Florestas

Povos tradicionais se articulam contra hidrelétrica binacional no rio Madeira

Parceria entre Brasil e Bolívia, projeto polêmico reacende debate sobre viabilidade de usinas na Amazônia
<p>Hidrelétrica proposta no rio Madeira, iniciativa conjunta do Brasil e da Bolívia que encontrou oposição de comunidades, receosas de impactos em seus modos de vida tradicionais e sobre ecossistemas locais (Ilustração: Gabriela Güllich / O Eco)</p>

Hidrelétrica proposta no rio Madeira, iniciativa conjunta do Brasil e da Bolívia que encontrou oposição de comunidades, receosas de impactos em seus modos de vida tradicionais e sobre ecossistemas locais (Ilustração: Gabriela Güllich / O Eco)

Na cidade de Guajará-Mirim, em Rondônia, mais de 140 pessoas lotaram um centro de treinamento onde seria apresentado o primeiro estudo da hidrelétrica binacional do rio Madeira — um projeto entre Brasil e Bolívia que reacende o debate sobre usinas na Amazônia à medida que crescem preocupações com as mudanças climáticas, a segurança energética e os impactos socioambientais de tais empreendimentos.

Enquanto uma porta-voz do Ministério de Minas e Energia do Brasil abria a apresentação, no dia 8 de agosto de 2023, cerca de 40 manifestantes de organizações e comunidades tradicionais protestavam. “Não à hidrelétrica Ribeirão! Águas para a vida, não para a morte!”, lia-se em uma das faixas. Ribeirão é um dos afluentes do rio Madeira e onde será instalada uma das barragens do projeto.

Eles queixavam-se da falta de participação social e transparência na elaboração dos estudos de inventário – a primeira etapa de um projeto hidrelétrico. Os organizadores, então, decidiram encerrar o evento “por motivos de segurança”.

Pessoas marchando com cartazes e uma grande faixa
Manifestantes erguem uma faixa contra hidrelétrica em protesto no Dia Mundial da Água em 2022, em Guajará-Mirim, no estado de Rondônia, no Brasil. O projeto proposto há mais de uma década encontra oposição de comunidades (Imagem: Movimento de Atingidos por Barragens)

“O rapaz falou que o estudo já estava feito. Não precisava da gente aprovar nada”, disse Gerônima Costa, presidente da colônia de pescadores Z2, que recebeu o convite no mesmo dia da reunião. “Mas que trabalho é esse que não ouve a comunidade?”.

A insatisfação local com a hidrelétrica binacional foi colocada em uma carta aberta de 30 de julho, destinada aos presidentes dos dois países, Luís Inácio Lula da Silva e Luis Arce. “Convocar comunidades para divulgar estudos sem prévio conhecimento da sociedade […] é violar a participação dos povos a serem afetados e esconder os impactos sinérgicos e cumulativos que os afetarão”, escreveram 37 organizações da sociedade civil.

Líderes indígenas, pescadores, cientistas e aqueles que vivem da terra falaram ao ((o))eco sobre temores comuns em torno do projeto: a perda de modos de vida e o colapso dos ecossistemas.

Hidrelétricas amazônicas

O rio Madeira é fundamental para o equilíbrio da bacia hidrográfica amazônica. Estende-se por 3.315 quilômetros das nascentes na Cordilheira dos Andes, no norte da Bolívia, até a foz no rio Amazonas, em Itacoatiara, no Amazonas. Esse rio de águas brancas, ou seja, com alta turbidez e nutrientes, abriga grande parte da biodiversidade aquática do bioma, incluindo 60% das espécies de peixes, e é responsável por metade dos sedimentos que chegam ao rio Amazonas.

Apesar disso, o Madeira vive toda sorte de impactos antrópicos – grilagem, desmatamento, agropecuária, garimpo ilegal e barragens.

Após a manifestação, uma série de reuniões aconteceu no segundo semestre de 2023 para debater as consequências da que seria a terceira hidrelétrica no rio Madeira. As outras duas — Santo Antônio, em Porto Velho, e a de Jirau, no distrito de Jaci-Paraná — já garantem 6,7% da capacidade instalada de energia do Sistema Interligado Nacional.

