Clima

Setor petrolífero pode estar subnotificando emissões de metano

Empresas como Shell lideram esforços para reduzir a poluição por metano no setor de combustíveis fósseis, mas analistas não estão convencidos dos dados
<p>Posto de gasolina na província de Santa Cruz, Argentina. O setor de combustíveis fósseis é responsável por mais de um terço das emissões de metano geradas pela ação humana, mas falhas nas medições podem esconder escala ainda maior (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/dThZmo">Damién Roué</a> / <a href="https://flickr.com/people/damienroue/">Flickr</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/">CC BY-NC</a>)</p>

Posto de gasolina na província de Santa Cruz, Argentina. O setor de combustíveis fósseis é responsável por mais de um terço das emissões de metano geradas pela ação humana, mas falhas nas medições podem esconder escala ainda maior (Imagem: Damién Roué / Flickr, CC BY-NC)

Apesar da crescente conscientização de que os gases de efeito estufa aceleram as mudanças climáticas, suas emissões bateram recorde em 2022. As emissões de dióxido de carbono costumam ser o foco das preocupações, mas também é fundamental reduzir a poluição por metano para se limitar o aquecimento global a médio prazo. Porém, há um problema: os dados do setor de combustíveis fósseis sobre as emissões de metano são pouco confiáveis.

A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) estima que as emissões de metano respondam por 30% do aumento das temperaturas médias globais desde a Revolução Industrial. O metano é mais potente na retenção de calor na atmosfera do que o dióxido de carbono — pelo menos 80 vezes mais ao longo de 20 anos —, mas se dissipa bem mais rapidamente.

Os escapamentos de metano — tanto nos gasodutos quanto nos locais de perfuração e produção — também são um problema grave. “Taxas muito pequenas de vazamento de metano nesses sistemas competem com as emissões de gases de efeito estufa do carvão”, diz Deborah Gordon, diretora sênior do programa Climate Intelligence do Rocky Mountain Institute.

Ela é a autora principal de um estudo publicado em julho sobre vazamentos de metano em sistemas de gás e carvão nos Estados Unidos. Sua pesquisa constatou que uma taxa de vazamento de apenas 0,2% ao longo de 20 anos pode gerar emissões e impactos climáticos equivalentes ao do carvão.

O metano é um subproduto desperdiçado pela agricultura, mas é uma mercadoria valiosa em outros setores: ele constitui até 90% do que se conhece como “gás natural”. Em razão disso, o setor de combustíveis fósseis responde por pelo menos 35% das emissões de metano geradas pela ação humana.

No ano passado, a Shell foi a sétima maior produtora de petróleo do mundo em volume e teve a quinta maior receita do setor petrolífero. Suas operações se estendem por 70 países e incluem a exploração, produção e comercialização de gás. A Shell também diz liderar os esforços no setor para controlar as emissões de metano.

A empresa informou uma redução de 27% nas emissões de metano em suas operações, passando de 55 mil toneladas em 2021 para 40 mil no ano seguinte. Ela também afirma ter cumprido sua meta de manter a intensidade de emissões de metano abaixo de 0,2%.

O que é intensidade de metano?

A intensidade de metano é uma métrica dos níveis de poluição por metano dos produtores de petróleo e gás. Ela é relativamente nova e foi padronizada pela Iniciativa Climática para Petróleo e Gás (OGCI), coalizão de grandes petrolíferas, incluindo a Shell. Em 2018, as integrantes da OGCI anunciaram a meta de reduzir a intensidade de metano para 0,25% até 2025.

No entanto, a forma como a Shell e outras gigantes dos combustíveis fósseis calculam suas emissões de metano vem sendo bastante questionada. De acordo com Dominic Watson, especialista em metano do Fundo de Defesa Ambiental (EDF, na sigla em inglês), “as emissões de metano geradas a partir do petróleo e gás são constantemente subestimadas”.

Watson diz não haver praticamente nenhuma medição direta nos locais de extração. Em vez disso, produtores se apoiam em cálculos “baseados em fatores”, feitos com software de contabilidade. Além disso, Watson diz que essas empresas informam suas emissões de metano por conta própria e estabelecem suas metas de poluição de maneira independente.

‘Aonde vamos, encontramos metano’

O metano pode vazar por toda a cadeia da produção petrolífera — emissões que são consideradas bastante subnotificadas, mesmo em jurisdições onde a fiscalização supostamente é mais rígida.

Uma análise de 2018 das instalações de petróleo e gás dos EUA constatou que as taxas de poluição por metano eram 60% piores do que as estimativas do próprio governo. Cobrindo quase 30% da produção de gás no país, os pesquisadores fizeram medições terrestres, validadas com base em observações aéreas, para descobrir que mais de 2,3% de todo o metano produzido estava simplesmente sendo liberado na atmosfera.

