Clima & energia

Hidrelétricas na Amazônia voltam aos holofotes em ano eleitoral

Após uma década sem novos projetos, governo brasileiro autoriza estudo de grandes usinas e reacende debate sobre geração de energia limpa
<p>Vista aérea de um canteiro de obras de uma hidrelétrica localizada no rio Teles Pires, perto da cidade de Alta Floresta, no Pará. Apesar de alarmantes impactos socioambientais, o governo federal cogita construir três grandes usinas na Amazônia (Imagem: REUTERS / Alamy)</p>

Vista aérea de um canteiro de obras de uma hidrelétrica localizada no rio Teles Pires, perto da cidade de Alta Floresta, no Pará. Apesar de alarmantes impactos socioambientais, o governo federal cogita construir três grandes usinas na Amazônia (Imagem: REUTERS / Alamy)

Depois de quase dez anos sem licitar novos projetos hidrelétricos de médio ou grande porte no Brasil, em janeiro, o governo federal revelou que voltou a estudar a construção de três grandes usinas na bacia do rio Tapajós, no noroeste do Pará, em um dos locais mais preservados da Amazônia. “Não houve nenhuma conversa prévia ou anúncio para o mercado. Foi uma surpresa mesmo”, garante Roberto Kishinami, do Instituto Clima e Sociedade (ICS), uma organização sem fins lucrativos que luta pela justiça climática.

A possibilidade de retomar a construção de empreendimentos dessa envergadura na maior floresta tropical do planeta volta à tona em um ano eleitoral em que dificilmente se poderá ignorar o debate sobre as mudanças climáticas, no país que no ano passado viveu a pior seca em mais de cem anos — um fenômeno potencializado pelo aquecimento global, problema para o qual a preservação da Amazônia é parte da solução.

As usinas de Jamanxim (881 megawatts), Cachoeira do Caí (802 MW) e Cachoeira dos Patos (528 MW), cujas análises voltaram à pauta em Brasília, são remanescentes de um ambicioso projeto de se construir o maior complexo hidrelétrico do país, que incluía ainda as gigantes São Luiz do Tapajós (8.040 MW) e Jatobá (1.650 MW). A ideia naufragou em 2016 pela enorme dimensão dos impactos sobre as terras indígenas da região.

Dilma Roussef cumprimenta os trabalhadores
Ex-presidente Dilma Roussef visita as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Inaugurada em 2016 pela presidente, Belo Monte marcou o fim de um ciclo de construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, iniciado alguns anos antes por seu antecessor e correligionário Luiz Inácio Lula da Silva (Imagem: Ichiro Guerra, CC BY-NC 2.0)

Por isso, o anúncio revolveu fantasmas que pareciam ter ficado no passado. “No século 21, temos que buscar alternativas de geração de energia”, avalia Juvêncio Cardoso, mestre em ciências ambientais pela Universidade Federal do Amazonas e professor na Terra Indígena Alto Rio Negro, no estado da Amazonas, próxima à fronteira com a Colômbia.

“As barragens mudam o curso natural da água, impactando a biodiversidade, a população de peixes e a vida dos povos da Amazônia”, completa Cardoso, um líder do povo Baniwa.

“A experiência dos povos do Xingu é que hidrelétrica na Amazônia não dá certo. Não traz desenvolvimento e não é sustentável”, concorda a ativista Antônia Melo, que foi despejada em 2014 de sua casa em Altamira, no norte do Pará, quando a megausina de Belo Monte era construída.

O mito da hidrelétrica como fonte de baixa emissão cai por terra

Inaugurada em 2016 pela então presidente Dilma Rousseff, Belo Monte marcou o fim de um ciclo de construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, iniciado alguns anos antes por seu antecessor e correligionário Luiz Inácio Lula da Silva. Sua construção foi marcada por impactos socioambientais graves que renderam uma denúncia da Organização dos Estados Americanos contra o governo brasileiro. Famílias ribeirinhas foram removidas à força de suas terras, e os indígenas da região de Volta Grande do Xingu, que abriga diversos territórios protegidos, tiveram seu modo de vida alterado drasticamente pela redução no nível do rio. Nos centros urbanos da região, a falta de planejamento para receber um exército de 25 mil trabalhadores catapultou os indicadores de violência, especialmente contra as mulheres.

