamentos, é necessário que tanto as autoridades quanto as empresas tratem a questão como prioridade. Isso não tem ocorrido nos últimos anos, ela afirma.

“A atenção aos impactos ambientais não tem sido e não é uma prioridade para muitas administrações estaduais. Essa questão tem que ser priorizada devido aos riscos e impactos que eles geram ao meio ambiente e à saúde”, disse Vásquez.

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César Ipenza, advogado ambiental do Peru, explica que órgãos como o Osinergmin,  que supervisiona investimentos em energia e mineração, e a Oefa apenas agem de forma reativa e “com base em fatos consumados” diante dos derramamentos.

“Qual é a função delas? Basicamente, sancionar e reagir quando ocorre a contaminação. Acho que isso é a pior coisa que podemos fazer”, disse Ipenza. “Se eles têm recursos, deveriam ter uma posição muito mais pró-ativa e estar à frente da situação para garantir que os derramamentos não aconteçam. É sobre não chegar tarde demais”.

Na mesma linha, Vásquez destacou a necessidade de “reforçar e intensificar a fiscalização permanente e preventiva de todas as atividades”, em termos de impactos ambientais e obrigações técnicas e de segurança. “Não podemos esperar até percebermos que o plano de contingência ou a infraestrutura não está funcionando. São coisas que podem ser detectadas em supervisões permanentes e preventivas”, disse.

Juan Carlos Ruiz, do Instituto de Defesa Legal, disse que, idealmente, empresas e entidades estatais do Peru cumpririam a regulamentação existente para lidar com emergências ou evitá-las, mas esse cenário está muito distante da realidade. Por isso, ele destaca a importância de se estabelecer canais eficazes e formais para a comunicação de vazamentos de petróleo às entidades atuantes.

Ruiz citou o derramamento de Cuninico como exemplo. Esse caso, sozinho, teve cinco “disputas judiciais”: sobre a responsabilidade da Petroperú pelo incidente; os impactos sobre os afetados; a compensação de quatro comunidades nativas; o direito a pagamentos da exploração de petróleo para as comunidades indígenas; e um processo perante a Corte Constitucional em torno da responsabilidade da Petroperú sobre a manutenção do oleoduto.

Segundo Ruiz, o caso de Cuninico, arquivado em 2018, “busca uma decisão judicial final que obrigue a estatal Petroperú a supervisionar e monitorar as operações do ONP e garanta a manutenção para manter seus oleodutos em condições seguras”.

Se essa situação continuar assim é porque estamos fazendo algo bem errado como Estado

Lissette Vásquez afirma que os sistemas de fiscalização devem garantir medidas corretivas ou sanções que desestimulem a conduta infratora. Além disso, devem ser feitos esforços para garantir que as medidas destinadas à remediação ambiental sejam cumpridas.

“Não é suficiente sancionar. É inconcebível que se tenha passado sete anos sem sabermos se os impactos gerados pelo derramamento de Cuninico foram remediados”, lamentou Vásquez. “Se essa situação continuar assim é porque estamos fazendo algo bem errado como Estado”.