Clima

Após décadas de desastres, Uruguai e Argentina buscam formas de se adaptar às enchentes

Inundações do rio Uruguai, na fronteira entre os dois países, estão se tornando mais graves e recorrentes. Fundo da ONU visa impulsionar esforços de adaptação
<p>Moradoras da Villa Paranacito, na província argentina de Entre Rios, remam em meio à enchente de 2016. As cidades do baixo rio Uruguai vem sofrendo inundações recorrentes há décadas (Imagem: Alamy)</p>

Moradoras da Villa Paranacito, na província argentina de Entre Rios, remam em meio à enchente de 2016. As cidades do baixo rio Uruguai vem sofrendo inundações recorrentes há décadas (Imagem: Alamy)

“O Uruguai não é um rio, é um céu azul que viaja”. 

Foi assim que o falecido poeta e cantor uruguaio Aníbal Sampayo descreveu o rio Uruguai em sua canção Río de los Pájaros, de 1963, uma homenagem ao rio que passa por sua cidade natal, Paysandú.

Seus versos são uma espécie de fotografia sonora: preservam os personagens locais, a fauna, a flora e as cenas da vida ribeirinha. Mas eles não falam do peso que o rio Uruguai às vezes carrega. 

Quatro anos antes de Sampayo lançar sua mais famosa canção, a maior enchente da qual se tem registro provocou um dos maiores desastres ambientais da história do Uruguai. A inundação afetou igualmente as margens argentinas, que divide o trecho final do rio Uruguai antes de sua confluência com o estuário do Rio da Prata.

Seis décadas depois, Paysandú e outras cidades na zona do baixo rio Uruguai enfrentam uma nova ameaça: as chuvas extremas, que devem se intensificar nos próximos anos. 

Na província argentina de Entre Ríos, na fronteira leste, a precipitação média anual subiu 20% entre 1960 e 2010. Já no Uruguai, estima-se um aumento de 10% a 20% entre 1961 e 2017. O maior volume de chuvas desse período foi registrado nas regiões sudeste e sudoeste do Uruguai — essa última mais próxima ao rio.

“O clima do Uruguai se tropicalizou em um ritmo muito rápido nas últimas décadas”, observa Gustavo Olveyra, especialista em adaptação costeira do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) no país. Segundo ele, não só o volume como a intensidade das chuvas aumentaram, assim como os ventos e a duração das secas. “Há mais dias com eventos extremos”, resume.

“Estamos observando mudanças na sazonalidade e na quantidade anual de chuvas normais e extremas”, concorda Patricia La Nasa, especialista em conflitos ambientais e gestão de riscos na Argentina.

Mas não foram só as mudanças climáticas que afetaram o rio e a vida em torno dele: algumas cidades ribeirinhas viram sua área urbana crescer em até 200% nos últimos 20 anos. Enquanto isso, os incêndios florestais e o desmatamento — principalmente na região Sul do Brasil, onde nasce o rio Uruguai — foram incorporados à paisagem. Outros fatores também cobraram seu preço: a expansão da pecuária e da silvicultura, a degradação das áreas úmidas e as mudanças no uso do solo impedem a absorção das águas das enchentes. 

O fluxo do rio Uruguai também tem sido afetado pela barragem de Salto Grande, na divisa entre a Argentina e o Uruguai. Inaugurada em 1979, a hidrelétrica tem um reservatório de quase 800 quilômetros quadrados (tamanho da cidade de Campinas, em São Paulo), com uma parede de concreto de 2,5 quilômetros de comprimento.

“O Uruguai deveria ser um rio estável”, diz La Nasa, “mas a barragem mudou radicalmente sua dinâmica a jusante. Ela alterou a velocidade do fluxo, a forma de sedimentação e os processos de degradação das margens”.

Deslocamentos forçados

Em setembro, as tempestades intensas no Sul do Brasil provocaram o transbordamento da barragem de Salto Grande, aumentando o fluxo de água no rio Uruguai por vários meses. Como resultado de uma maior vazão do rio e das chuvas acima da média, cidades das margens argentina e uruguaia registraram inundações desde meados de outubro até o início de janeiro.

Inundação provocada pelo rio Uruguai em Salto, Paysandú, Uruguai
Inundação provocada pelo rio Uruguai em Salto, Paysandú, Uruguai. Quando o volume de chuvas supera a capacidade da barragem de Salto Grande, esta é forçada a abrir suas comportas e liberar o volume excedente no rio Uruguai (Imagem: Dinagua)

Mais de três mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas em Paysandú, no Uruguai, e cerca de 500 famílias passaram pela mesma situação em Concordia, na Argentina. Nos últimos anos, autoridades das duas cidades têm se esforçado para realocar pessoas de áreas de risco para bairros mais seguros. 

O deslocamento dos moradores das áreas baixas do rio — geralmente, mais pobres — foi implementada pelos municípios mais afetados, mas tem gerado controvérsia. 

Alejandra Puglia, professora e integrante da organização ambiental Amigos de los Humedales de Fray Bentos, diz que muitas famílias não querem sair de lá: “Elas têm um forte senso de pertencimento e não têm alternativas ou oportunidades de mudar seu modo de vida se forem realocadas para outro lugar da cidade”.

