Energia

Moradores de maior reserva de gás da Argentina não têm luz e água quente

Uma década após o início da operação nas reservas de Vaca Muerta, cidade ainda espera por promessas de um futuro melhor
<p>Hydrocarbon extraction at Añelo, Neuquén province, Argentina, which sits on the vast Vaca Muerta shale oil and gas fields (Image: Diego Canut)</p>

Hydrocarbon extraction at Añelo, Neuquén province, Argentina, which sits on the vast Vaca Muerta shale oil and gas fields (Image: Diego Canut)

Añelo é uma cidade de contrastes. Na parte baixa de seu vale, há solos férteis que tomam as margens do rio Neuquén. Enquanto isso, no planalto, o solo se transforma em um deserto argiloso. A primeira área representa a Añelo rural do passado; a segunda, a produtora de petróleo, onde estão as vastas reservas de Vaca Muerta.

Porta de entrada para a Patagônia argentina, na província ocidental de Neuquén, Añelo era uma cidade tranquila de 1,5 mil habitantes, a maioria agricultores e pecuaristas. Mas, desde 2011, quando a extração petrolífera começou em Vaca Muerta, a cidade ficou agitada.

Estendendo-se por Neuquén e pelas províncias de Mendoza, Río Negro e La Pampa, a formação geográfica de Vaca Muerta abriga a segunda maior reserva de gás de xisto do mundo e a quarta maior reserva de petróleo não-convencional — que requer mais energia para sua extração. 

Mas bem do lado dessa riqueza, grande parte da população local ainda usa fogão a lenha ou gás de botijão. A escassez de serviços em uma cidade rica em hidrocarbonetos é uma realidade diária para seus 7,5 mil habitantes.

Em uma estrada de terra que cruza o altiplano, há um fluxo constante de caminhões carregados de petróleo, areia para o fracking (fraturação hidráulica) e outros produtos da indústria. Às margens da pista, está a “nova cidade de Añelo”: uma área começou a ser erguida com a expectativa de receber cerca de 30 mil pessoas desde a descoberta das reservas de petróleo e gás.

Atualmente, há mais de 700 famílias vivendo no local, sem acesso a gás ou esgoto e, em alguns casos, sem eletricidade. A água vem do mesmo aqueduto construído pela estatal petrolífera YPF no rio Neuquén, que serve para o fracking. Mas a rede não chega a todas as residências. 

Na gíria local, quem mora aqui diz morar “em cima”, diferenciando-se de quem mora “em baixo”, na parte mais antiga da cidade.

Um lugar esquecido

Antes da Conquista do Deserto, campanha militar conduzida pelo governo argentino entre 1879 e 1885 para ocupar grandes extensões da Patagônia, Añelo era o lar dos povos indígenas Pehuenche e Ranquel. Em seu idioma nativo, o nome significa “lugar esquecido” ou “pântano da morte”.

“Um dos principais problemas de Añelo é a falta de infraestrutura”, reconhece Milton Morales, prefeito da cidade. “Nossa cidade era muito nova em 2011. Tínhamos apenas 1,5 mil habitantes, e ela não foi projetada para crescer como cresceu”.

De acordo com Morales, após as descobertas em Vaca Muerta, a prefeitura começou a trabalhar em um plano de desenvolvimento para 2030. Porém, as verbas prometidas para acompanhar a chegada de novos moradores não se concretizaram.

“Temos sérias deficiências, especialmente em relação ao [fornecimento] de gás. Isso é muito contraditório em um lugar onde hoje é realizada a maior extração de petróleo e gás do país — e uma das maiores do mundo”, diz.

Flames from gas flaring pipe in the centre of a flat scrubland landscape, orange-red soil and forest in the distance
Em agosto de 2022, Vaca Muerta atingiu um recorde de produção de 91 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e o campo está perto de se tornar um dos maiores produtores do mundo (Imagem: Diego Canut)

O boom do gás de xisto

Em 2013, após a descoberta das reservas de Vaca Muerta, Miguel Galuccio, então presidente da YPF, comemorou: “O boom do xisto já começou”. Três meses depois, em 28 de agosto, a Assembleia de Neuquén aprovou um acordo entre a YPF e a Chevron, gigante americana de petróleo e gás. 

Após o acordo, o bloco Loma Campana, em Añelo, tornou-se o segundo campo de petróleo e gás mais importante do país e a principal formação de hidrocarbonetos não convencionais fora dos EUA e do Canadá. Estima-se que Vaca Muerta tenha recursos de aproximadamente 8,7 trilhões de metros cúbicos de gás e 16,2 bilhões de barris de petróleo.