Belo Monte também foi alvo de centenas de ações judiciais e investigações de corrupção, um balanço tão negativo que ajudou a sepultar o debate sobre novas hidrelétricas na Amazônia — pelo menos até janeiro.

“A máxima era: hidrelétrica na Amazônia nem pensar”, admite Luiz Eduardo Barata, que entre 2016 e 2020 foi diretor do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), órgão que coordena a geração e transmissão de eletricidade no país. Hoje, Barata presta consultoria na área de energia.

Dezenas de hidrelétricas operam na Amazônia

Um levantamento do Diálogo Chino com base nos dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indica que, além das 32 hidrelétricas em operação na Amazônia, há 31 usinas em alguma etapa de planejamento. Outros 57 pontos da região já foram avaliados como altamente promissores em potencial energético e podem abrigar as novas  hidrelétricas do país no futuro. São projetos que podem ou não vir a se concretizar, a depender de estudos de viabilidade, interesse de investidores e vontade política.

Entre investidores privados, há sinais de resistência, justamente pelo dano à imagem que um projeto como Belo Monte pode causar. “Dificilmente um banco ou uma empresa privada iria se expor com empreendimentos dessa natureza, porque já há um debate acumulado sobre o papel do capital na preservação da Amazônia”, observa Kishinami, do ICS.

Capital chinês impulsiona hidrelétricas

Apesar da crescente cautela empresarial, ainda há investimentos pesados em hidrelétricas na Amazônia vindos do Brasil e exterior, como de Portugal, Espanha, Canadá, Alemanha, Itália e França. Empresas chinesas têm aportes em seis das 63 usinas que já estão operando ou são planejadas, como mostra o levantamento. O interesse chinês no setor energético brasileiro vinha crescendo, mas a pandemia freou os negócios, que agora podem reaquecer.

Interesse chinês nas hidrelétricas

Das 63 usinas que já estão operando ou são planejadas, seis são chinesas, de acordo com o levantamento do Diálogo Chino.

Um exemplo vem de Rondônia, onde uma negociação, paralisada desde 2019, para a aquisição da usina de Santo Antônio, no Rio Madeira, pela chinesa State Power Investment Corporation (Spic), está sendo retomada. A informação é do presidente da Câmara de Comércio Brasil-China, Charles Andrew Tang. “Ficou muito mais difícil viajar, e o olho no olho é importante. Mas há uma segunda razão para o ritmo mais lento dos negócios. O governo não tem sido mais amigável com os chineses”, alfineta o executivo sobre a indisposição do governo Bolsonaro com relação à China.

Já o histórico dos dois principais candidatos ao pleito de 2022 indica que ambos podem apostar no modelo, que parecia esquecido. O atual presidente Jair Bolsonaro — que sofreu escrutínio internacional em razão das taxas recordes de desmatamento na Amazônia e do desmonte de órgãos de fiscalização ambiental — foi quem deu o primeiro passo,  retomando o debate do potencial hidrelétrico da região. “Além de destruir tudo, esse governo vem anunciar mais usinas na Amazônia”, revolta-se Antônia Melo.

O projeto de grandes hidrelétricas na Amazônia não só não acabou como eu desconfio que pode voltar até maior em um eventual governo Lula

Seu principal oponente, Lula, que aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, foi o responsável por começar a erguer as grandes hidrelétricas na floresta. Um movimento que, na visão de analistas, pode ser retomado como parte de uma estratégia para impulsionar a economia, especialmente diante da crise recente que levou milhares de brasileiros de volta à miséria. “O projeto de grandes hidrelétricas na Amazônia não só não acabou como eu desconfio que pode voltar até maior em um eventual governo Lula”, aposta Kishinami.

