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A ferrovia chinesa que tirou a Venezuela dos trilhos

Foi construído apenas um terço dos 468 km planejados da ferrovia entre Tinaco e Anaco, que recebeu US$ 2,74 bi do Fundo Conjunto China-Venezuela. Mas conflitos trabalhistas e ambientais seguem a todo vapor.
<p>Ilustração: Vanessa Pan / Armando.info</p>

Ilustração: Vanessa Pan / Armando.info

Em várias partes da Venezuela, túneis, trilhos e pilares de concreto abandonados já fazem parte da paisagem. Parecem monumentos, com um significado indecifrável, deixados por gigantes ou extraterrestres.

Mas eles são deste mundo. As obras inacabadas fazem parte de um sistema ferroviário de 13.665 quilômetros. Pelo menos é o que foi previsto no Plano Nacional Socialista de Desenvolvimento Ferroviário de 2006, cujos projetos foram parcialmente financiados pelo Fundo Conjunto China-Venezuela (FCCV). O ambicioso plano ferroviário foi projetado pelo Ministério da Infraestrutura (Minfra), por meio do então Instituto Ferroviário do Estado (IFE).

Quinze anos se passaram desde então e apenas 40 quilômetros estão em operação, ou seja, 0,29% do total planejado. Trata-se do trecho Caracas-Charallave-Cúa, que liga a capital venezuelana às cidades de Valles del Tuy, no sudoeste do país. Somente segmentos isolados do restante do sistema podem ser vistos.

mapa mostrando o plano ferroviário da Venezuela

Alguns vestígios sugerem o que seria a Estrada de Ferro Tinaco-Anaco. A rota tinha como objetivo conectar o país de oeste a leste pelas planícies do estado de Cojedes a Anzoátegui. Com esse caminho, a estrada de ferro evitaria o eixo norte-litoral uma área mais densamente povoada que tradicionalmente concentra indústrias e estradas. A obra prometia incentivar um novo pólo de desenvolvimento no coração hoje vazio da Venezuela e, a bordo do “primeiro trem-bala da América do Sul”, a possibilidade de fazer uma viagem de 468 quilômetros em apenas três horas.

Mas as promessas nunca saíram do papel. A empresa estatal China Railway Engineering Corporation (Crec), então a responsável pela realização do trabalho, ficou atolada por disputas com a mão-de-obra venezuelana, obstáculos burocráticos e barreiras linguísticas. No fim, a Crec se retirou do projeto sem nem mesmo concluí-lo: mal avançou 31% e não fez a transferência de tecnologia prometida.

Estrada de Ferro Tinaco-Anaco: mais qualidade e rapidez

Em 30 de julho de 2009, a Crec assinou um contrato com o Instituto Ferroviário do Estado Venezuelano por 7,5 bilhões de dólares para a construção do sistema ferroviário Tinaco-Anaco. Segundo o documento, o projeto seria financiado por meio do Fundo Binacional, criado em maio de 2008 durante a visita de Hui Liangyu, então um dos vice-primeiro-ministros do governo chinês, à Venezuela.

Diosdado Cabello e Bai Zhongren apertam as mãos
Diosdado Cabello, então ministro da Infraestrutura, e o vice-presidente da China Railways, Bai Zhongren (à direita), apertam as mãos após a assinatura do contrato para a construção da ferrovia Tinaco-Anaco (imagem: Xinhua)

Armando.info teve acesso ao contrato, juntamente com outros documentos, que foram analisados conjuntamente com o Centro Latino-americano de Jornalismo (Clip) para a série “Venezuela e China, uma valsa sem ritmo”, com a qual o Diálogo Chino colaborou.

O acordo foi assinado pelo então presidente do IFE, Franklin Pérez, e Bai Zhongren, à época vice-presidente da Crec. Conforme o acordo, a parte chinesa registraria quatro empresas de capital misto chinês-venezuelano no país, transferindo assim tecnologia para a Venezuela e contribuindo para criar uma força de trabalho especializada.

