Florestas

Saiba como indígenas peruanos usam a tecnologia contra o desmatamento

Iniciativas em áreas remotas da Amazônia contribuem para controle de garimpo, extração de madeira e produção de coca

Quando receberam no celular o primeiro alerta de desmatamento com suas coordenadas exatas, os guardiões da comunidade indígena Infierno, da etnia Ese’eja, se dirigiram à floresta de Madre de Dios, na Amazônia peruana. Chegando a uma clareira, eles testemunharam cinco pessoas cortando árvores.

A comunidade recentemente instalou um sistema de monitoramento acústico no território de 1500 hectares, que também é aberto ao ecoturismo. “Graças aos sensores de som, ouvimos a motosserra”, diz Ruhiler Aguirre Mishaja, coordenador do projeto.

Você sabia?


Evidências mostram que áreas sob a supervisão dos povos nativos ou do Estado, que representam 51,6% da Amazônia peruana, estão mais preservadas

Na última década, comunidades nativas da Amazônia, entre elas a Infierno, defenderam territórios e mantiveram os madeireiros ilegais à distância usando tecnologias que vão desde inteligência artificial, imagens de satélite, aplicativos de celulares georreferenciados a veículos aéreos não tripulados (drones).

A batalha deles é vital. Um total de 17% das emissões globais de gases de efeito estufa vêm do desmatamento. Um estudo recente alerta que os danos à Amazônia, maior floresta tropical do mundo, podem estar piorando os efeitos das mudanças climáticas.

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A Rede Amazônica de Informações Socioambientais Geo-referenciadas (Raig) adverte que 65,8% de toda a Amazônia sofre pressão de atividades extrativistas, agricultura e projetos de infraestrutura viária e hidroelétrica (Amarakaeri.org)

Proteger a floresta

Evidências mostram que áreas sob a supervisão dos povos nativos ou do Estado, que representam 51,6% da Amazônia peruana, estão mais preservadas. O Fundo de Defesa Ambiental constatou que, entre 2000 e 2015, os territórios indígenas peruanos perderam 1,96% de sua cobertura florestal, enquanto as áreas protegidas, 0,59%. Em contraste, as terras não protegidas da Amazônia peruana perderam 4,41% da vegetação.

Jason Kopas, pesquisador e advogado da organização Earthjustice, afirmou ao Diálogo Chino que o reconhecimento legal e a titulação de territórios indígenas é um primeiro passo para melhorar o manejo florestal. Com limites claros, as comunidades podem tirar melhor proveito das tecnologias de monitoramento. Em Loreto, região peruana com a maior área florestal, apenas 744 das 1.221 comunidades reconhecidas conseguiram titular suas terras.

A Rede Amazônica de Informações Socioambientais Geo-referenciadas (Raig) alerta que 65,8% da Amazônia está sob pressão das atividades extrativistas e agrícolas, juntamente com estradas e empreendimentos hidrelétricos. Os dados não incluem atividades ilícitas, como o garimpo e a exploração ilegal de madeira ou o cultivo de coca para o tráfico de drogas.

Luis Tayori trabalha como piloto no combate ao desmatamento. Entre 2000 e 2015, os territórios indígenas do Peru perderam 1,96% de suas florestas (ECA - Amarakaeri)

Como no Brasil, o Ministério do Meio Ambiente peruano publica informações do satélite PerúSat-1, lançado em 2016, através de sua plataforma GeoBosques. Isto lhe permite identificar alertas de desmatamento em tempo real. No entanto, muitas comunidades não têm acesso à internet. Fechar essa lacuna é fundamental para frear o desmatamento.

O último estudo de campo realizado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos sobre o papel dos povos indígenas como gestores das florestas analisou o trabalho de 76 comunidades em Loreto e as dividiu em dois grupos: de controle e experimental. Nesse último, composto por 36 comunidades, nomeou monitores que receberam smartphones com um aplicativo de geolocalização.

Encontramos coisas que nunca tínhamos visto e resolvemos outras

Uma vez por mês, devido à falta de acesso à Internet, cada comunidade baixava a informação com os alertas obtidos da GeoBosques para seus smartphones, permitindo-lhes planejar o monitoramento. Com isso, o desmatamento em seus territórios caiu 52% em 2018 e 21% em 2019. O projeto continua em operação.

“A esperança é que, fortalecendo as comunidades na linha de frente [contra o desmatamento], elas possam usar essas informações para interagir melhor com o Estado e buscar assistência quando necessário”, diz Kopas, co-autor do estudo realizado com o apoio da Rainforest Foundation US e da Organização Regional dos Povos Indígenas do Leste.

O Tikuna apu (líder indígena) Francisco Hernández, presidente da Federação das Comunidades Tikuna e Yahuas do Baixo Amazonas, próximo à tríplice fronteira com o Brasil e a Colômbia, explica que oito comunidades da entidade participaram da experiência.

“Encontramos coisas que nunca tínhamos visto e resolvemos outras”, afirmou Hernández, listando por exemplo a descoberta de estrangeiros, serrarias e plantações ilegais. “Havia comunidades que não sabiam quais eram seus limites ou o que abrangia seus territórios”.

Segundo Hernández, a região vem sofrendo um “desmatamento voraz” ligado ao cultivo ilegal de coca. “Nas comunidades onde não há monitoramento, o desmatamento continua avançando”, adverte.

