Energia

Será que a energia solar pode tirar a Venezuela da crise elétrica?

Enquanto milhões de venezuelanos convivem com apagões diários, esforços privados miram na fonte limpa
<p>Mulher cozinha à luz de velas em Caracas, na Venezuela, durante apagão em 2020 (Imagem: Jose Isaac Bula Urrutia / Alamy)</p>

Mulher cozinha à luz de velas em Caracas, na Venezuela, durante apagão em 2020 (Imagem: Jose Isaac Bula Urrutia / Alamy)

Há mais de uma década, os moradores do estado de Zulia, no litoral norte da Venezuela, só têm tido eletricidade por metade do dia. Os alimentos apodrecem e os eletrodomésticos queimam pela imprevisibilidade do fornecimento de energia. Em 2022, o estado teve mais de 37 mil apagões – a pior marca no país, de acordo com o Comitê para os Atingidos por Apagões, organização que monitora as interrupções no abastecimento elétrico em todo o país.

Mesmo na capital, Caracas, onde a eletricidade é mais estável, as luzes simplesmente se apagam sem aviso prévio. Há dias em que as pessoas passam até sete horas sem conseguir usar a geladeira ou carregar os celulares. Em 2022, o país teve mais de 233 mil quedas de energia, 22% a mais do que no ano anterior.

O economista Juan Cristóbal Nagel argumenta que “há duas razões principais para a crise: consumo excessivo de eletricidade e produção insuficiente”. Na raiz de ambos problemas, diz Cristóbal, está a má governança: “populismo, mau planejamento, ideologia irredutível e corrupção avassaladora”.

Aixa López, presidente do Comitê para as Pessoas Atingidas por Apagões e ex-vereadora da capital, acrescenta que os reparos e melhorias do sistema elétrico são urgentes, porque os problemas se agravam a cada ano.

Além dos apagões, os venezuelanos enfrentam aumentos nas tarifas de eletricidade, causados pela redução do subsídio estatal, o que ocorreu ano passado pela primeira vez desde os anos 1970.

Em meio à crise, o governo de Nicolás Maduro tenta aproveitar o potencial de geração de energia solar para cobrir parte da demanda do país. Mas essa transição energética precisa superar inúmeros obstáculos.

Pessoas em supermercado em Maracaibo
Pessoas em supermercado em Maracaibo esperam luz voltar após apagão (Imagem: Jose Isaac Bula Urrutia / Alamy)

A energia mais barata

O ano de 1976 é fundamental para se compreender os desafios energéticos da Venezuela. Naquele ano, a indústria petrolífera foi estatizada. A gasolina, o gás e a eletricidade começaram a ser altamente subsidiados – política mantida pelos governos seguintes. Até o segundo semestre de 2021, os venezuelanos pagavam apenas US$ 0,002 por quilowatt-hora de energia, a tarifa mais baixa do mundo.

Recentemente, porém, as coisas mudaram. A queda global nos preços do petróleo e a crise interna da estatal Petróleos de Venezuela levaram a uma baixa na produção. A Venezuela produz atualmente cerca de 685 mil barris por dia, apenas 20% do que produzia no final dos anos 1990. Como resultado, a receita estatal caiu drasticamente, obrigando o governo a aumentar as tarifas em 86 vezes para US$ 0,173 por quilowatt-hora em junho de 2022, de acordo com dados compilados pela Global Petrol Prices. Isso excede a média global (US$ 0,161) e está próximo do que é pago em Israel (US$ 0,171) ou nos Estados Unidos (US$0,175). Mas a alta das tarifas não garantiu um aumento na geração elétrica para solucionar os apagões.

Painéis solares na parte externa de um shopping em Maracaibo, Venezuela
Shopping construído com sistema de geração de energia solar em Maracaibo. A capital do estado de Zulia foi uma das mais afetadas por apagões em 2022 (Imagem: Alamy)

Solução solar?

No início do ano, o Ministério de Energia Elétrica da Venezuela anunciou um novo plano para gerar dois mil megawatts (MW) por meio da energia solar, instalação que ficaria pronta em três anos. De acordo com um vídeo do Ministério publicado no Instagram, o projeto começaria com 500 MW nos estados de Zulia, Falcón e Lara, seguido por outras duas fases nos estados do centro e oeste do país. Porém, não foram divulgados valores, nem por quem isso seria financiado.

Os painéis solares devem suprir 8% do consumo atual do país, considerando que a capacidade instalada é de aproximadamente 24 mil MW, de acordo com a Corporação Elétrica Nacional (Corpoelec).

A Venezuela tem um enorme potencial de geração de energia solar – a média diária hipotética de 5,35 quilowatts-hora por metro quadrado é uma das maiores da América do Sul, de acordo com dados do Global Solar Atlas.

“A energia solar tem o maior potencial para abastecer o país, e gerar eletricidade a partir do sol é mais barato do que com qualquer outra fonte de energia”, diz o engenheiro Federico Fernández Dupouy, diretor da Otepi Renovables, consultoria focada em energia solar. “O problema é o investimento necessário”.