O governador de Neuquén na época, Jorge Sapag, fechou um acordo com o governo argentino para dar uma indenização de 1 bilhão de pesos (equivalente a US$ 180 milhões na época) como compensação pelos impactos da chegada do setor petrolífero. Esse valor previa a realização de 64 obras públicas, principalmente para a cidade de Añelo, incluindo escolas, hospitais, infraestrutura e moradias. Mas as verbas demoraram para chegar.

“A única coisa que temos do acordo YPF-Chevron é o hospital”, diz Morales. “É a única coisa concluída e colocada em operação. O restante nunca foi implementado”.

Estima-se que três ou quatro famílias cheguem à cidade a cada semana, atraídas pela perspectiva de empregos e melhores salários no setor de hidrocarbonetos. “As pessoas superestimam Vaca Muerta”, diz Morales, questionando o número de pessoas que chegam na esperança de encontrar novas oportunidades.  

Ao mesmo tempo, o setor imobiliário encontrou um terreno fértil em Añelo. Hoje, os principais investimentos em apartamentos, casas e hotéis vêm de investidores privados. Embora haja demanda por moradias, elas muitas vezes são oferecidas por preços inacessíveis para a maioria dos recém-chegados.

Green-yellow grassy field in front of a row of oil drills, Vaca Muerta Argentina
Há quase uma década, foi anunciado um plano de desenvolvimento da cidade de Añelo, com novos centros de saúde, escolas, hotéis e bancos, mas houve pouco avanço desde então (Imagem: Emiliano Ortiz, CC BY-NC)

‘Isso é Vaca Muerta’

Em 2014, as autoridades de Añelo e Neuquén apresentaram um plano diretor de desenvolvimento para 2030, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e criado em conjunto com a YPF e governos provincial e nacional. O plano vislumbrava uma nova cidade em Añelo: 30 mil pessoas viveriam lá, e haveria cinemas, supermercados, centros esportivos, bairros planejados, escolas, hotéis, bancos, dois hospitais e um corpo de bombeiros.  

Faltando sete anos para a conclusão do plano, pouco avançou deste então.

Adela López mora lá, em uma das cem casas construídas pelo governo para atender ao crescimento abrupto da população. Em sua nova casa, há um aquecedor a lenha e um fogão que funciona com gás de botijão.

“Aqui faz muito frio”, diz López. “As casas são atingidas pela chuva, e a água escorre pelas paredes. O último inverno foi duro: choveu, nevou e fez muito frio”.

Algo não está certo… um botijão de gás em Vaca Muerta é mais caro do que em Buenos Aires
Andrés Mena, comerciante em Añelo

Em 2022, foram registradas temperaturas extremamente baixas no inverno em Neuquén, com queda de neve de abril a novembro nas áreas montanhosas da província. Em Añelo, a neve caiu em julho e agosto, e as baixas temperaturas permaneceram até outubro.

Para quem mora lá, a única maneira de enfrentar o frio é usar lenha e botijões de gás. Um pacote normal de lenha dura cerca de 15 dias, e um botijão, até uma semana. Adela diz que, em 2022, a demanda excedeu a quantidade de lenha disponível: “Todos sofremos, inclusive os vizinhos com crianças, porque não havia lenha. O que a prefeitura tinha não era suficiente”.

“Esta é Vaca Muerta”, diz Adela, com um gesto de resignação.

“Estamos no campo de gás mais importante do país e, nesta área, 70% das casas têm fogões a lenha e paredes com umidades”, diz Andrés Mena, comerciante local. “Algo não está certo… um botijão de gás em Vaca Muerta é mais caro do que em Buenos Aires”.

Large trucks facing away drive along a main road to the left, a green road sign to the right shows three places including Anelo, Argentina
Novas famílias chegam às cidades próximas à Vaca Muerta toda semana, atraídas pela perspectiva de empregos no setor de hidrocarbonetos (Imagem: Diego Canut)

Em busca da ‘Dubai argentina’

No mesmo conjunto habitacional onde more Adela, há outras 60 famílias. Em 1º de agosto do ano passado, elas ocuparam as casas que ficaram abandonadas e inacabadas, depois que a empresa responsável foi embora sem concluir as obras. Elas não têm gás, eletricidade, água ou esgoto. Algumas casas também não têm janelas ou banheiros.

“Não vamos embora, porque não temos para onde ir”, diz Jimena, que pagava até US$ 780 por mês de aluguel antes de morar lá. “Há muitas exigências para o aluguel, e precisamos pagá-lo e ainda ter o que comer”. 