Jirau e Santo Antônio adotaram o modelo a fio d’água, o que significa que elas dependem da energia natural do rio para mover suas turbinas, em vez da água retida em um reservatório. “O efeito dessas barragens sobre o regime hidrológico é mínimo”, diz Javier Tomasella, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mas essa tecnologia é mais vulnerável ao clima.

Usina hidrelétrica de Santo Antônio
Hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, próximo a Porto Velho, Rondônia. Especialista diz que eventos climáticos têm agido “como um pêndulo”, provocando inundações e secas extremas e impactando as operações usinas no Rio Madeira (Imagem: Programa de Aceleração do Crescimento)

Nas últimas décadas, a sucessão de eventos climáticos no rio Madeira “parece um pêndulo”, segundo Tomasella, porque vai de um extremo a outro, com cheias e estiagens intensas. 

“Esses extremos, principalmente a vazante, conspiram contra as hidrelétricas”, pois elas “foram desenhadas para funcionar sem grandes reservatórios”, diz Tomasella. Em outubro de 2023, houve uma escassez hídrica no rio Madeira em decorrência do fenômeno climático El Niño, e a usina de Santo Antônio teve de suspender a operação por 14 dias.

“As hidrelétricas estão cada vez menos confiáveis na região Norte do país”, observa Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, porque “foram ou estão sendo construídas em áreas onde os sistemas de vazões ou o regime de chuvas mudou”.

Estudos de inventário da hidrelétrica

Em novembro de 2016, Brasil e Bolívia firmaram um acordo para iniciar estudos do projeto hidrelétrico binacional na Bacia do Madeira, em convênio entre a então estatal Eletrobras, privatizada em 2022, a Empresa Nacional de Electricidad, estatal boliviana, e o Banco de Desenvolvimento da América Latina, o CAF. Os estudos propõem a construção de duas barragens. A área inundada prevista é de 319 km2 — 176 km2 na Bolívia e 143 km2 no Brasil.

Seriam alagadas regiões das reservas extrativistas (resex) Rio Ouro Preto e Rio Pacaás Novos, em Rondônia, e de áreas protegidas na Bolívia. Também seriam impactados a Estação Ferroviária de Iata, local histórico de Guajará-Mirim, e o Sítio Ramsar Rio Yata, em Guayaramerín, região da bacia do Mamoré, lar de 24 espécies de animais ameaçados, como a ariranha.

Mapa mostrando a localização das barragens propostas entre o Brasil e a Bolívia

João Dutra, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos do Movimento dos Atingidos por Barragens, considera que os estudos foram feitos de “forma unilateral”. “Guajará-Mirim já foi considerado o município mais verde do Brasil. Boa parte são áreas de floresta e territórios de comunidades tradicionais”, diz.

Guajará-Mirim tem 90% de sua área coberta por florestas, concentradas principalmente em um mosaico de unidades de conservação e terras indígenas.

Para o projeto prosseguir, os estudos de inventário precisam da aprovação de Brasil e da Bolívia. Depois, ambos os países precisam assinar novos acordos para a etapa seguinte, que envolve estudos aprofundados de engenharia, socioambientais e econômicos, com tempo estimado de seis anos.

Povos indígenas em alerta

As terras indígenas Igarapé Ribeirão e Igarapé Lage são as mais próximas das barragens propostas. Enquanto as empresas alegam que elas não serão inundadas, os povos originários estão em alerta. Uma análise constatou que as usinas de Jirau e Santo Antônio alagaram 64,5% mais áreas do que o inicialmente previsto.

“Nos deixam muito preocupados”, diz Arão Oro Waram Xijeim, liderança de Igarapé Lage. “A inundação vai ser maior do que a prevista no estudo e vai atingir diretamente a organização social, alimentação, cultura e saúde dos povos indígenas da região”.

O Mamoré e o Madeira são rios importantíssimos para nossa região porque através deles escoamos nossa produção e consumimos seus peixes
Arão Oro Waram Xijeim, líder indígena

Sua terra indígena abriga 783 pessoas e se estende por 107 mil hectares na divisa dos municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim. Já Igarapé Ribeirão tem 289 habitantes e 48 mil hectares no município de Nova Mamoré.