‘Orelhas’ para as árvores na Amazônia

A floresta Madre de Dios está localizada no sul da Amazônia peruana, na fronteira com a Bolívia. Na região, a comunidade Infierno integra desde 2018 um projeto internacional liderado pela Rainforest Connection. A startup sem fins lucrativos cria sensores de som com microfones de telefones usados, alimenta-os com energia solar e os coloca no alto das árvores. As florestas tropicais têm muitos sons, mas a inteligência artificial que analisa o áudio consegue diferenciar entre a natureza e as motosserras.

César Ipenza, pesquisador focado em justiça ambiental, diz que as autoridades no local em questão devem corroborar as informações geradas pelo monitoramento por satélite para punir crimes ambientais. “Deslocar-se para as zonas de desmatamento para uma inspeção, para ver e contrastar o que se vê na imagem, é um desafio. Viagens terrestres de dias ou horas complicam essa resposta [por parte do Estado]”, ressalta.

Essa mesma situação ocorreu em Infierno em fevereiro de 2018, ao início do projeto de monitoramento eco-acústico, quando seus membros foram alertados e encontraram cinco madeireiros ilegais. A Promotoria do Meio Ambiente foi ao local, mas não pôde prendê-los porque a polícia não estava presente. Eles também não conseguiram identificar os criminosos, que deram informações falsas.

Aguirre lembra que eles derrubaram 11 árvores da espécie shihuahuaco e um de moena. “Isso tem um valor muito alto”, diz.

190.000

hectares de floresta nativa foram perdidos no Peru, uma área maior do que a idade de São Paulo.

Um mês depois, um novo alerta apareceu. As autoridades administrativas e fiscais voltaram, desta vez com a polícia. Dois madeireiros foram presos em flagrante. Hoje, no entanto, eles estão livres, afirma Aguirre, apesar de todas as provas reunidas como resultado do alerta.

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Para além da tecnologia, a vigilância em Amarakaeri é constante em campo. São 24 guardas comunitários e 14 guardas do parque (ECA - Amarakaeri)

Com a pandemia de Covid-19 e as dificuldades de deslocamento, os “ouvidos” da Infierno se fecharam. Entretanto, os Ese’eja esperam continuar a monitorar a floresta com outras plataformas de imagens de satélite.

Dados da organização Global Forest Watch mostram que, em 2020, o Peru perdeu 190 mil hectares de floresta nativa, uma área maior do que a cidade de São Paulo.

A tecnologia não funciona isoladamente

Há cinco anos, Luis Tayori, líder da etnia Harakbut, sobrevoa os 402 mil hectares da Reserva Comunal Amarakaeri, criada em 2002, em Madre de Dios. Com isso, ele reduz os riscos à segurança impostos pelo patrulhamento a pé. Além disso, tem uma vista aérea da vasta área natural protegida, que é também o território ancestral dos Harakbut.

Tayori é um dos oito pilotos certificados pelo Ministério dos Transportes na equipe de vigilância que ele mesmo coordena. Eles recebem treinamento e assessoria para a aquisição e manutenção dos drones, que devem ser adaptados às condições do meio ambiente, à dimensão do território e às demandas do patrulhamento.

A reserva tem 98,5% da sua floresta preservada. É co-gerida pela ECA Amarakaeri, uma organização composta por dez comunidades das etnias Harakbut, Yine e Machiguenga e pelo Serviço Nacional Peruano de Áreas Protegidas Nacionais. Mas não está livre de ameaças.

As próprias instituições não se debruçaram sobre essa questão em profundidade

Madre de Dios é a região peruana mais devastada pela corrida ao ouro. Uma análise do Centro de Inovação Científica da Amazônia mostrou que, entre 2009 e 2017, o garimpo foi responsável pela perda de mais de 95 mil hectares de floresta. Walter Quertehuari, presidente da ECA Amarakaeri, diz que embora não haja a atividade ilegal na reserva, há pressão do entorno.

Camanti, localizada a poucos metros da área protegida, é um desses casos. O Monitoramento do Projeto Amazônia Andina identificou 105 hectares desmatados por garimpeiros entre março de 2019 e outubro de 2020. A atividade também provoca contaminação da água, violações dos direitos humanos, além de impulsionar o crime organizado e conflitos com as populações locais.

A vigilância em Amarakaeri é constante. Há 24 guardas comunitários, além dos 14 guardas do parque Sernanp e do pessoal técnico. Desde 2018, todos fazem monitoramento pelo aplicativo Mapeo Mobile, que lhes permite coletar dados da floresta mesmo sem acesso à internet e produzir relatórios digitais. Eles então usam o Mapeo Desktop, uma versão computadorizada para gerenciar e analisar todos os dados.

O software foi concebido pelas próprias comunidades juntamente com a Digital Democracy, uma organização que apoia as comunidades marginalizadas com know how tecnológico. Segundo a organização, até junho de 2021, a plataforma recolheu 150 provas de atividades humanas dentro da reserva e da zona de influência. Trinta ações judiciais foram iniciadas.

“Percebemos que a tecnologia não é suficiente e temos que ir a campo confirmar as informações”, explica Tayori.

O líder da Harakbut acredita que o Estado deve concentrar seus esforços em garantir a segurança dos guardiões que recebem ameaças. Mas a denúncia é desencorajada, uma vez que há a sensação de que as autoridades não estão prestando atenção.

“As próprias instituições não se debruçaram sobre essa questão em profundidade. Acontece conosco, que estamos em áreas rurais, e não é um hábito denunciar”, diz Tayori.