Energia

Com boom de renováveis, Chile tem desafios rumo à transição energética

País é atraente para mercado de energia limpa, mas seca prolongada afeta estabilidade elétrica e pode atrasar fechamento de termelétricas
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Uma criança brinca na praia em frente a uma termelétrica em Las Ventanas, Chile. A área é conhecida como uma das ‘zonas de sacrifício’ do Chile — áreas altamente industrializadas ou com indústrias bastante poluidoras, como as termelétricas (Imagem: Pablo Sanhueza / Alamy)

O Chile tem presenciado um crescimento exponencial em sua capacidade de energia renovável e se tornou o segundo mercado mais atraente para investimentos em energia entre as nações emergentes, segundo o Climatescope 2021, da Bloomberg New Energy Finance. Mas os desafios rumo à transição energética chilena persistem.

Juntamente ao crescimento das energias renováveis, o Chile avançou no combate aos combustíveis fósseis. Até 2021, o país já havia fechado cinco termelétricas, e mais quatro devem ter o mesmo destino em 2022. Ao todo, 15 serão fechadas e três devem ser convertidas a outros usos até 2025. Todas as 28 termelétricas do sistema elétrico do Chile deverão fechar as portas até 2040.

No caminho à frente, no entanto, há uma mega seca que assola grande parte do Chile há mais de uma década. Especialistas acreditam que o país alcançará a neutralidade de carbono até 2050, meta estipulada no Acordo de Paris, embora os desafios sociais e práticos devam ser cuidadosamente gerenciados à medida que a transição energética ganha ritmo.

Números de energia renovável não dizem tudo

Até o final de 2021, havia 166 projetos de energia renovável, totalizando 4.473 megawatts (MW) de potência, em construção no Chile, de acordo com dados da Comissão Nacional de Energia. Esses projetos correspondem a quase metade da geração já em funcionamento no país (8.695 MW) e devem entrar em operação até 2023.

Apesar desta expansão, o risco de cortes de energia quase levou o país ao escuro em meados do ano passado. Isto obrigou o governo a publicar um decreto com ações preventivas para evitar o racionamento. O decreto foi prorrogado até setembro de 2022 pelo governo de Gabriel Boric, presidente eleito que tomará posse em março.

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O quase apagão foi resultado de uma tempestade perfeita causada pela escassez de água junto a outros imprevistos.

A seca prolongada manteve os reservatórios pouco acima da metade de sua capacidade — e com frequência abaixo dela. A desativação de algumas termelétricas, a crise no fornecimento de diesel e problemas técnicos em algumas usinas foram outros fatores a se somar na crise.

“Não só tivemos um ano muito ruim de seca — o pior em 70 anos — mas algumas termelétricas também pararam de funcionar”, explicou Álvaro Lorca, pesquisador da faculdade de engenharia da Pontifícia Universidade Católica do Chile. Além disso, recursos que deveriam estar disponíveis para situações de emergência não estavam, acrescenta.

A crise tomou tamanha proporção que se cogitou reativar termelétricas que haviam sido fechadas, como Ventanas 1, cuja operação foi encerrada em dezembro de 2020. Isso acabou não sendo necessário, mas não há garantias de que a medida não seja tomada no futuro durante o processo de transição energética do país.

Desafios da transição energética

A crise energética não é o único desafio à frente. O Chile vai ficar mais seco — mesmo nos melhores cenários previstos — portanto, a escassez de água será constante. “A cada ano, teremos 2% menos água”, disse Lorca.

Felipe Pino, advogado responsável pelo projeto de transição justa na Fima, ONG de direito ambiental, diz estar preocupado com a pouca atenção dada à seca nos planos de transição energética. Ele acredita ser possível que se encerrem as usinas a carvão até 2040 e que o Chile alcance a neutralidade de carbono até 2050. Mas mudanças devem ser feitas.

Uma delas é a gestão dos reservatórios, uma vez que cerca de 30% da energia do Chile vem de recursos hídricos. “Temos que administrá-lo de forma mais inteligente”, disse Lorca.

A cada ano, teremos 2% menos água

Um estudo de janeiro mostrou que o fornecimento de energia no primeiro trimestre de 2022 não está comprometido, mas a reserva de energia elétrica pode cair para 15% de sua capacidade até o final de março, se não houver mudanças na gestão dos reservatórios. Esse é o mesmo índice de quando o decreto de 2021 foi publicado.

“O uso excessivamente otimista da água, juntamente com o fechamento de termelétricas, pode levar o Chile novamente a um ano muito delicado”, disse Lorca, acrescentando que é por isso que as expectativas de se pôr fim ao carvão devem ser avaliadas com cautela.

Além disso, diz Lorca, não há como o país garantir um abastecimento estável e seguro sem contar com a energia de termelétricas a serem fechadas, pelo menos como salvaguarda.

Lorca aponta a retomada da produção de diesel em 2021 como um exemplo. Devido aos desafios da pandemia da Covid-19, a demanda aumentou a tal ponto que nem a oferta, nem a logística foram suficientes para acompanhar seu ritmo.

Justiça climática no Chile

Embora Felipe Pino reconheça progressos na transição energética do Chile desde que o país assumiu a presidência da COP25 em 2019, dois pontos continuam pendentes: um cronograma detalhado para o fechamento das termelétricas restantes e uma visão moderna de transição para se garantir justiça climática às comunidades afetadas.

“Para as pessoas que vivem nas ‘zonas de sacrifício’, essa [transição] começou tarde demais, e o custo desse atraso não deve ser pago pelas comunidades”, disse Pino.

As chamadas zonas de sacrifício do Chile são áreas altamente industrializadas ou com indústrias bastante poluidoras, como as termelétricas. Por isso, busca-se justiça climática para os que vivem nessas áreas e sofrem com a poluição.

De acordo com Pino, o plano de transição tem se concentrado demais nas mudanças no mercado de trabalho, uma vez que muitos funcionários deixarão as termelétricas e poderão assumir cargos na indústria de energia limpa. Embora apoiar essa transição seja crucial, não pode ser a única preocupação.

Para as pessoas que vivem nas ‘zonas de sacrifício’, a transição energética começou tarde demais

“Restauração ecológica, remediação e segurança social para as comunidades são igualmente importantes”, afirma o advogado.

No final de 2021, foi publicada a estratégia de transição justa para o setor energético, um compromisso incluído nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (CNDs) do Chile e presentes no Acordo de Paris. O trabalho foi liderado pelos Ministérios de Energia, Meio Ambiente e Trabalho do país e contou com uma consulta pública.

Carolina Urmeneta, chefe do escritório de mudanças climáticas do Ministério do Meio Ambiente, explicou que a estratégia traz ações relacionadas ao emprego, mas também oferece um plano para monitorar as áreas onde estão as usinas a carvão. Com isso, será possível determinar o avanço regional após o fechamento das usinas. Parte desse trabalho já começou em Quintero, Puchuncaví, Huasco e Coronel.

“A população poderá acompanhar a melhora de sua região, a qualidade da água e do solo e o estado dos sedimentos nas baías”, explicou Pino. “Em nível internacional, tem-se focado muito na mitigação, deixando de lado o que acontece nos territórios e postergando a adaptação. Isso é o que tentamos evitar na transição energética chilena”.