“Hidrelétricas mobilizam muito capital, e pega bem para um governo dizer que está inaugurando a segunda ou terceira maior hidrelétrica do mundo”, observa Roberto Schaeffer, professor de planejamento energético na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O problema é que a Amazônia brasileira tem péssimas condições para a construção de usinas, não apenas pelos impactos socioambientais inerentes a uma obra de grande porte no meio da floresta tropical, mas também porque, como a região é muito plana, qualquer reservatório exige o alagamento de áreas enormes.

“O impacto socioambiental da hidrelétrica é incomparável a qualquer outro tipo de energia”, afirma Philip Fearnside, pesquisador do Inpa, um instituto de pesquisas sobre a Amazônia, e estudioso do tema. Entre os principais impactos ambientais das hidrelétricas, está a emissão de gás metano, fruto da decomposição dos restos de troncos e plantas que ficam no fundo dos reservatórios.

Devido a esse efeito adverso, algumas hidrelétricas — como Balbina, no Amazonas — se tornaram mais poluentes do que a própria termelétrica a carvão. “O mito da hidrelétrica como fonte de baixa emissão cai por terra”, afirma Gustavo Pinheiro, do ICS.

Mudanças climáticas são decisivas

 As mesmas mudanças climáticas que reforçam a importância de manter a floresta em pé — e por isso desencorajam grandes obras de infraestrutura na Amazônia — colocam em xeque a viabilidade das próprias hidrelétricas, ao impor ao Brasil secas cada vez mais frequentes e prolongadas.

Sem chuvas, falta água para girar as turbinas e gerar energia, especialmente nas chamadas hidrelétricas a fio d’água, aquelas que não têm reservatório para acumular água para o período seco, ou nas quais esse reservatório é muito pequeno. É o caso de Belo Monte, projetada para ser a hidrelétrica com maior capacidade de geração de energia do país, com 11.233 MW. Ela, no entanto, chegou a operar com apenas meia das 18 turbinas nos meses de estiagem, gerando, segundo o ONS, menos de 400 MW por mês — 3% de sua capacidade.

Abaixo da capacidade


De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Belo Monte operou com apenas 24% da capacidade, levando-se em conta a média mensal dos últimos cinco anos. E ela não é a única: as hidrelétricas de Tucuruí, Jirau e Santo Antônio também tiveram um baixo desempenho, com a média de capacidade de 40%, 49% e 55% respectivamente.

Considerando a média mensal dos últimos cinco anos, Belo Monte operou, ainda de acordo com o ONS, com apenas 24% da capacidade, um problema que afeta outras usinas da Amazônia. Na hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, essa média foi de 40%. Jirau e Santo Antônio, ambas no rio Madeira, operaram em média com 49% e 55% da capacidade, respectivamente.

“Na última década, principalmente, as hidrelétricas não têm conseguido entregar toda a energia contratada por falta de água. Uma explicação é que muitas hidrelétricas perderam o rendimento desde que foram construídas, e a outra é que, em algumas bacias, houve uma redução de chuvas”, explica Kishinami, do ICS.

A redução do tamanho do reservatório de Belo Monte, de 1.225 quilômetros quadrados, no projeto original, para 478 km², na obra que foi levada a cabo, foi essencial para diminuir a resistência da sociedade civil ao mega-empreendimento. Por outro lado, tornou a usina mais dependente da água das chuvas.

Em pouco tempo, Belo Monte se mostrou um erro. Mas não foi por falta de aviso. Em 2015, o estudo Brasil 2040, encomendado pelo próprio governo Dilma, alertava para “quedas na vazão dos reservatórios das hidrelétricas” com “impactos enormes” para o Sistema Interligado Nacional, “levando a uma desestruturação do sistema e probabilidades de déficit inaceitáveis”.