Outro estudo realizado ao longo de dois anos pela Força-Tarefa Ar Limpo (CATF, na sigla em inglês) avaliou 430 instalações de petróleo e gás em 15 países europeus. Publicada em maio, a pesquisa identificou 881 fontes de emissões na Europa. “Em quase todos os lugares aonde vamos, encontramos metano”, diz Theophile Humann-Guilleminot, termógrafo que coletou evidências para o estudo da CATF.

Shell e as emissões de metano

A Shell anunciou sua intenção de reduzir as emissões de metano em 2018, quando prometeu reduzir a intensidade de suas emissões para menos de 0,2% até 2025. Para tal, ela informou que usaria equipamentos avançados de detecção de vazamentos de metano e substituiria aqueles obsoletos.

Uma semana depois, a Iniciativa Climática para Óleo e Gás anunciou a mesma meta para as empresas integrantes — que na época eram BP, Chevron, China National Petroleum Corporation, Eni, Equinor, ExxonMobil, Occidental, Pemex, Petrobras, Repsol, Saudi Aramco, Shell e Total.

Essas ações também resultaram em iniciativas do setor, como a Parceria de Petróleo e Gás Metano 2.0 (OGPM, na sigla em inglês), cuja coordenação inclui a Comissão Europeia, o EDF, a CATF e o Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma). A OGMP planeja estabelecer um marco global, abrangente e baseado em análises de emissões de metano. Mais de cem empresas se inscreveram desde 2020.

A staff filling gas at a station
Shell Argentina, que opera no campo de gás de Vaca Muerta, afirma ter reduzido sua intensidade de metano em 72% desde 2019, mas um ex-secretário de energia diz que as petrolíferas podem estar subnotificando suas emissões (Imagem: Jersey Graham / Alamy)

No relatório de 2022 da OGMP, os esforços da Shell em 2021 lhe renderam a classificação mais alta da iniciativa. No entanto, essa classificação apenas indica que a Shell está no caminho certo para fornecer relatórios mais sólidos e precisos no futuro.

De acordo com Manfredi Caltagirone, diretor do Observatório Internacional de Emissões de Metano do Pnuma, os dados apresentados pela Shell se baseiam predominantemente em “fatores de emissões”.

No Relatório de Progresso da Transição Energética de 2022 da Shell, a empresa afirma ter reduzido em 27% suas emissões de metano, mas Caltagirone descreve esses números como “não totalmente confiáveis”. De acordo com ele, a Shell está “apenas começando a obter medições mais consistentes”, o que deve melhorar a precisão nos relatórios.

Dados para além dos relatórios

Para que o setor de gás reduza as emissões de metano, operadores precisam entender onde ocorrem os vazamentos e eliminem com a “liberação” deliberada de metano. Isso é causado pelo mau funcionamento de válvulas, compressores e tanques de armazenamento — já esses últimos são projetados para liberar propositalmente o metano em caso de extrema pressurização.

A IEA afirma que mais de 70% das emissões de metano do setor podem ser reduzidas usando-se a tecnologia existente. Além disso, a agência calcula que aproximadamente 40% dessas emissões podem ser evitadas sem custo líquido, devido ao valor de mercado do gás capturado.

“No fim das contas, a única maneira de reduzir as emissões é verificar se elas estão lá”, disse Tania Meixus Fernandez, consultora sênior da OGMP ao Diálogo Chino. “Então, com base nisso, você desenvolve sua estratégia. Mas se ficar apenas sentado em frente a um computador, não vai conseguir”.

No fim das contas, a única maneira de reduzir as emissões é verificar se elas estão lá
Tania Meixus Fernandez, consultora sênior da OGMP

A gestão do setor de petróleo e gás é outro obstáculo: há uma variação enorme nos esforços de mitigação de emissões entre os ativos operados pelas grandes empresas do setor e aqueles administrados por terceiros. De acordo com James Turrito, diretor de campanhas da CATF, as gigantes do petróleo e gás têm um “patrimônio significativo” desses ativos, sobre os quais há poucas informações e nenhum compromisso público de redução de metano.

Os ativos operados por terceiros são geralmente administrados em estruturas complexas, como joint ventures. Cada um tem seu próprio conselho, não presta contas aos acionistas, e vários são operados com petrolíferas nacionais. “Até o momento, não vimos muitas estatais tentando resolver o problema do metano. Há razões para isso, e barreiras que vão além de simplesmente serem maus atores”, diz Turrito. 

Vazamentos de metano em Vaca Muerta

Em junho, o porta-voz da Shell, Sebastián Sánchez, falou emum evento sobre metano convocado pelo Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Argentina. Ele disse que a Shell Argentina, que tem interesse nas reservas de gás de Vaca Muerta, reduziu sua intensidade de metano em 72% desde 2019. Sánchez atribuiu o resultado ao fim da queima de rotina, ou flaring, e a um melhor monitoramento de suas operações.

