Clima

Os desafios do novo governo do Chile para o desenvolvimento sustentável

Governo do presidente eleito Gabriel Boric deve centrar-se em descarbonização, crise da água e nacionalização do lítio, assim como reescrever a Constituição do país
<p>O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, fala em Santiago, no dia seguinte à sua vitória eleitoral em dezembro de 2021. O jovem candidato de esquerda fez das questões ambientais o centro de sua campanha, e desde então escolheu um gabinete com fortes credenciais ambientais, mas enfrenta desafios na implementação de seu programa progressivo. (Imagem: ZUMA Press / Alamy)</p>

O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, fala em Santiago, no dia seguinte à sua vitória eleitoral em dezembro de 2021. O jovem candidato de esquerda fez das questões ambientais o centro de sua campanha, e desde então escolheu um gabinete com fortes credenciais ambientais, mas enfrenta desafios na implementação de seu programa progressivo. (Imagem: ZUMA Press / Alamy)

Diante de uma multidão que celebrava sua vitória, Gabriel Boric, mais jovem presidente eleito do Chile, foi categórico: “Destruir o mundo é destruir a nós mesmos. Não queremos mais zonas de sacrifício, não queremos mais projetos que destruam nosso Chile, que destruam comunidades. Em nosso governo, será uma prioridade evitar essa destruição e ter um desenvolvimento compatível com o meio ambiente”.

Boric se tornará o novo presidente do Chile em 11 de março, com apenas 36 anos de idade, tendo derrotado seu opositor de extrema-direita, José Antonio Kast, em uma votação histórica em dezembro de 2021. Natural da Patagônia chilena, Boric se tornou conhecido como um dos líderes dos protestos estudantis que se disseminaram pelo país em 2011. Onze anos depois, ele sucederá Sebastián Piñera — mesmo homem contra o qual ele protestou nas ruas no início da última década.

O presidente eleito, que está terminando seu segundo mandato como deputado federal, tornou as questões ambientais e de mudanças climáticas centrais em sua campanha. Ele se comprometeu a criar “o primeiro governo verde do Chile” e chegará ao cargo com uma série de desafios para provar que está falando sério.

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Nos primeiros meses de governo, ele terá que implementar uma nova lei sobre mudanças climáticas, reformar a legislação que rege o uso da água e enfrentar uma seca tão severa que lançou dúvidas se o compromisso chileno de fechar suas usinas elétricas alimentadas a carvão seria mesmo mantido.

Há outros compromissos importantes: pôr fim às “zonas de sacrifício” do Chile, ou seja, áreas prejudicadas por problemas socioambientais e econômicos crônicos; criar uma empresa estatal para regulamentar a extração e o uso do lítio; e promover um novo modelo de desenvolvimento sustentável.

Tudo isso ocorre em meio a um debate nacional sobre a nova Constituição do país, que precisa ser aprovada até o final do ano. A inclusão de elementos como o plurinacionalismo, reconhecendo os direitos dos povos indígenas à autodeterminação e os “direitos da natureza”.

Seca e neutralidade de carbono

“Ao declarar que quer ter o primeiro governo ambientalista, Boric mostra que acabaram os tempos em que o desenvolvimento econômico, o bem-estar e o progresso eram antagônicos à proteção ambiental e aos direitos humanos, que não é possível retroceder na ação climática e que ele pretende alinhar todos seus ministros a essa visão”, diz Valentina Durán, diretora do Centro de Pesquisa em Direito Ambiental da Universidade do Chile.

Um ambientalismo amplo e interministerial foi um dos atributos mais marcantes do recém selecionado gabinete de Gabriel Boric, de 24 ministros, sendo 14, mulheres.

A escassez de água deve ser enfrentada através da coordenação intersetorial. Os conflitos socioambientais associados à água serão cada vez mais frequentes

Um dos nomes mais fortes é o de Maisa Rojas, renomada cientista climática que assumirá o Ministério do Meio Ambiente. “Meu papel é fazer deste o primeiro governo ambientalista do país”, disse Rojas em uma de suas primeiras entrevistas desde sua nomeação.