“O Mamoré e o Madeira são rios importantíssimos para nossa região, porque através deles navegamos para o escoamento da nossa produção e, principalmente, [consumimos] os peixes”, acrescenta Arão Oro.  “Vão construir aquela usina do Ribeirão para lá, vai impactar aqui”.

Os estudos reconhecem que o impulso da migração a partir das obras pode “provocar modificações no modo de vida existente” e o “aumento dos conflitos associados ao uso do solo e exploração dos recursos naturais”.

“As populações indígenas e tradicionais do Brasil”, continua o texto, “são as mais sensíveis às mudanças nos rios e ambientes naturais e à chegada de novas pessoas ao redor de seus territórios”.

A ((o))eco, a Eletrobras diz que os estudos “são elaborados com base em dados secundários e apenas apresentam uma estimativa dos prováveis grupos humanos atingidos”, defende a empresa. (Leia a nota na íntegra.)

A empresa acrescenta ter havido uma “comunicação permanente com instituições públicas e privadas e a população em geral dos dois países” desde o início dos estudos. Um Centro de Informação em Guajará-Mirim funcionou de março de 2018 a maio de 2020, além de serem promovidas “visitas quinzenais às comunidades” e “reuniões de esclarecimento”, como um seminário em Guayaramerín em 3 de agosto de 2023.

Seringais alagados

Embora os estudos considerem “alagamentos marginais” nas reservas extrativistas, lideranças locais afirmaram que não foram procuradas.

“A gente sabe que teve uma empresa que se instalou e fez o estudo por dois anos, mas em nenhum momento ela sentou com os extrativistas para falar o que achava que ia acontecer com a gente”, diz Ronaldo Lins, presidente da Associação Primavera, da resex Rio Pacaás Novos.

barranco sinuoso em uma área de floresta
Reserva extrativista do rio Pacaás Novos, a sudeste de Guajará-Mirim, onde cerca de 200 famílias vivem da produção de borracha e castanha-do-pará (Imagem: Marcela Bonfim/Governo do Estado de Rondônia)

Essa reserva abriga cerca de 200 famílias que vivem do extrativismo da borracha e castanha. Nascido em 1973, Lins acompanhava ainda na infância o pai nas coletas e já reparava no zelo pela floresta em pé: “Não tinha muito desmatamento, não tinha fogo”.

O rio que dá nome à reserva é a principal via dos extrativistas para os locais de coleta e o escoamento da produção à cidade.

“Se realmente acontecer essa usina em Ribeirão, com essas duas barragens, pra gente vai ser muito preocupante. A gente é totalmente contra”, acrescenta Lins. “O Pacaás é o rio mais importante para nós para o escoamento de produtos: borracha, castanha, farinha. É a nossa estrada”.

Já a resex Rio Ouro Preto, criada em 1990, tem 204 mil hectares, onde 270 famílias trabalham com a coleta de castanha, açaí, seringa, patoá e buriti, além da agricultura familiar.

Edvaldo da Costa, presidente da Associação dos Seringueiros e Agroextrativista do Baixo Rio Ouro Preto, também critica o projeto: “A gente tem o protocolo de consulta. Eles sabem onde encontram a população tradicional e de que forma a gente quer ser consultado”.

Nas duas reservas, a coleta da borracha acontece no período seco, de maio a novembro. Quando chegam as chuvas, de dezembro a março, os extrativistas deslocam-se para a coleta de castanha e açaí. Contudo, a cheia tem se estendido por até dois meses e encurtado a safra da borracha, além de afetar a a agricultura familiar.

Se ficarem inundados por muito tempo, as seringueiras e os açaízeiros não resistiriam, como aconteceu na resex Jaci-Paraná após as inaugurações das usinas de Jirau e Santo Antônio.

seiva branca escorrendo pelo centro da árvore até
Borracha é coletada de uma reserva extrativista em Rondônia. As recentes inundações na região duraram até dois meses e encurtaram o período de extração da borracha (Imagem: Frank Néry/Governo do Estado de Rondônia)

“Eles perderam boa parte dos seringais, porque a água invadiu e demorou a secar”, diz Lins. “Se já estamos com problema quando as águas baixam aqui em julho, imagina se constróem outra usina”.

Impactos na pesca

O Alto Madeira é uma região com baixa ocupação humana, o que contribui para uma floresta preservada e um rio com ampla biodiversidade aquática.