A maioria dos moradores é de famílias jovens com filhos pequenos que vieram para Añelo em busca de trabalho e uma nova vida. Diariamente, a eles se juntam pessoas vindas de outras províncias da Argentina — Santa Cruz, Mendoza, San Juan. Outros vêm do Chile e até da Colômbia. 

Uma dessas migrantes é Jimena, que saiu da província de Salta, no norte do país, há seis anos: “Ouvimos que havia trabalho em Vaca Muerta, que era ‘a nova Dubai’, e viemos para cá”. De acordo com Jimena, os empregos existem, mas não há moradia formal.

“Essas casas [que as famílias ocupavam] estão vazias há três anos”, diz Karen, de 26 anos. Ela veio de Mendoza em busca de uma nova vida, e seu companheiro conseguiu um emprego como garçom em um restaurante. A dificuldade de pagar o aluguel foi o que os levou a ocupar um dos prédios abandonados.

Não temos nada. Nem mesmo um hospital. E as estradas são um desastre
Mariela, moradora de Añelo

Karen diz que as empresas e as corretoras “abusam de nós que viemos trabalhar: eles cobram até 100 mil pesos [US$ 410] por um quarto e um banheiro”. O alto custo, ressalta, também se reflete nos preços dos alimentos e água potável.

Há uma lista de carências na cidade, diz Mariela, natural da região. “Não temos nada. Nem mesmo hospital. E as estradas estão um desastre”, reclama. “Sendo Vaca Muerta o lugar de onde vem o gás e o petróleo, deveríamos estar em uma condição melhor”.

Terra de ninguém

Punta de Sierra, a cerca 30 quilômetros de Añelo, é um assentamento onde vivem cerca de 45 famílias. É também onde começa a estrada de acesso da usina de processamento de gás e petróleo bruto de Sierras Blancas. O local pertence à britânica Shell, que opera em mais de cem poços em Vaca Muerta.

Os habitantes descrevem a área como uma “zona cinzenta”, já que historicamente não foi considerada parte dos municípios de Añelo ou da vizinha San Patricio del Chañar. Sem receber impostos, também falta verba para serviços públicos — gás, eletricidade, água potável e coleta de resíduos sólidos. 

Apesar disso, algumas famílias vivem ali há anos. “Moro aqui há 13 anos”, diz Marta Torres, uma das moradoras mais antigas. “Tenho minha casa, mas não tenho nenhum serviço básico, apenas um médico em uma clínica próxima”.

De acordo com ela, o terreno foi abandonado pelo proprietário anterior. O governo da província tomou a terra em 2021 para começar a formalizar a situação das pessoas que viviam lá, mas também exigiu o pagamento de dívidas tributárias.

Já os moradores exigem ao governo que haja acesso à água potável — eles só têm acesso a um poço, que traz água com alta salinidade —, além de eletricidade e gás. 

Para ter acesso a gás — e, portanto, água quente — a população precisa comprar botijões a vários quilômetros de distância.

“É desagradável viver sem gás”, diz Marta. “Além disso, não posso usar o aquecedor de água porque o poço está cheio de pedras e quebra nossos canos. Aquecemos a água para tomar banho, lavar e limpar a casa, e compramos garrafas de água, que são muito caras”.

Marta expressa a mesma angústia de outros moradores que vivem nessa aparente contradição: “Somos pessoas que vivem no topo de Vaca Muerta e falta tudo”. Assim como outros vizinhos, ela se pede que medidas sejam tomadas para ver suas demandas atendidas: “Nós nos sentimos muito desamparados. Vemos como o dinheiro passa e ninguém é capaz de nos fornecer nada, nem o governo, nem as empresas”.

São seis horas da tarde, e a passagem de caminhões e micro-ônibus é incessante no acostamento da estrada. Uma longa fila de veículos volta para a capital de Neuquén, levando os trabalhadores das petrolíferas e do setor serviços de volta para suas casas.

O sol se põe no oeste, sobre o altiplano, e as lâmpadas de gás dos poços iluminam o céu. Em agosto de 2022, Vaca Muerta atingiu um recorde histórico de produção de 91 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e o campo está perto de se tornar um dos maiores produtores do mundo.  

Enquanto isso, nesse solo rico, alguns de seus habitantes esperam que as promessas sejam cumpridas. Eles não se importam mais em ver o nascimento de uma nova Dubai, apenas em tomar banho com água quente e viver minimamente bem.

Esta reportagem foi produzida por pela rede de jornalismo climático Periodistas por el Planeta (PxP) e é republicado aqui sob uma licença Creative Commons.