Rojas trabalhou em vários relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), inclusive como autora principal e coordenadora da primeira parte do Sexto Relatório de Avaliação (AR6), o mais amplo trabalho de ciência climática produzido.

Embora a política seja um mundo novo para Rojas, ela tem se envolvido indiretamente na área há algum tempo. Foi indicada pelo governo de Sebastián Piñera a coordenar o comitê consultivo científico da COP25, que originalmente seria sediado no Chile em 2019. Há apenas alguns meses, ela foi convidada pela Convenção Constitucional — órgão encarregado de redigir a nova Constituição do país — a apresentar as conclusões do mais recente relatório do IPCC, o que acabou sendo determinante para a inclusão no texto do desafio da emergência climática.

Rojas já definiu suas prioridades: implementar a nova lei sobre mudanças climáticas (em seu estágio final de tramitação), promover o recém-estabelecido serviço para a conservação da biodiversidade e áreas protegidas e dar atenção às zonas de sacrifício.

Em sua função anterior como diretora do Centro de Pesquisa Climática e Resiliência, a nova ministra foi participante ativa do debate legislativo da lei climática, que estabelece o compromisso do Chile de ser neutro em carbono até 2050.

“Se você me perguntar qual é a ação mais importante que devemos tomar, é ter esta lei”, disse Rojas durante uma das sessões legislativas.

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Rojas também identificou a seca como um dos principais desafios do país, reconhecendo que essa é uma questão que ela terá que enfrentar em colaboração com outros ministérios, já que as decisões relativas à água no Chile atravessam vários órgãos públicos.

Marcelo Mena, ex-ministro do Meio Ambiente (2017-2018), diz que “a escassez de água deve ser enfrentada através da coordenação intersetorial”. Para ele, trata-se de “uma questão importante a curto prazo, pois os conflitos socioambientais associados à água serão cada vez mais frequentes”.

Transição energética do Chile

A forte seca, que há várias décadas tem impactado o Chile, chegou a ameaçar os compromissos de descarbonização do país. O Coordenador Elétrico Nacional, órgão que supervisiona o sistema elétrico do país, sugeriu adiar por um ano o fechamento das usinas elétricas a carvão Bocamina 2 e Ventanas 2. O argumento é evitar uma crise de abastecimento devido à queda da produção das hidrelétricas, afetadas pela seca.

Quem enfrentará esse desafio e liderará a agenda da descarbonização será o acadêmico Claudio Huepe, que está deixando o Centro de Energia e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Diego Portales para assumir o cargo de ministro da Energia. Huepe é membro do Convergência Social (partido de Gabriel Boric) e tem integrado a campanha do presidente eleito desde seus primeiros dias.

Para Ana Lia Rojas, diretora-executiva da Associação Chilena de Energias Renováveis, o desafio imediato de Huepe como ministro será enfrentar o sistema elétrico desgastado do país. Mas além disso, o que este governo decidir nos próximos quatro anos, diz ela, será “a base do projeto regulatório que nos permitirá dedicar os próximos 25 anos em avançar rumo a uma economia neutra em carbono e um setor elétrico 100% renovável”.

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Embora o Chile tenha sido pioneiro em energia renovável (eólica e solar representaram 21% da geração de 2021), o setor está preocupado com o alto nível de desperdício. Devido à falta de infraestrutura e a problemas operacionais, grande quantidade de energia renovável não chega à rede para ser consumida. Somente em janeiro deste ano, 160 GWh foram desperdiçados, o que representa mais do total das perdas registradas em 2019.

De qualquer forma, empresas de energia renovável podem ter bons olhos para o novo governo e seu compromisso de descarbonização. “Concordamos que há muitas formas de se fazer a descarbonização, não se trata apenas de remover o carvão e acrescentar energias renováveis. Ela tem que ser alimentada por muitas linhas de ação, que estão corretamente contidas no programa do presidente Boric”, diz Ana Lia Rojas.

O programa de energia do novo governo reconhece a construção de linhas de transmissão e unidades de abastecimento como chave para a transição energética, além de estabelecer fóruns em diferentes partes do país para discutir “transições justas”.

Transporte e economia

Outros nomes de ministros dão o tom do caráter ambiental pretendido pelo governo.