Durante a cerimônia de inauguração das obras em 22 de março de 2009 em Ortiz, município localizado no estado de Guárico, no centro da Venezuela, Bai fez um discurso. “Vamos terminar este projeto Tinaco-Anaco com a melhor qualidade e rapidez possíveis”, disse. “Vamos fazer a transferência de tecnologia completa de engenharia, construção e fabricação para a Venezuela. E vamos negociar com o Instituto para a construção de dormentes, vagões e trilhos, para oferecer mais empregos, para gerar mais oportunidades de trabalho para os venezuelanos”.

Segundo o contrato, o projeto previa a construção de três plantas ou fábricas para dormentes placas de madeira ou cimento que suportam os trilhos solda de trilhos, e montagem de interruptores na estação Dos Caminos (província de Guárico). Também estava prevista a construção de uma quarta planta de montagem de vagões na estação de Chaguaramas, localizada na mesma província.

Contrato ferrovia tinaco-anaco
O contrato estipulava que os chineses instalariam quatro empresas de capital misto no país para fazer a transferência de tecnologia para a Venezuela

De acordo com documentos do Instituto Ferroviário do Estado, o investimento total nas quatro fábricas foi de pouco mais de 347,6 milhões de dólares. As fábricas foram projetadas para produzir 600 mil dormentes, 2 mil trilhos e montar  mil vagões de carga por ano.

Na época, porta-vozes do governo do presidente Hugo Chávez asseguraram que o projeto traria novas oportunidades de desenvolvimento para uma vasta área que vai do centro às planícies orientais, uma região que concentra 1,3 milhão de habitantes e cuja economia se baseia na agricultura e pecuária e, em menor escala, no turismo.

O trem de carga e passageiros passaria por dez estações, incluindo as cidades de Tinaco e El Pao, na província de Cojedes; Dos Caminos, El Sombrero, Tucupido, Zaraza e Chaguaramas, na província de Guárico; Valle de la Pascua, na província de Aragua; e Aragua de Barcelona e Anaco, na província de de Anzoátegui.

Apesar de não ter ido para frente, a China Railway Eryuan Engineering Group (Creec) subsidiária de projeto e engenharia da Crec e responsável por determinar a viabilidade da obra ainda tem o projeto Tinaco-Anaco listado em seu site como “o maior projeto ferroviário da China no exterior”.

gráfico mostrando as estações de trem planejadas de Tinaco-Anaco

O plano previa que, após a conclusão, a Ferrovia Tinaco-Anaco seria capaz de se conectar à inacabada Ferrovia do Centro, que ligaria o estado de Aragua a Puerto Cabello, na província de Carabobo; e com a seção Acarigua-Araure, na província Portuguesa, que seria então ampliada às províncias vizinhas de Barinas e Táchira, na fronteira com a Colômbia.

Nos projetos estatais e na mente do presidente Chávez, um emaranhado de ferrovias irrigaria a Venezuela inteira com desenvolvimento. “É a grande ferrovia das planícies do norte”, disse o então presidente emocionado na cerimônia de lançamento da pedra fundamental em El Mamoncito. A tecnologia chinesa e o dinheiro por trás do projeto levaram Chávez, e até certo ponto a Creec, a botar a carroça na frente dos bois.

Só que “uma vez que os chineses partiram, as pessoas levaram tudo o que podiam vender”, diz Ramón Figuera, jornalista e editor do El Tubazo Digital, um meio de comunicação local. O saque foi o rude despertar de um sonho que nunca chegaria a se materializar.

Pago por música que não tocava

O trabalho foi pago parcialmente. Em um relatório do andamento das obras apresentado em junho de 2010 pelo IFE, consta um primeiro desembolso de 10,66% do investimento total, o equivalente a 800 milhões de dólares, para iniciar os trabalhos em 2009. Em um comunicado emitido em 9 de julho de 2010 e dirigido a Gan Baixan, presidente executivo do Crec, Roger Caraballo, então gerente geral de desenvolvimento ferroviário do IFE, declarou que um segundo desembolso de 675 milhões de dólares havia sido aprovado.