Adaptação climática no rio Uruguai

Em 2015, o Fundo de Adaptação às Mudanças Climáticas da ONU financiou um projeto para contornar esse problemas no curso inferior do rio, a jusante da barragem de Salto Grande. O resultado é o Plano de Ação Climática do Rio Uruguai, sendo implementado pelo Pnud até 2025. A iniciativa tem um orçamento de US$ 14 milhões para obras e atividades em 12 cidades de ambos os lados da fronteira, beneficiando cerca de 650 mil pessoas.

As últimas enchentes reforçaram a ideia de que essa adaptação é essencial. “A última delas não foi a pior, mas durou muito tempo”, diz Natalia García, coordenadora do Plano de Ação Climática do Rio Uruguai no lado uruguaio.

A primeira etapa do projeto é o treinamento da população e dos servidores públicos sobre os efeitos das mudanças climáticas, para incorporar essas noções aos planos diretores dos municípios. 

“As pessoas precisam saber o que fazer quando os sistemas de alerta precoce indicarem a chegada de uma tempestade com ventos fortes”, diz Olveyra, do Pnud, que atua como especialista em adaptação nesse projeto. “Elas serão abrigadas em locais seguros, longe das janelas, ou mandadas para casa com o risco de que sejam atingidas pela tempestade enquanto esperam o ônibus?”.

Quando Buenos Aires acende as luzes, Salto Grande precisa produzir mais energia e abre as comportas. Isso altera os níveis dos rios e acelera a erosão das margens
Patricia La Nasa, especialista em conflitos ambientais e controle de riscos na Argentina

A criação de “parques de inundação” ou calçadões costeiros é prevista em quase todas as cidades contempladas pelo plano. “Essas são áreas geralmente desocupadas após a realocação dos moradores”, explica García. “O objetivo dos parques é evitar que sejam reocupados por assentamentos informais e, ao mesmo tempo, revalorizar os serviços ecossistêmicos fornecidos pela natureza na zona de inundação”. 

Até o momento, apenas o parque La Esmeralda, em Fray Bentos, foi inaugurado. Os demais seguem em fase de pré-aprovação ou em construção. 

Nas cidades de Fray Bentos e Nuevo Berlín, localizadas no departamento uruguaio de Río Negro, a recuperação da flora nativa em parques e ruas tem ganhado força. “Projetamos um parque ao longo do córrego Los Laureles que será reflorestado com espécies de árvores e flores nativas”, diz Adrián Stagi, diretor de Meio Ambiente, Higiene e Bromatologia de Rio Negro. “Queremos fazer o mesmo com as árvores da cidade”.

Parque La Esmeralda, em Fray Bentos
Parque La Esmeralda, em Fray Bentos, área inundável construída como parte do projeto de adaptação climática no Rio Uruguai. Várias cidades nas partes mais baixas do rio aceitaram instalar essas áreas de lazer, que também ajudam a absorver a água quando o nível do rio sobe (Imagem: Presidência do Uruguai)

Outro objetivo do plano de adaptação é reduzir ou interromper as graves consequências da erosão das margens. “Quando Buenos Aires acende as luzes, Salto Grande precisa produzir mais energia e abre as comportas”, explica La Nasa, que supervisiona aspectos socioambientais do projeto no lado argentino. “Isso causa grandes mudanças nos níveis dos rios em questão de horas e acelera a erosão das margens”.

Em Concordia, Argentina, os detritos da erosão das margens do rio Uruguai estão fluindo para uma estação de tratamento d’água, ameaçando a qualidade e a segurança da água potável. Para combater o problema, está em curso uma grande iniciativa para conter as erosões no rio. Obras semelhantes estão sendo planejadas rio acima, no Parque Nacional El Palmar, ainda na Argentina, e ao longo de uma estrada para o Rincón de Franquía, área protegida no Uruguai.

Próximas etapas

O Plano de Ação Climática do Rio Uruguai deve ser concluído até 2025. Alguns dos responsáveis admitem que esse prazo não é suficiente para resolver todos os problemas. “O importante é focar nessas questões e conscientizar a população e as autoridades”, diz La Nasa. “Depois disso, cada aspecto do plano terá de ser gerido de forma constante”. 

A conscientização entre os municípios ribeirinhos parece ter melhorado, e estão surgindo ideias de adaptação. Por exemplo, Concordia inaugurará em breve uma estação de tratamento de água; Fray Bentos está trabalhando em uma estação de compostagem; e Rio Negro, em uma estação de tratamento de efluentes. O Uruguai, por sua vez, quer melhorar sua capacidade nacional de alerta precoce.

Comunidades ribeirinhas esperam para ver se as previsões de novas chuvas acima da média, alimentadas pelo fenômeno climático El Niño, se concretizarão. Enquanto isso, o rio Uruguai continua seu curso. Nem sempre será com o céu azul e o charme bucólico que Aníbal Sampayo cantava — mas, com investimentos e conscientização, será possível brindar melhores condições para mais de meio milhão de pessoas que vivem ao longo das margens argentinas e uruguaias do rio.