Energia

Petróleo offshore decola na Argentina em meio a riscos ambientais

Governo argentino concedeu dezenas de licitações para explorar petróleo nas águas do país, provocando conflitos entre empresas, sociedade e o próprio Estado
<p>Manifestantes protestam contra empresas petrolíferas nos mares argentinos, em uma marcha em Buenos Aires, em julho de 2021. Nos últimos anos, o governo argentino licitou 13 empresas para explorar petróleo em águas territoriais do país (Imagem: ZUMA Press / Alamy)</p>

Manifestantes protestam contra empresas petrolíferas nos mares argentinos, em uma marcha em Buenos Aires, em julho de 2021. Nos últimos anos, o governo argentino licitou 13 empresas para explorar petróleo em águas territoriais do país (Imagem: ZUMA Press / Alamy)

Até hoje não se sabe se há gás ou petróleo nas águas profundas da costa argentina. Mas isso não impediu que 13 empresas tenham assinado acordos com o governo para prospectar e explorar grandes áreas nas águas do norte e sul do país, perto das Ilhas Malvinas, em busca desses recursos. Com isso, conflitos entre sociedade, Estado e empresas emergiram, em parte porque muitas dessas empresas se envolveram em incidentes ambientais em outras partes do mundo.

Embora tenha havido uma diminuição substancial nos derramamentos de petróleo nos oceanos nas últimas décadas, a sociedade ainda tem motivos para se preocupar com o desenvolvimento offshore na Argentina. O país tem uma experiência muito limitada em operações offshore em águas rasas e carece de dados sobre derramamentos de petróleo no mar. Várias organizações — e as próprias empresas — acreditam que deve haver um aumento expressivo dos riscos de novos incidentes com impacto no mar.

Por enquanto, a intenção é começar com um primeiro poço exploratório — chamado Argerich — a 300 quilômetros da cidade costeira de Mar del Plata. Em 9 de agosto, o governo anunciou a aprovação de uma segunda avaliação de impacto ambiental para o projeto, a ser feita pelas empresas responsáveis pelo empreendimento: a norueguesa Equinor e a estatal argentina YPF. A avaliação anterior foi revogada pelo Ministério do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, após pressões da sociedade.

Fontes do Ministério de Energia disseram ao Diálogo Chino que a exploração deverá começar no início do próximo ano e que outros projetos nas águas do país devem entrar em operação entre agora e a década de 2050.

‘Era de ouro’ do offshore?

O petróleo offshore começou a se desenvolver a um ritmo acelerado na América Latina,  principalmente no Brasil. Aldo Duzdevich, conselheiro e porta-voz da Secretaria de Energia da Argentina, disse ao Diálogo Chino que há expectativas de existirem depósitos semelhantes aos encontrados no Brasil, na camada pré-sal.

A exploração do pré-sal no Brasil tornou-se uma aspiração regional desde que depósitos gigantescos de hidrocarbonetos foram encontrados perto do Rio de Janeiro em 2007. Desde essa descoberta, o Brasil se posicionou entre os principais produtores offshore da região, junto com o México e a Venezuela.

gráfico mostrando os estágios do desenvolvimento de petróleo e gás offshore
Infográfico: Vito Vangeles / Diálogo Chino

Nos últimos cinco anos, o elenco ganhou novos atores: Equador, Nicarágua, Honduras, Panamá, Colômbia, Peru, Guiana, Suriname, Uruguai e Argentina — todos estão acelerando as licenças e a legislação para permitir instalações offshore em suas águas.

Até hoje, as empresas transnacionais com maior presença no continente são ExxonMobil, Total Energy, Qatar Petroleum e Shell, assim como a Equinor — empresa que mais se beneficiou da exploração offshore de hidrocarbonetos em todo o mundo.

Um trabalhador monta um estande de exposição na Guiana.
Saiba mais: Descoberta de petróleo na Guiana provoca debate nacional

A maioria das licitações vencidas por essas empresas teve início em 2016, com investimentos que aumentaram nos últimos dois anos. Casos como o da Guiana, onde a ExxonMobil encontrou um dos maiores depósitos da região, incentivaram a chegada de novas empresas e a abertura de novas licitações.

Vários estudos já apontavam para a presença de hidrocarbonetos na costa leste da América do Sul. E, em 2021, foram encontrados depósitos na costa da Namíbia, que tem uma camada pré-sal semelhante à do continente latino-americano, já que no passado tiveram a mesma cobertura terrestre, conhecida como Gondwana. Esses fatores aumentam as chances de haver depósitos também no Uruguai e na Argentina.

Essa informação parece ter sido suficiente para provocar uma avalanche de concessões entre 2019 e 2021. Treze empresas investiram mais de US$ 724 milhões em licenças para prospectar e explorar 18 áreas no norte do mar argentino e em áreas próximas às Ilhas Malvinas. Mas esse valor é apenas o início, já que os custos operacionais, a infraestrutura e os gastos com mão de obra também entrarão na conta, o que pode dobrar a quantia paga ao governo argentino.