Juan Carlos Muñoz estará no Ministério dos Transportes e Comunicações. Com um doutorado em engenharia civil e ambiental, Muñoz foi diretor do Centro para o Desenvolvimento Urbano Sustentável. Entusiasta do ciclismo, ele promoveu um sistema de transporte público gratuito.

Uma de suas promessas de campanha foi uma agenda de transporte “duplo zero”: um sistema público gratuito e elétrico, livre de emissões, a ser lançado como piloto na cidade de Valdivia, no sul do país. Também na agenda está o aumento do imposto sobre combustíveis para indústrias e grandes poluidores.

No Ministério das Finanças, o economista Mario Marcel assumirá o posto principal. Ele foi presidente do Banco Central do Chile de 2016 até este ano e teve uma longa carreira desenvolvendo políticas financeiras em organizações internacionais e inclusive sob governos chilenos anteriores.

Boric mostra que acabaram os tempos em que o desenvolvimento econômico, o bem-estar e o progresso eram antagônicos à proteção ambiental

Em uma entrevista, Marcel disse: “Temos que começar a pensar na produção sustentável, que é mais competitiva e que se torna mais evidente a cada dia. O mundo valoriza a redução das emissões de carbono e a proteção do meio ambiente. Hoje, vender produtos sustentáveis traz maior retorno do que vender produtos poluidores”.

Como presidente do Banco Central, Marcel promoveu a incorporação dos riscos das mudanças climáticas nas análises de estabilidade financeira. Além disso, durante a COP26, o novo ministro liderou o Banco Central na adesão a uma aliança internacional para analisar e quantificar os riscos climáticos na estabilidade financeira. Em novembro de 2021, Marcel reuniu-se com Partha Dasgupta, um dos principais especialistas em economia da biodiversidade e na incorporação de serviços ecossistêmicos em análises econômicas.

Papel da mineração

Marcela Hernando, médica e parlamentar do Chile, assumirá o Ministério de Mineração. Hernando liderará duas importantes agendas que poderão marcar um novo caminho na política de mineração do Chile: a criação de impostos sobre a mineração de cobre, que deve aumentar em 1% o PIB chileno, e a criação de uma empresa estatal de lítio. Essa última ação visa a “desenvolver uma nova indústria nacional para o recurso estratégico, com o envolvimento de comunidades e agregando valor à produção”, de acordo com um documento do governo.

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O lítio foi o primeiro ponto de conflito entre os governos de Boric e Piñera. Em outubro de 2021, foi publicado um edital para a exploração e produção de 400 mil toneladas de lítio. A nova administração pediu o adiamento da licitação, a fim de ganhar tempo para incorporar critérios que beneficiem comunidades e investir em pesquisa e desenvolvimento. A licitação engloba apenas 4,4% das reservas de lítio do país, as quais representam, no entanto, 25% das áreas disponíveis à exploração, diz Willy Kracht, novo subsecretário de mineração.

O Tribunal de Apelações de Copiapó, província ao norte onde estão localizadas as reservas, ordenou o congelamento da licitação após um recurso apresentado pelas comunidades locais. Isto ocorreu depois de já se ter atribuído o projeto à subsidiária da chinesa BYD e à empresa local Servicios y Operaciones Mineras del Norte.

Acordo de Escazú

O novo ministro das Relações Exteriores será Antonia Urrejola, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que foi imediatamente visto como um sinal de que Boric não se sentará confortavelmente com outros governos de esquerda na região, como Nicarágua e Venezuela.

Enquanto estava na CIDH, Urrejola defendeu a necessidade de os países aderirem ao Acordo de Escazú, como forma de fortalecer as políticas públicas ambientais diante da emergência climática. Enquanto isso, Boric se comprometeu a aderir ao acordo e enviá-lo ao Congresso para ratificação antes do Dia da Terra, em 22 de abril deste ano. Maisa Rojas confirmou o plano, assegurando que “a assinatura de Escazú é a primeira coisa a ser feita”.

A primeira conferência das partes sobre o acordo, que reunirá os países signatários, será realizada em Santiago  do Chile, na sede da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da ONU, entre os dias 20 e 22 de abril.