Do ponto de vista técnico, a hidrelétrica no Brasil não tem mais lugar

Seis anos depois, em 2021, a pior seca dos últimos cem anos levou o Brasil ao menor nível de uso de energia hidrelétrica da sua história. Para evitar um apagão, o governo federal foi obrigado a acionar as termelétricas, uma fonte de energia altamente poluente e mais cara, que resultou no aumento da conta de luz do brasileiro.

“A realidade se impõe, a natureza não respeita decisões políticas, os cenários do Brasil 2040 estão se materializando e, inclusive, piores do que cientistas previam. Acho que isso inviabiliza as usinas”, avalia Pinheiro.

“Do ponto de vista técnico, a hidrelétrica no Brasil não tem mais lugar”, concorda Schaeffer, da UFRJ, que coordenou o estudo Brasil 2040.

Usinas reversíveis e de reserva

Uma opção para o futuro das hidrelétricas é apostar no modelo de usina reversível, em que a água não utilizada no período chuvoso é armazenada em um segundo reservatório. Depois, quando há menor oferta de água ou maior demanda por energia, a água reservada abastece a usina.

Ajustes no sistema de geração e distribuição também podem ajudar a desanuviar o horizonte. Especialistas são unânimes em apontar que é preciso ampliar a presença de usinas eólicas e solares na matriz energética brasileira — atualmente, essas fontes respondem por menos de 13% da eletricidade produzida no país.

“Há um espaço enorme para as renováveis não convencionais, como usinas eólicas e solares”, observa Barata, ex-diretor do ONS. “Estudos mostram que até 40% do nosso consumo pode vir desse tipo de renováveis”.

Indigenous people with signs saying "Xingu against Belo Monte".
Indígenas do Xingu protestam contra o enchimento do reservatório da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, em 2015, antes de sua inauguração (Imagem: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Somado a isso, a tecnologia dessas usinas barateou nos últimos anos. De quebra, ampliar a presença de eólicas e solares na geração brasileira permitiria promover mudanças no uso das hidrelétricas. Hoje, elas são a principal fonte de energia no Brasil, respondendo por 58% da matriz. Mas como trabalham de forma permanente, não conseguem armazenar água para os períodos de maior demanda e seca.

“Os reservatórios das hidrelétricas são uma baita de uma bateria dentro do sistema, mas hoje é impossível eles ficarem cheios porque estão gerando energia o tempo todo”, aponta Kishinami.

A equação é simples: estimular a dupla eólica + solar quando houver abundância de sol e vento e, em momentos em que a demanda superar a geração, ligar as turbinas das hidrelétricas. Hoje, esse papel de socorrer o sistema cabe às termelétricas.

“Além de tudo, a termelétrica pode demorar vários dias até chegar a sua capacidade máxima. Mas na hidrelétrica, basta abrir as comportas que, em poucos segundos, está gerando energia intensamente”, compara Kishinami.

Para esse formato funcionar, seria necessário reformular os contratos com as hidrelétricas e o próprio sistema de distribuição, dando-lhe maior capilaridade.

Segundo Roberto Schaeffer, da UFRJ, “um sistema bem conectado significa que, se neste momento tem sol na Bahia, tem muito vento em Pernambuco, todos os outros lugares [hidrelétricas] devem parar de gerar energia para guardar água para o momento em que tivermos menos vento ou sol”.

Várias dessas sugestões constam do Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, um estudo produzido por técnicos do governo federal para nortear as decisões da União no setor. Concluído em janeiro, o documento prevê a redução na participação das hidrelétricas na matriz brasileira (de 58%, em 2021, para 45%, em 2031), compensada pela expansão das fontes eólica e solar.

De qualquer forma, o debate não deve mais ser feito apenas do ponto de vista da geração energética. “É sobre o papel da Amazônia para o país”, diz Kishinami. “Não podemos esquecer que esse tipo de empreendimento coloca em risco o patrimônio socioambiental e leva à extinção de centenas de línguas”.