Contratos e relatórios ferrovia tinaco-anaco
Apesar dos desembolsos contínuos, as obras foram interrompidas pela primeira vez em janeiro de 2011

Em 2011, a Gerência Executiva de Fundos de Desenvolvimento do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social da Venezuela (Bandes) aprovou um terceiro desembolso de 667 milhões de dólares para a continuação dos trabalhos no trecho ferroviário Tinaco-Anaco. A alocação também apareceu no Relatório Anual e Contas do Ministério dos Transportes e Comunicações de 2011.

O relatório de 2012 lista outro desembolso de quase 598 milhões de dólares para a continuação dos trabalhos que já haviam sido iniciados. O ministério afirmou em seu relatório que, embora os pagamentos do projeto estivessem dentro do cronograma estipulado, apenas 5,6% do projeto havia progredido.

Apesar de ter dinheiro entrando, as obras foram interrompidas pela primeira vez em janeiro de 2011. Trabalhadores de diferentes setores reclamaram publicamente que no mês anterior a Crec havia assinado os cheques de rescisão para quase todos os trabalhadores, sob o argumento de  que o trabalho deveria ser imediatamente suspenso devido à falta de recursos.

As lideranças sindicais Hermis Ramírez, líder local da Frente Socialista Unida dos Trabalhadores da Indústria da Construção, Madeira e Sistemas Ferroviários da Venezuela (FSUTC), e Jhon Vargas, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria da Construção, Sistema Ferroviário e Indústrias Afins da Venezuela (Sovica), apontaram que: “os gerentes da empresa alegaram que o governo nacional lhes deu apenas 800 milhões de dólares em 2009 para iniciar os trabalhos e em dezembro de 2010 eles já haviam gasto 1,2 bilhão de dólares. Isso mesmo, 1,2 bilhão de dólares! Eles disseram que por causa disso sofreram perdas financeiras e não puderam continuar construindo o trecho”.

Documentos O Relatório Anual do Ministério dos Transportes datado de 2011 e 2012
O Relatório Anual do Ministério dos Transportes datado de 2011 e 2012 mais os documentos de contabilidade compravavam os desembolsos feitos às empresas

O então representante legal da Crec em Anaco, Tomás Aguilera, confirmou aos trabalhadores que as operações estavam suspensas, “não por causa da dívida, mas porque as conversações entre a China e a Venezuela haviam sido retomadas para estabelecer novas diretrizes”.

Em uma entrevista no canal Televen em junho de 2013, o presidente do IFE, Francisco Torrealba, admitiu que o governo venezuelano devia 400 milhões de dólares à China. Naquele ano, o Relatório Anual e Contas do Ministério dos Transportes mostrou que o projeto não recebeu recursos em 2013 e que, até o ano anterior, apenas um terço havia sido concluído.

Em 2014, o Ministério dos Transportes observou que entre os obstáculos ao progresso das obras estavam as variações nos preços dos insumos e as “exigências econômicas dos projetos acima das possibilidades reais de financiamento no ano”. Acrescentou que “a execução das obras de diferentes trechos foi afetada porque os compromissos contratuais com vários empreiteiros não foram honrados”.

Durante uma reunião da Comissão Mista Binacional de Alto Nível na Venezuela em junho de 2014, Gan Baixian, o então presidente da China Railway International Group (CRIG), braço do Crec responsável por projetos no exterior, pediu “uma solução rápida para as dificuldades financeiras” do projeto ferroviário Tinaco-Anaco.

Relatório do Ministério dos Transportes
O Ministério dos Transportes advertiu no relatório de 2014 que “a execução das obras de diferentes trechos foi afetada porque os compromissos contratuais com vários empreiteiros não foram honrados”

E parou por aí. Entre 2011 e 2014, o projeto foi paralisado e reativado de forma intermitente. Em 2012, Francisco Solórzano, à época prefeito de Anaco, município localizado na província de Anzoátegui, anunciou que a construção da ferrovia em sua cidade seria retomada em 2013, com conclusão prevista para 2016. Ele confessou de passagem que a obra “tem estado em um ritmo lento”.