Localizada em Neuquén, na região central da Argentina, a vasta formação de Vaca Muerta tem quase o tamanho da Bélgica e é atualmente a quarta maior reserva de petróleo não-convencional do mundo e a segunda maior reserva de gás de xisto. Centenas de poços são explorados em Vaca Muerta, divididos em blocos que pertencem e são operados pela estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales, além de outras 12 multinacionais.

A Shell administra uma área de 769 quilômetros quadrados em Vaca Muerta, operando quatro blocos (Sierras Blancas, Cruz de Lorena, Coirón Amargo Suroeste e Bajada de Añelo). A empresa também é acionista de outros três blocos. Este ano, a Shell inaugurou um oleoduto de 105 quilômetros em parceria com a Pan American Energy e a Pluspetrol, para transportar petróleo de Vaca Muerta à província vizinha de Río Negro.

O governo argentino quer aumentar suas exportações de gás e assinou em junho um memorando de entendimento para a cooperação energética com a União Europeia. No documento, ambas as partes concordam em reduzir os vazamentos de metano na cadeia de suprimento de gás fóssil “até o nível máximo tecnicamente viável”.

Atualmente, os combustíveis fósseis representam mais de 80% da matriz energética da Argentina, mas o país ainda não regulamenta as emissões de metano do setor. Um projeto de lei que propõe essa regulamentação está parado no Congresso desde 2020. Durante um workshop sobre metano em junho, a secretária de Energia da Argentina, Flavia Royon, disse que o governo nacional trabalha com as províncias em um “marco nacional”.

Contrariando as afirmações de Sánchez sobre a redução de metano da Shell Argentina, o ex-secretário de Energia do país, Gerardo Rabinovich, diz que as empresas de Vaca Muerta provavelmente estão subnotificando suas emissões. “As áreas em que elas trabalham são muito grandes, e a fiscalização não as visita com muita frequência. Se houver um vazamento, levará muito tempo para ser consertado”, disse Rabinovich ao Diálogo Chino. “Há uma pressão crescente para as empresas melhorarem seu controle de emissões”.

Em 2018 e 2023, uma equipe da EarthWorks, organização ambiental dos EUA, visitou Vaca Muerta para rastrear vazamentos de metano. Usando câmeras infravermelhas, eles concluíram que pelo menos 5% do gás produzido em Vaca Muerta é vazado e desperdiçado — inclusive intencionalmente, caso a pressão do gás precise ser liberada.

A Shell Argentina não respondeu ao pedido de posicionamento do Diálogo Chino sobre as emissões de metano da empresa em Vaca Muerta.

Monitoramento por satélite

Há um número crescente de ferramentas para detectar emissões de metano, como dispositivos portáteis, tecnologia aérea e novos satélites.

Em 2021, o provedor de dados de satélite Geofinancial Analytics usou sua ferramenta MethaneScan para monitorar as concentrações de metano no ar na América do Norte, na Europa e no Brasil devido às emissões geradas por empresas de combustíveis fósseis. O estudo comparou as descobertas do MethaneScan com os dados de emissões de metano disponibilizados pelas petrolíferas e concluiu que as empresas estavam subnotificando o problema.

De acordo com a IEA, satélites mostraram “grandes vazamentos” de operações de petróleo e gás em 2022, os quais emitiram três milhões de toneladas de metano. Os eventos foram detectados em 20 países e incluíram uma “mega-emissão” de metano, que durou 17 dias, no México, provocada pelo mau funcionamento de um flare de gás.

Em 2022, uma reportagem da BBC usou dados de satélite do Banco Mundial para identificar milhões de toneladas de emissões de metano não declaradas, resultantes da queima de gás em campos de petróleo. Gigantes da energia como BP, Eni, ExxonMobil, Chevron e Shell foram implicadas.

A cobertura por satélite, diz a IEA, está longe do ideal: regiões equatoriais e marinhas ainda não são rastreadas, nem as principais áreas de produção de petróleo e gás da Rússia.

Uma série de satélites de ponta deve chegar nos próximos anos: o EDF anunciou o lançamento do MethaneSat no início de 2024, apresentado como o mais avançado satélite de rastreamento de metano no espaço; a Carbon Mapper, organização sediada nos EUA, diz que implantará uma “constelação” de satélites até 2025 para impulsionar os esforços de rastreamento; e a Kayrros, empresa de análise de dados, assinou um acordo para fornecer dados globais de vazamentos ao Pnuma, para pressionar os maiores emissores.

“Historicamente, a transparência das empresas em relação ao metano tem sido limitada”, diz Manfredi Caltagirone, do Pnuma. “Mas os recursos para medir, registrar e verificar as emissões, inclusive por meio de satélites de detecção de metano de última geração, estão evoluindo rapidamente”.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Clean Energy Wire, que oferece bolsas de jornalismo transfronteiriço para a cobertura das metas climáticas feitas pela iniciativa privada.