Água

Rejeitada revogação da concessão do Canal da Nicarágua

Em medida controversa, Assembleia Nacional rejeita proposta popular

O plano do empresário Wang Jing, de abrir um canal de 278 quilômetros de extensão atravessando a Nicarágua, pode estar em apuros devido à falta de dinheiro. Ainda assim, a lei que ratifica a outorga da concessão de 50 anos (com possibilidade de renovação) e permite a desapropriação de terras para implantação do projeto parece estar gravada em pedra. Nesta semana, a secretaria parlamentar da Nicarágua rejeitou uma iniciativa popular a favor da revogação da lei 840, que outorga a Wang o direito exclusivo de construir e operar o canal. O motivo alegado foi a falta de “competência” para tratar da proposta. De acordo com Alba Palacios, primeira-secretária da legislatura e deputada do partido governante Frente Sandinista de Libertação Nacional, a Assembleia Nacional não poderia revogar a lei 840 porque a Suprema Corte declarou sua “constitucionalidade” em 2013. No entanto, isto é contestado por representantes do Conselho Nacional de Defesa da Terra, do Lago da Nicarágua e da Soberania Nacional, a organização por trás da nova iniciativa legal. Segundo o conselho, a proposta foi encaminhada de acordo com os devidos processos e, conforme o artigo 138 da Constituição da Nicarágua. É função da Assembleia Nacional “desenvolver e aprovar leis e decretos, além de reformar e revogar aqueles já existentes”. “É absurdo alegar a existência desta determinação da Suprema Corte, pois isso indica que nenhuma lei poderia ser reformada se tivesse sua constitucionalidade declarada”, disse Mónica López Baltodano, advogada que está representando a iniciativa. Baltodano acrescentou que recebeu a notificação da rejeição na segunda-feira, dia 11 de abril, entregue por um representante legal do gabinete da primeira-secretária. No entanto, a carta assinada por Palacios tinha data de 08 de abril. De acordo com a legislação nicaraguense, o primeiro-secretário tem 24 horas para responder a novas iniciativas legais e rejeitá-las ou solicitar correções. Baltodano recusou-se a aceitar o documento e disse que vão continuar com a campanha que está totalmente dentro da lei. “Nossa iniciativa atendeu a 100% dos requisitos”, disse a advogada ao Diálogo Chino; “o que eles estão fazendo é completamente ilegal”. Disputas territoriais De acordo com os grupos indígenas que habitam os territórios ancestrais localizados ao longo do percurso proposto do canal, a empresa de Wang, a HKND, deixou de consultá-los adequadamente sobre os impactos do projeto. A obra envolveria a desapropriação de cerca de 2.900 km2 de terras, sendo 1.721 km2 de forma permanente. De acordo com Baltodano, isto constitui uma violação da Constituição nicaraguense. O governo rebate que os artigos da lei 840 foram aprovados pelo Congresso Nacional e, portanto, as desapropriações estão permitidas. Em novembro do ano passado, a Comissão de Desenvolvimento do Grande Canal da Nicarágua aprovou a avaliação de impacto socioambiental do projeto, que foi alvo de críticas e atrasos. De acordo com o estudo, elaborado pela consultoria britânica Environmental Resources Management, os “impactos adversos fortes e inevitáveis” incluiriam o “desalojamento físico e econômico de cerca de 30.000 pessoas” e o deslocamento do último povoado dos índios Rama. Mas o governo da Nicarágua já negligenciava o cumprimento das leis de proteção aos direitos territoriais indígenas muito antes de conceder o canal a Wang, de acordo com Lottie Cunningham, advogada defensora dos índios Miskito. De acordo com Cunningham, ao deixar de aplicar integralmente uma decisão histórica da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIADH), reconhecendo os direitos territoriais dos povos indígenas do país, o governo nicaraguense tem permitido o agravamento de violentas disputas territoriais. A advogada afirma que 24 pessoas foram mortas e mais de 50 foram gravemente feridas por colonos na Região Autônoma da Costa do Caribe (RAAN) desde 2014. Os colonos também praticam atividades ilegais de extração de madeira e mineração, diz Cunningham. Os Miskito estão entre os 25 grupos indígenas e afrodescendentes para os quais a RAAN é considerada território ancestral indígena. O precedente aberto pela CIADH delineou as cinco etapas que a Nicarágua deverá seguir para devolver terras aos grupos indígenas do país. A decisão da corte foi implementada por meio da aprovação da lei nacional 445, aplicável tanto à RAAN quanto à Área Autônoma da Costa Sul do Caribe, onde estão localizados os Rama. No entanto, a quinta e última etapa do processo estipulado pela CIADH prevê a remoção, ou “saneamento”, dos colonos recém-chegados à área. Após uma audiência em outubro do ano passado, a CIADH pediu recentemente ao governo nicaraguense que aumentasse os esforços de proteção aos Miskito, reiterando o direito da comunidade sobre o seu território ancestral, sem sofrer interferências violentas por parte de pessoas levadas ao local pelas concessões de obras públicas. Em resposta à CIADH, o governo da Nicarágua publicou uma declaração ratificando o estabelecimento das regiões autônomas da costa do Caribe, bem como o artigo 5º da Constituição, referente ao direito dos povos indígenas de “manter suas formas comunais de propriedade da terra”. O governo também afirmou que continua trabalhando para restituir os direitos dos povos indígenas e seus direitos comunais de propriedade, e que já concedeu a eles as escrituras de mais de 31.500 metros quadrados de terras.