“As espécies que estão nos [rios] Guaporé e Mamoré conseguem cumprir seu processo fisiológico de migração, não tem barramentos que as impeçam”, observa a bióloga Carolina Doria, coordenadora do Laboratório de Ictiofauna e Pesca da Universidade Federal de Rondônia.

Com as barragens, os estudos projetaram impactos nos habitats aquáticos, alteração na dinâmica de transporte de sedimentos e redução da conectividade dos rios, com a formação de barreiras para os fluxos biológicos.

Gerônima Costa nasceu nos seringais do interior de Guajará-Mirim, em 1962, em uma família que vivia da borracha e da pesca. Ela diz que um transbordamento do rio Mamoré em 2014, provocado pela operação da hidrelétrica do Jirau, deixou vários bairros debaixo d’água e afetou a sede da Colônia Z2.

Os pescadores tiveram compensações por parte da empresa que administra Jirau, mas Gerônima não quer repetir a experiência: “Nosso município ficou tipo uma ilha. Em todo canto chegou água. Tinha que respeitar nossas reservas, área indígena”.

Houve ainda o rompimento de tanques de piscicultura na Bolívia, e peixes como o pirarucu se espalharam pelos rios locais, predando espécies importantes no comércio e na dieta dos moradores, como tambaqui, surubim, tucunaré e jatuarana.

Homens transportando pirarucu do rio para um barco estreito
Homens pescam pirarucu na Amazônia. Esse peixe se espalhou pelo rio Madeira, predando espécies importantes para o comércio e a dieta dos moradores locais (Imagem: Lalo de Almeida / FAO)

Transição justa

As duas hidrelétricas do rio Madeira produzem eletricidade para fora de Rondônia, enquanto nos municípios locais a energia é cara e, muitas vezes, de fontes sujas e intermitentes – essa foi uma queixa constante dos entrevistados desta reportagem.

“Esse conjunto hidrelétrico investido, realizado e construído no Brasil foi feito para o sistema nacional. Nunca foi pensado para abastecer a população amazônica de fato”, observa Natalie Unterstell. “Isso é uma prova de racismo ambiental”.

Na sede da Colônia Z2, a conta mensal gira em torno de R$ 1 mil. Na peixaria da colônia, com câmara fria e fábrica de gelo, fica em R$ 4 mil. “As hidrelétricas não são pra nós”, diz Gerônima Costa.

Há 211 sistemas isolados na Amazônia Legal – isto é, que não estão conectados ao sistema nacional e onde cerca de 80% da energia advém de térmicas a óleo diesel. Esses locais consumiram, em 2022, 857,9 mil metros cúbicos de óleo diesel, o que produziu quase três milhões de toneladas de emissões. Esses dados do Ministério de Minas e Energia foram obtidos pelo ((o))eco via Lei de Acesso à Informação.

pessoas segurando painéis solares em riverside
Painéis solares que serão instalados em escola da reserva extrativista do rio Pacaás Novos são transportados de barco, como parte do programa Luz para Todos, do governo brasileiro (Imagem: Milton Castelo/Governo do Estado de Rondônia)

Na resex Rio Pacaás Novos, cada família tem seu gerador a diesel e gasta até R$ 400 mensais para ter energia quatro horas por dia. Quem consegue lucro nas safras já investe em placas solares, “para ter uma geladeira, ter energia pra própria casa mesmo, para ligar uma televisão”, diz Ronaldo Lins.

Mas isso deve mudar em breve: os extrativistas esperam ser atendidos pelo programa Luz Para Todos, do governo federal, até março de 2024.

Na resex Rio Ouro Preto, alguns painéis fotovoltaicos já chegaram. Cada unidade consumidora paga uma taxa mensal de R$ 60, segundo Edvaldo da Costa.

“Aquelas pessoas que moram a dois, três dias de viagem [da cidade], agora têm sua energia, sua geladeira. Mudou demais, para melhor”, conta o extrativista. “Na alimentação, o pessoal salgava a carne para desidratar, e agora conserva já no gelo. Até pra própria saúde isso ajuda bastante. Beber água gelada – poucas tinham esse privilégio. A comunidade toda está satisfeita”.

Esta história foi originalmente publicada pelo ((o))eco. Essa versão foi editada com permissão.