No entanto, a retomada do projeto nunca aconteceu. Quando consultado para esta reportagem, Antonio Barreto Sira, líder da oposição e governador da província de Anzoátegui desde 2017, disse que o governo central não havia discutido a possível reativação da obra, nem investigado como os recursos foram perdidos. 

Cinco anos após a paralisação definitiva, a obra está abandonada e alguns trechos estão sendo desmontados, segundo o ex-deputado da Assembleia Nacional Carlos Andrés Michelangeli, que percorreu o interior da província de Anzoátegui em janeiro de 2021. “O campo localizado em Anaco está abandonado, deteriorado e destruído pelo vandalismo”, disse ele.

Mídia local noticia o saque que ocorreu no acampamento em Tinaco
Las Noticias de Cojedes, uma mídia local, noticiou o saque do acampamento localizado em Tinaco em 2016

Rafael Aponte, membro regional do partido da oposição Avanzada Progresista na província de Cojedes, disse que os acampamentos nas aldeias de El Pao e Tinaco foram abandonados há pelo menos cinco anos e que “mesmo os ladrilhos de chão foram tirados de lá, não sobrou nada”.

Ambos os políticos concordam que a decadência se acelerou no início de 2015, quando os diretores chineses do projeto saíram do país à francesa.

Ao refletir sobre o fracasso da ferrovia, alguns comentaristas chineses argumentaram que a natureza abertamente política do envolvimento com a Venezuela impedia qualquer decisão comercial sensata, e que o país não possuía os critérios necessários para empreender um projeto de trens de alta velocidade. 

Escrevendo no livro Building Development for a New Era on Chinese infrastructure in Latin America (sem tradução em português), Haibin Niu, um pesquisador do Centro de Políticas do Brics, argumentou: “A experiência da China com trens de alta velocidade indica que as rotas mais viáveis são aquelas que ligam as áreas metropolitanas e têm um fornecimento estável de eletricidade. Essas condições não existiam na Venezuela”.

A natureza abertamente política do envolvimento com a Venezuela impedia qualquer decisão comercial sensata

Pelo menos, escreveu Niu, uma lição saiu de tudo isso: “o caso ferroviário na Venezuela ensinou às empresas chinesas que a melhor maneira de conseguir investimentos bem-sucedidos no exterior é passar por um processo comercial tradicional e seguir o bom senso financeiro”.

Uma série de problemas, como violação de direitos trabalhistas, barreiras linguísticas e impactos ambientais foram relatados em um documento apresentado pela IFE
Conflitos trabalhistas, danos ecológicos e barreiras linguísticas são algumas das questões levantadas em um relatório interno apresentado pela IFE

Uma Babel inoperante

Outro problema revelado pelo fracasso da Estrada de Ferro Tinaco-Anaco foi a pouca atenção que a Crec dedicou a violações de leis trabalhistas e aos impactos ambientais de suas obras.

Um relatório interno apresentado em 4 de agosto de 2010 por Franklin Pérez Colina, presidente do Instituto Ferroviário, ao então ministro do Poder Popular para Transportes e Comunicações, Francisco Garcés, delineou estas questões. Nele, Pérez Colina explicou que existiam problemas “na construção do sistema ferroviário do eixo Emiliano Arévalo Cedeño das planícies do norte, seção Tinaco-Anaco”.

Pérez Colina apontou que a Crec não aderiu aos regulamentos de construção venezuelanos e se recusou a contratar empresas venezuelanas, o que teria permitido que os projetos fossem executados de forma mais rápida. Aqueles que foram subcontratados pela empresa chinesa, analisa o relatório, não tinham o equipamento necessário para realizar o trabalho adequadamente.

O acordo entre Crec e IFE permitiu a contratação de funcionários chineses para as obras, prática que se tornou comum na maioria dos projetos binacionais. Muitas vezes as cláusulas contratuais dos projetos de cooperação sino-venezuelanos estipulavam explicitamente a suspensão das leis trabalhistas venezuelanas. Isto também permitiu que os empreiteiros empregassem e remunerassem os trabalhadores de acordo com os costumes e a legislação chinesa.

