Alimentos

Incertezas pairam sobre principal hidrovia para comércio global de alimentos na Argentina

Governo atrasa decisões sobre a futura gestão de parte da hidrovia Paraná-Paraguai, trecho por onde passa a maior parte de suas exportações agroindustriais
<p>Cargueiros carregam em San Nicolás de los Arroyos, importante parada da hidrovia Paraná-Paraguai (imagem: Alamy)</p>

Cargueiros carregam em San Nicolás de los Arroyos, importante parada da hidrovia Paraná-Paraguai (imagem: Alamy)

A Argentina, um dos principais produtores mundiais de alimentos, ainda não definiu quem ficará com a gestão do seu trecho da hidrovia Paraná-Paraguai, rota por onde passa a maior parte de suas exportações.

Atualmente, discute-se como os serviços de dragagem, sinalização e manutenção da hidrovia serão realizados após a expiração, em 2021, do contrato com sua concessionária Hidrovía SA, um consórcio entre a empresa argentina Emepa e a belga Jan de Nul.

A administração deve ficar nas mãos do Estado ou passar por uma nova licitação. Há expectativas que grandes empresas internacionais participem caso ela seja licitada. O resultado será crucial, já que trará uma definição sobre a execução de obras que devem reduzir o tempo de navegação e os custos logísticos. Ao mesmo tempo, poderá incorporar preocupações de ambientalistas sobre a hidrovia.

Importância da hidrovia

A hidrovia Paraná-Paraguai é uma rota fluvial formada pelos rios Paraguai, Paraná e Prata. Ela cobre uma imensa bacia desde o planalto boliviano e o estado brasileiro do Mato Grosso, atravessando o Paraguai, norte da Argentina até desembocar no Oceano Atlântico. A hidrovia se estende por mais de 3.400 quilômetros e atravessa a maior área de produção agroindustrial do Mercosul.

mapa da hidrovia paraná-paraguai

A hidrovia tem uma história curta como sistema de navegação que integra serviços de transporte e logística. Embora remonte a 1969, quando foi assinado um primeiro tratado entre Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai, a hidrovia ganhou relevância somente nos anos 1990.

A gestão da hidrovia na Argentina passou por uma mudança substancial em 1995, quando foi concedida a permissão para a dragagem e criação de um sistema de sinalização ao longo da rota, o que aumentou a profundidade dos rios. Isso permitiu a entrada de embarcações maiores e levou a um desenvolvimento portuário sem precedentes.

Esse foi um divisor de águas para o desenvolvimento agroindustrial da Argentina, a ponto de as exportações de grãos, óleos e produtos relacionados triplicarem em pouco mais de duas décadas — de 29 milhões de toneladas em 1995 para cem milhões de toneladas em 2021

Passado, presente e futuro

Segundo Juan Carlos Venesia, diretor do Instituto de Desenvolvimento Regional, com sede em Rosário, as decisões tomadas em meados dos anos 1990 “permitiram que a Argentina se tornasse, dentro do Mercosul, o país com o maior crescimento da indústria de sementes oleaginosas nos últimos 20 anos”.

Entretanto, a expiração da concessão em 2021 diminuiu as expectativas, especialmente no setor privado, de contínua expansão da infraestrutura que facilitou o aumento da produtividade. “São necessárias profundidades maiores, mais áreas de cruzamento, mais áreas de acostamentos e melhor tecnologia. A hidrovia precisa de melhorias”, disse Alfredo Sesé, membro da comissão de transportes da Bolsa de Valores de Rosário (BCR).

Segundo dados da BCR acessados pelo Diálogo Chino, os navios que atualmente operam na hidrovia podem transportar entre 46 mil e 48 mil toneladas de mercadorias. Caso as reformas planejadas sejam de fato executadas, a hidrovia teria condições de receber navios maiores que podem transportar entre 65 mil e 70 mil toneladas.

A hidrovia permitiu que a Argentina se tornasse, dentro do Mercosul, o país com o maior crescimento da indústria de oleaginosas nos últimos 20 anos

Gustavo Idigoras, presidente da Câmara da Indústria do Petróleo da República Argentina e do Centro de Exportação de Cereais (Ciara-cec), disse que o aprofundamento da hidrovia por meio da dragagem “permitiria a entrada de navios de maior calado, o que reduziria os custos e implicaria em dar acesso ao mar aos produtores das regiões argentinas que hoje não têm acesso a ele por razões econômicas”.