Minicarro elétrico estacionado nas ruas de Maracaibo
Minicarro elétrico estacionado nas ruas de Maracaibo. A Venezuela tem um dos maiores potenciais de energia solar da América do Sul (Imagem: Alamy)

Sem marco legal

Os planos para desenvolver a energia solar da Venezuela são parte de uma estratégia maior, que também inclui o projeto da Lei Orgânica de Energias Renováveis Não Convencionais, divulgado em julho de 2021, mas que ainda tramita na Assembleia Nacional.

“O país começou a avançar na instalação de novas fontes de energia e a nova lei vai potencializar essas atividades”, disse o deputado Ángel Rodríguez em uma recente sessão da Comissão de Energia e Petróleo, que defende o projeto de lei.

Uma consulta pública para contribuir com o novo texto foi encerrada no fim de 2022. Um dos cidadãos que participou foi Luis Ramírez, professor da Universidade Católica Andrés Bello (Ucab) e doutor em energias renováveis.

“A lei propõe a criação de um centro de pesquisa para montar ou desenvolver painéis solares e turbinas eólicas no país”, diz Ramírez, em entrevista ao Diálogo Chino. “Ela também estabelece que a saúde e a educação sejam setores prioritários para a transição energética. Mas uma das variáveis que não foi explicada na lei é a dos incentivos econômicos”.

Ramírez acrescenta que esses dispositivos são fundamentais para atrair o capital estrangeiro e impulsionar a transição energética, bem como incentivar a inovação no setor privado venezuelano.De acordo com a Corpoelec, mais de um terço da eletricidade do país (35%) é produzida por geradores termelétricos a diesel.

A maioria das empresas privadas – desde shoppings e supermercados até fábricas – atualmente depende desses geradores. Apontadas pelo ex-presidente Hugo Chávez (1999-2013) como causadoras da crise energética, as companhias foram obrigadas por lei a comprar geradores em 2009, quando os apagões e as instabilidades no fornecimento de eletricidade da Venezuela começaram a ficar mais recorrentes.

mulher lava pratos durante apagão na Venezuela
Leia mais: Investimento chinês na rede elétrica não consegue evitar apagões na Venezuela

Não há informações oficiais sobre a quantidade de eletricidade gerada a partir de fontes limpas. Embora existam os parques eólicos de La Guajira, em Zulia, e Paraguaná, em Falcón, o governo não fornece dados sobre seu funcionamento ou o quanto eles contribuem para o abastecimento de energia venezuelano.

Ambos os projetos, construídos durante o segundo mandato de Chávez, foram os primeiros passos da Venezuela para se afastar dos combustíveis fósseis – movimento que tem se caracterizado por anúncios não cumpridos e projetos deixados pela metade. Um parque solar e eólico financiado pela China no arquipélago de Los Roques, norte da Venezuela, segue inacabado.

A falta de um marco legal para a transição energética, a predominância das usinas termelétricas e a falta de transparência colocam a Venezuela em 111º lugar entre 115 países no Índice de Transição Energética, publicado pelo Fórum Econômico Mundial em 2021.

Oportunidade para as empresas

Fernández Dupouy, da Otepi Renovables, percebe uma maior procura por sua consultoria em meio à difícil situação energética do país: “As empresas privadas começaram a perguntar sobre alternativas de energia limpa”.

Dupouy diz ainda que os apagões trazem enormes prejuízos para as companhias: “As máquinas deixam de funcionar e a produção é perdida. As centrais termelétricas também não são a melhor opção devido à escassez de diesel”.

Grandes indústrias das cidades de Maracay e Valência, localizadas, respectivamente, a 120 e 170 quilômetros de Caracas, estão entre as que vêm pedindo ajuda à Otepi Renovables para adotar a energia solar como segunda fonte de eletricidade. A lista de interessados nos serviços da empresa também inclui redes de supermercados e farmácias. Até agora, no entanto, as consultorias não viraram projetos concretos.

Painéis solares no teto de um prédio
Painéis solares produzem energia para a Ucab. Mas a geração é suficiente apenas para acender luzes e carregar computadores e projetores de vídeo em duas salas de aula da universidade (Imagem: Ucab)

Uma das poucas iniciativas privadas de energia solar em andamento é a da Ucab, que no fim de 2019 criou um sistema de energia limpa em seu campus em Caracas. A universidade instalou 30 painéis solares, um gerador eólico e um telhado arborizado. Duas salas de aula agora são abastecidas por energia limpa, e a temperatura média interna foi reduzida no período mais quente do dia, quando as temperaturas costumavam ultrapassar os 30 ºC.

Cada painel solar na Ucab capta 180 watts de energia, o que representa uma capacidade total de 5.400 watts. Joaquín Benítez, diretor de sustentabilidade na Ucab, diz que isso é suficiente para acender luzes e carregar computadores e projetores de vídeo em duas salas de aula da pós-graduação. O novo sistema também fará a irrigação automatizada do telhado arborizado.

O projeto de energia solar da Ucab pode ser o início de uma tendência no setor privado venezuelano – impulsionada pelas limitações do governo de modernizar a matriz energética do país.

“A população sabe que o sistema precisa de grandes investimentos e que as tarifas vão continuar aumentando, especialmente nos setores industrial e comercial”, diz Rafael Torrealba, vice-presidente da Câmara Venezuelana de Construção Civil.

A transição rumo à energia limpa na Venezuela, diz Torrealba, está apenas começando.