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Mas este privilégio, conforme avalia o relatório de Pérez Colina, não deu os frutos esperados. A comunicação não fluiu bem. Não havia tradutores técnicos para facilitar a compreensão em reuniões para discutir projetos específicos, nem mesmo com os trabalhadores no campo. Falava-se com os engenheiros em mandarim e “os planos, por exemplo, eram apresentados pela Crec aos funcionários venezuelanos também em mandarim”.

“Houve um aumento de reclamações violentas, agressivas e fora de ordem por parte de funcionários chineses em relação aos funcionários venezuelanos. Isto acontece devido à recusa de ter um tradutor no campo para facilitar a comunicação entre as duas partes”, afirma o relatório.

Além disso, proliferaram as reclamações de não cumprimento de contratos e normas. Em diversas ocasiões, os trabalhadores entraram em greve para exigir o cumprimento de obrigações trabalhistas e melhorias salariais.

De acordo com o mesmo relatório, os funcionários chineses responsáveis por diferentes trechos minimizaram a importância das recomendações para o cumprimento dos benefícios contratuais. “Os salários dos trabalhadores (operários e empregados, tanto administrativos quanto profissionais) nos diferentes trechos são diferentes porque não batem ponto por falta de um tabulador. Os trabalhadores são pagos de acordo com os critérios do chefe do local da construção (…) A subcontratação de empresas é dividida e eles não reconhecem a variação de preços na mão-de-obra, ignorando o decreto presidencial de reajuste salarial de 1º de maio”, advertiu Pérez Colina.

trabalhadores no canteiro de obras do trem tinaco-anaco
Uma série de reclamações por violações trabalhistas proliferaram durante as obras (imagem: CRECV)

Por sua vez, os sindicatos denunciaram reiteradamente a empresa por violar as leis trabalhistas, especialmente quanto à duração da jornada de trabalho e horas extras. “A China Railway Engineering Corporation (Crec) violou quase 70% dos benefícios contratuais, e não descontou serviço clínico, farmácia, tempo de viagem, bônus de fim de semana e ajustes de bônus de alimentação”, disseram os trabalhadores à mídia local em agosto de 2014.

Eles também reclamaram que em várias ocasiões se sentaram para conversar com representantes do empreiteiro chinês, que afirmaram não poder oferecer esses benefícios porque só tinham que pagá-los por semana de trabalho e nada mais.

“Esta empresa está violando o acordo de negociação coletiva e a Lei Orgânica do Trabalho. Estamos cansados dessa constante violação dos direitos dos trabalhadores. Se eles não os cumprirem, as obras vão parar e ficarão mais atrasadas ainda”, defenderam líderes sindicais que representam 200 trabalhadores do trecho em construção entre Aragua de Barcelona e Anaco.

Poluição correndo solta

Uma parte do relatório endereçado ao presidente do Instituto de Ferrovias listou as irregularidades ambientais cometidas pela Crec.

Sin permisos ambientales por ArmandoInfo disponível no Scribd

Uma investigação da Divisão Ambiental do Estado determinou que as empresas subcontratadas pela Crec não possuíam o Registro de Atividades Suscetíveis a Degradação Ambiental.

No acampamento instalado em Tinaco, província de Cojedes, o documento aponta que “o leito do rio Pao foi impactado pela obstrução de material vegetal, em violação ao Decreto 2220 da Lei Ambiental, que dita as regras de regulamentação das atividades capazes de causar mudanças de fluxo, obstrução do leito do rio e problemas de sedimentação”. O relatório explica que “a má gestão dos resíduos perigosos gerados no canteiro de obras” levou a um derramamento de combustível, “causando a contaminação do solo sem que as medidas corretivas necessárias tivessem sido aplicadas”.