Mapa mostrando as concessões offshore no mar da Argentina
Infográfico: Vito Vangeles / Diálogo Chino

De acordo com um estudo recente da consultoria Ecolatina, o investimento privado no período de prospecção e exploração não passa de 10% dos lucros potenciais. Os cálculos são hipotéticos, e os possíveis lucros para o Estado argentino ainda são incertos.

Para o governo argentino, a perspectiva de novos depósitos traz uma oportunidade tentadora para dois de seus problemas mais urgentes: a falta de dólares no Banco Central e o fornecimento de gás à população.

Embora já existam no país poços offshore rasos e profundos, muitos deles estão fechados ou desativados — os primeiros contribuem com 20% da produção de gás do país, enquanto a produção do último tem sido mínima. Para o governo e sua necessidade de resolver questões econômicas urgentes, essa produção é insuficiente.

Países como a Guiana abriram suas portas para o petróleo offshore em uma tentativa de superar a crise econômica, especialmente após a pandemia da Covid-19 e a guerra na Ucrânia. Contudo, ambientalistas de toda a região denunciaram a flexibilidade dos marcos regulatórios, o que, segundo eles, pode levar a enormes impactos ambientais.

Esses grupos incluem a Sociedade de Conservação Marinha da Guiana, a campanha brasileira Nem um Poço a Mais e as organizações argentinas Fundación Ambiente y Recursos Naturales (Farn) e o Observatorio Petrolero Sur (OPsur), entre outras.

Impactos do petróleo offshore

Embora a frequência dos vazamentos de petróleo offshore tenha diminuído, preocupações quanto aos seus impactos ambientais, não. Um estudo realizado em 2020 pela organização ambiental Oceana concluiu que não houve nenhuma melhoria substancial na segurança e na prevenção de desastres offshore nos últimos anos.

“É provável que haja um risco maior de derramamentos hoje, já que há perfurações cada vez mais profundas no mar. Estamos falando de mais perfuração com menos segurança: uma receita perfeita para desastres”, disse Diane Hoskins, diretora de campanha da Oceana, na época do lançamento do estudo.

Outro estudo, da Farn, alerta para a relevância da Equinor, empresa que tem operações em mais de 30 países em todos os continentes e tem se envolvido em incidentes ao redor do mundo — entre eles, uma série de vazamentos de petróleo na Noruega entre 2006 e 2021. A empresa venceu oito das 18 licitações abertas na Argentina.

Segundo Fernando Halperin, coordenador de comunicação do Instituto Argentino de Petróleo e Gás (Iapg), que representa as empresas fósseis no país, as preocupações e alegações acerca da indústria offshore são infundadas, uma vez que a capacidade técnica atual é “muito mais avançada do que há dez anos”.

operações de limpeza no golfo do méxico
Operações de limpeza no Golfo do México, junho de 2010, após a explosão e subsequente derramamento da plataforma petrolífera Deepwater Horizon (Imagem: kris krüg / CC BY-NC-SA 2.0)

Halperin destaca que as empresas concentram esforços para desenvolver protocolos de contenção, especialmente após o desastre da Deepwater Horizon, no Golfo do México, ocorrido há 12 anos. A explosão e o subsequente derramamento de petróleo tiveram consequências trágicas, e as tentativas de mitigação da British Petroleum — a principal responsável — foram consideradas insuficientes, de acordo com o estudo da Oceana.

A América Latina tem concentrado catástrofes relacionadas à exploração de petróleo e poluição marinha. As mais notórias foram os derramamentos na Península de Paria e no rio Guarapiche, na Venezuela, além de um derramamento ao longo da costa nordeste do Brasil, em 2019. O incidente mais recente foi o de uma refinaria da Repsol na costa do Peru, no início deste ano.

Víctor Quilaqueo, especialista em offshore da OPsur, disse que, enquanto os derramamentos de petróleo são um dos impactos mais visíveis da atividade, há outros menos comentados, mas igualmente importantes.

“Há emissões gigantescas com o vazamento de gás, como foi o caso no Golfo do México no ano passado”, afirmou Quilaqueo. Um vazamento no Golfo levou a um enorme incêndio no oceano, o que atraiu a atenção internacional.

Além disso, de acordo com um relatório do projeto Copernicus, a indústria é responsável por grandes liberações de dióxido de nitrogênio, que podem causar chuvas ácidas. Estudos também indicam que o som emitido pelos canhões de ar utilizados na exploração offshore pode afetar organismos marinhos.

“Os ruídos emitidos em diferentes frequências podem afetar os ciclos de reprodução, alimentação e orientação dos organismos”, disse Michell Havlik, doutor em bioacústica marinha pela Universidade de Kaust, na Arábia Saudita, ao Diálogo Chino.