O governo argentino compartilha a visão do setor privado, com o ministro dos Transportes, Alexis Guerrera, dizendo recentemente que o Estado é “obrigado a atualizar [a hidrovia]”. Mas tem demonstrado dificuldades na implementação desses planos.

Em agosto de 2021, foi criada a Entidade Nacional de Controle e Gestão da Hidrovia Paraná-Paraguai, como o órgão responsável pela supervisão do edital para essa nova fase da via. Recentemente, o chefe da agência anunciou publicamente que poderia haver uma minuta do edital antes do final do ano, mas há dúvidas. “Haverá possivelmente algum tipo de mudança no cronograma”, disse Idígoras, do Ciara-cec.

Vista aérea de dois navios de carga
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Até que haja novos desenvolvimentos, a gestão da hidrovia permanece nas mãos da Administração Geral de Portos (AGP), órgão público que, sem capacidade própria, subcontrata serviços de dragagem e sinalização.

A AGP tentou, no início deste ano, abrir a licitação para a dragagem, mas cancelou o processo diante das críticas de um dos proponentes, que levou o caso à Justiça. A reclamação foi feita pela Unión Transitoria (UT), consórcio formado pela empresa belga Dredging International, a argentina Servimagnus e a Shanghai Dredging Corporation — uma subsidiária da estatal China Communications Construction Company. A proposta do grupo havia sido rejeitada ainda na fase de avaliação técnica.

O Diálogo Chino cobriu a participação chinesa na hidrovia em 2020, quando a concessão estava prestes a expirar. Espera-se que tal interesse permaneça forte quando a licitação para a futura gestão da hidrovia for finalmente lançada. Um número limitado de atores com forte presença em águas internacionais, principalmente de países europeus (Bélgica, Holanda e Dinamarca), têm interesse.

Alerta de ambientalistas

Sempre que o assunto era discutido publicamente, ambientalistas pediam uma avaliação do impacto das mudanças trazidas pelas hidrovia desde 1995 e exigiam que sua perspectiva fosse incorporada à nova etapa.

A rede global Wetlands International descreveu o fim do contrato com a Hidrovía SA como “uma oportunidade” para avaliar os impactos socioambientais e propôs uma avaliação estratégica para analisar os impactos do projeto nas zonas úmidas do rio Paraná, entendidas como “uma das últimas da América do Sul”.

ave em um pântano em Corrientes, Argentina
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As organizações ambientais locais Cauce e Taller Ecologista disseram ao governo que os estudos de impacto realizados nos anos 1990 tiveram “um forte viés econômico, ignorando em grande parte os impactos socioambientais e os custos de mitigação associados ao projeto”.

Os relatórios apresentados pelas organizações ambientais ao Conselho Federal da Hidrovia mostram os impactos diretos e indiretos da atividade sobre a hidrovia. Desde a potencial alteração das características hidrológicas da bacia até a expansão da fronteira agrícola, as organizações não hesitam em afirmar que “a entrada e o maior número de embarcações que navegam no rio prejudicam imensamente a biodiversidade”.

As empresas envolvidas na hidrovia rejeitam as denúncias e afirmam que os efeitos ambientais “não são significativos”, nas palavras de Alfredo Sesé, da BCR.

Por sua vez, por meio do Ministério dos Transportes, o Estado argentino assinou uma série de acordos com universidades nacionais para realizar relatórios, auditorias e pareceres técnicos adicionais para o controle e a prevenção de impactos ambientais na gestão da hidrovia. Esses acordos parecem incorporar algumas das demandas das organizações da sociedade civil, que exigem maior participação dos cidadãos e uma abordagem mais interdisciplinar dos estudos de viabilidade.

Um porta-voz do Ministério do Meio Ambiente da província de Santa Fé disse ao Diálogo Chino que “será obrigatório que as obras previstas sob a nova concessão tenham estudos de impacto ambiental” e que terão critérios e normas comuns em diferentes jurisdições. Dada a proximidade e interação com várias zonas úmidas, diz-se ser “fundamental” que as obras sejam desenvolvidas por meio de “processos sustentáveis, levando em conta o contexto da variabilidade antrópica e das mudanças climáticas”.

As questões levantadas em torno de preocupações ambientais pendem, em parte, no mesmo limbo que as levantadas pelo setor empresarial: até que os documentos da licitação sejam publicados e os detalhes do funcionamento futuro da hidrovia sejam conhecidos, a incerteza permanecerá.