Após uma investigação em 2010, a Divisão Ambiental do Estado constatou que as empresas subcontratadas pela Crec não possuíam o Registro de Atividades Suscetíveis a Degradação Ambiental, um requisito indispensável para qualquer empresa responsável pela geração, manuseio e transporte de materiais perigosos na Venezuela. Parte do acordo estabelecido com a empresa estatal para mitigar o impacto foi a contratação de outra empresa para lidar com o ocorrido. Contudo, na época do relatório do Instituto Ferroviário, o compromisso não havia sido cumprido ainda.

O rio Tiznado, na província de Guárico, também foi afetado em decorrência da instalação de uma fábrica de concreto pré-fabricado a apenas 135 metros da costa. De lá, agregados de concreto eram despejados, material que afetou a barragem do rio Verde. As empresas subcontratadas também desmataram diversas áreas sem proceder com os inventários necessários, e sem a devida autorização do Ministério do Meio Ambiente. Essas empresas derrubaram espécies valiosas como carvalho, araguaney (árvore nacional da Venezuela), cedro e acapro, do gênero Tabebuia, nativo dos trópicos e subtrópicos das Américas.

A não conformidade da ferrovia Tinaco-Anaco e as diversas reclamações de violações de leis trabalhistas e ambientais não impediram o governo venezuelano de contratar novamente uma empresa filiada à Crec

Este não é o único projeto latino-americano no qual o braço de design e planejamento de projetos da Crec deixa questionamentos sobre riscos ambientais. Uma subsidiária, China Railway Eryuan Engineering Group (Creec), considerou viável construir uma ferrovia interoceânica entre o Peru e o Brasil atravessando ecossistemas amazônicos sensíveis e uma reserva indígena por causa de facilidades topográficas.

Um de seus engenheiros disse a uma audiência do Senado brasileiro: “eles dizem que a geologia pode ser um obstáculo. Mas a geologia é ainda mais complexa na China, o que tornou a tecnologia de construção ferroviária chinesa mais refinada”.

A não conformidade da ferrovia Tinaco-Anaco e as diversas reclamações de violações de leis trabalhistas e ambientais não impediram o governo venezuelano de contratar novamente uma empresa filiada à Crec. Em 2018, a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez, assinou novos acordos na China como parte do chamado Plano de Recuperação, Crescimento e Prosperidade Econômica.

Entre eles, há um contrato com a China Railway N° 10 Engineering Group Co Ltd, outra subsidiária da Crec, para impulsionar a produção de ferro e ouro na Venezuela. Rodríguez foi recebida em Beijing pelo embaixador chinês na Venezuela, Li Baurong, e realizou reuniões com o ministro He Lifeng, presidente da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC), o principal órgão de planejamento da China. Eles se comprometeram a “consolidar e expandir a cooperação entre nossos países”, disse Rodríguez em um tweet em 10 de setembro de 2018.

planícies da província de Guárico
Após anos de abandono, os túneis construídos para a ferrovia Tinaco-Anaco mal podem ser vistos em El Sombrero, nas planícies da província de Guárico (imagem: Arquivo / Armando.info)

Quatro dias depois, o presidente venezuelano Nicolás Maduro viajou à China para participar do encerramento da XVI Reunião da Comissão Mista de Alto Nível China-Venezuela (CMAN), ocasião em que foram assinados 28 novos acordos nas áreas de energia, mineração, agricultura, indústria, ciência e tecnologia.

Não está claro se este novo contrato inclui alguma referência ao que foi abandonado, ou por que, depois de milhões de dólares investidos, apenas 41 quilômetros de trilhos foram colocados.

Quando tudo começou, em março de 2009, o então embaixador chinês em Caracas, Zhang Tuo, disse a Chavéz em Guárico que queria “agradecer, profundamente, ao governo venezuelano, ao presidente e também ao ministro da Infraestrutura, pela confiança depositada em nossa empresa Crec, porque posso assegurar-lhes que vocês tomaram a decisão certa”. 

Com o passar do tempo, ficou claro que ele estava muito errado.

*Esta investigação é baseada em um conjunto de documentos obtidos por Armando.info (Venezuela), que foram processados e analisados em parceria com o Centro Latino-americano de Jornalismo Investigativo (CLIP) com colaboração do Diálogo Chino.