Há perfurações cada vez mais profundas no mar. Estamos falando de mais perfuração com menos segurança: uma receita perfeita para desastres

Halperin garante que a indústria está ciente e implementou métodos para reduzir esse impacto. “Ele se chama ‘início suave’. Começamos com um ruído sutil e gradualmente o aumentamos para que, se houver cetáceos ou cardumes de peixes, eles comecem a se sentir incomodados e mudem de direção”, explicou o representante do Iapg.

Estima-se que a exploração offshore na Argentina dure de 25 a 30 anos, até que os poços de hidrocarbonetos se esgotem ou deixem de ser rentáveis — quando a infraestrutura offshore pode se tornar inutilizável.

“Grande parte da infraestrutura dos poços é desmontada”, explicou Halperin. Outra porcentagem, de acordo com organizações, é abandonada como um ativo encalhado.

Um relatório da Iniciativa Colombiana de Divulgação do Clima alertou que a produção e o uso desse tipo de maquinário pode ter um horizonte ainda mais curto diante dos esforços de descarbonização relacionados aos compromissos climáticos.

Mas para a OPsur, não é apenas o custo da infraestrutura que pode afetar a economia e a população. “Todos esses impactos afetam as atividades nas regiões costeiras. O turismo e a pesca podem estar entre aquelas a ficar em segundo plano”, disse Quilaqueo.

Halperin, por outro lado, vê exagero nesse argumento: “Estamos a 300 quilômetros da costa — você nem consegue ver as plataformas”.

Mas a construção de portos, refinarias, centros de armazenamento de hidrocarbonetos, oleodutos e rotas de transporte para a indústria pode deslocar as atividades econômicas já instaladas na área, bem como desapropriar a população para abrir espaço para esse tipo de infraestrutura.

Momento ruim para o offshore

A Argentina já viu vazamentos de petróleo em suas águas. Um pedido de informações feito pelo Diálogo Chino à Prefeitura Naval, órgão responsável pela proteção das águas nacionais, revelou que houve pelo menos 17 derramamentos registrados entre 2016 e 2022. Esses dados coincidem com um estudo feito pela Comissão Nacional de Atividades Espaciais, que tem um sistema de monitoramento em regiões costeiras.

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É o número de derramamentos de petróleo registrados na Argentina entre 2016 e 2022, segundo dados da Prefeitura Naval do país.

Os dados só estão disponíveis para esse período. Entretanto, de acordo com as leis 22.190, 24.089, 24.292 e 25.137, o monitoramento deveria estar em vigor desde 1981. O material e volume derramado e as empresas envolvidas nesses casos recentes são um mistério, já que os casos ainda tramitam na Justiça. Ainda segundo o pedido de informações, o total de multas pagas entre 2016 e 2022 foi de apenas US$ 19.408.

Em suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), o governo argentino propõe para 2030 o crescimento de combustíveis fósseis, especialmente do gás natural, junto com o de energias renováveis não-convencionais. Mas desde a posse do presidente Alberto Fernández, não foram lançadas novas licitações para parques solares ou eólicos.

“Não basta apenas ter uma meta [de descarbonização] para 2030 ou 2050, é essencial elaborar um plano para alcançá-la”, escreveram Pía Marchegiani e Andrés Napoli, diretores da Farn, em seu último relatório.

Esse apelo é semelhante à tensão que paira entre os ministérios do Meio Ambiente e de Energia, embora o peso político tenda a se inclinar para o último.

uma pessoa ilumina um distribuidor de combustível YPF
Saiba mais: Opinião: Transição energética emperra na Argentina

Em relação ao offshore, há por um lado a alegação de que ele vai gerar, de forma acelerada, divisas para compensar a crise econômica argentina. Por outro, é preciso criar políticas concretas para implementar uma transição energética, regular a produção de hidrocarbonetos e cumprir com as reduções de emissões.

“Para um Estado que promove o avanço dos hidrocarbonetos, sua capacidade de fiscalização, controle e regulamentação é muito limitada”, diz Quilaqueo.

O novo ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, anunciou medidas para acelerar a produção de hidrocarbonetos na província de Neuquén, no norte do país. Além disso, as empresas Total Energies, Pan American Energy e Wintershall Dea poderão investir US$ 700 milhões na construção do Fênix, projeto offshore no sul.

O ministro também anunciou que em breve assinará a prorrogação das concessões de Oldelval e Oiltanking-Ebytem, o que vai assegurar US$1,4 bilhão ao governo, e que pretende expandir os gasodutos de Vaca Muerta, um campo de petróleo e gás no norte do país, para a Bahía Blanca, mais ao sul.

Em uma entrevista recente, a secretária do Clima da Argentina, Cecilia Nicolini, falou das dificuldades de consenso sobre a estratégia de descarbonização do país para 2050 — um complemento às NDCs e algo que a Argentina tinha prometido apresentar na COP26.

Enquanto Nicolini menciona a colaboração com os ministérios de Energia, Desenvolvimento Produtivo e Agricultura, ainda não houve acordo entre essas pastas. Mesmo com a COP27 se aproximando, tampouco há detalhes sobre essa possível colaboração, apenas a informação de que ela será apresentada no evento.