Justiça

América Latina exige respeito a seus direitos. Será que a China vai dar ouvidos?

China enfrenta revisão da ONU enquanto ONGs alegam violações “sistemáticas” dos direitos humanos
<p>Construção da represa Teles Pires no Brasil (imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/125816678@N05/23679888138/in/photolist-C5vBKq">Jeso Carneiro</a>)</p>

Construção da represa Teles Pires no Brasil (imagem: Jeso Carneiro)

Alguns países vêm enfrentando um dilema constrangedor em seu desesperado afã de fazer negócios com a China.

Para não correrem o risco de perder bilhões de dólares em investimentos e ofender Pequim, acabam ignorando as violações dos direitos humanos cometidas pela China. Os países chegam até mesmo a adular as instituições chinesas, das quais arrancam elogios pelo “pragmatismo” de conseguir ajudá-las a contornar essas questões.

Apesar disso, os abusos chineses dos direitos humanos vêm sendo discutidos por outros grupos, como, por exemplo, na Revisão Periódica Universal (RPU) da ONU, cuja próxima sessão será realizada em Genebra, Suíça, no dia 6 de novembro. A RPU é um mecanismo de revisão por pares que examina as práticas de direitos humanos de cada estado-membro da ONU a cada cinco anos. No mês que vem, será a vez da China enfrentar a sua terceira revisão. Dessa vez, o foco será nas responsabilidades do país no exterior.

“As revisões tinham como objetivo original avaliar se um conjunto de instrumentos de proteção dos direitos humanos estava sendo implementado em nível local”, disse Paulina Garzón, chefe da Iniciativa de Investimentos Sustentáveis China-América Latina. Garzón trabalhou com organizações latino-americanas da sociedade civil para elaborar um relatório investigando as violações de direitos humanos por parte de empresas chinesas na região

“É cada vez maior o número de teorias que afirmam que os países têm a responsabilidade de implementar esses instrumentos em todos os locais onde as suas empresas atuam no mundo,” explicou Garzon. “Isso vai ser parte da avaliação este ano”.

São três os documentos que farão parte da revisão: um relatório nacional apresentado pela China; uma compilação de informações da ONU, preparada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH); e um resumo de todos os relatórios apresentados pelas ONGs.

Relatórios da América Latina

As organizações da sociedade civil da América Latina entregaram três relatórios para integrar a revisão da China. Elas denunciaram uma enorme variedade de violações dos direitos humanos durante a execução de projetos chineses, principalmente nos setores de infraestrutura e extrativismo.

Um grupo composto por 21 ONGs da Argentina, Brasil, Equador, Bolívia e Peru analisou 18 projetos que foram geridos por 15 consórcios empresariais chineses ligados aos setores de mineração, petróleo e energia hidrelétrica. Os projetos eram em reservas indígenas ou em áreas protegidas de forma nominal. As ONGs descobriram que houve violação dos direitos humanos em todos os projetos.

“Há uma violação sistemática dos direitos de participação e consulta prévia, com despejos forçados, destruição de áreas que tem grande importância cultural e natural e a criminalização de líderes comunitários”, disse Sofía Jarrin, coordenadora de meio ambiente e povos indígenas do Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES) do Equador.

Quase dois terços dos projetos que foram analisados ficam no Equador. O relatório chamou atenção para o fato de que o mesmo padrão se repete em todos os projetos: não são adotadas as medidas necessárias para cumprir as “obrigações extraterritoriais” da China, as quais existem para proteger os direitos humanos nos países de acolhimento, de acordo com as leis locais. Isso tudo está descrito no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A China assinou o pacto em 1998, mas não o ratificou, o que significa que ele não foi integrado à sua legislação.

Um dos projetos que foi mencionado no relatório é o da mina de cobre El Mirador, que fica na província de Morona-Santiago, no sudeste do Equador. O projeto vem causando conflitos violentos entre a mineradora chinesa Ecuacorriente S.A. (EXSA), de propriedade do consórcio chinês CRCC-Tongguan, e a comunidade indígena Shuar.

Os membros da comunidade indígena foram removidos à força da área onde a mina foi criada. O conflito se intensificou e culminou com o assassinato do líder indígena Jose Isidro Tendetza Antun. Seu corpo tinha sinais de tortura.

A comunidade alegou que o seu direito de ser consultada sobre os projetos de desenvolvimento que planejam ocupar terras ancestrais – conforme consagrado na legislação equatoriana – foi violado pela mina, avaliada em US$ 1,4 bilhão.

O relatório também questionou a crescente dependência dos países latino-americanos nos investimentos chineses, o que enfraqueceria a determinação dos governos de garantir o cumprimento das próprias leis quando há um conflito entre os investimentos e a legislação.

Os projetos violaram os direitos dos povos Shuar e outros 455 grupos indígenas que vivem na região da bacia amazônica

Ao ser peticionado pela mineradora Ecuacorriente, o governo equatoriano mandou encerrar a ONG Acción Ecológica, que defendia a comunidade Shuar no conflito em El Mirador. A decisão foi condenada pela comunidade internacional.

Um outro relatório foi apresentado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA). A COICA foi ao Equador para avaliar a mina de El Mirador e outros quatro projetos que foram executados por empresas chinesas – o projeto de mineração Arco Minero, na Venezuela; o bloco de petróleo El Nogal, na Colômbia; o projeto de petróleo Lote 58, no Peru; e as barragens no rio Teles Pires, no Brasil.

Segundo o relatório, os projetos violaram os direitos dos povos Shuar e outros 455 grupos indígenas que vivem na região da bacia amazônica, uma vez que foram executados sem o consentimento dos indígenas. A COICA também afirmou que esses projetos ameaçavam o direito à vida e a um ambiente saudável e equilibrado.

A RPU avalia os impactos da China nos direitos humanos de outras partes do mundo, mas a ONG Serviço Internacional para os Direitos Humanos (ISHR), em parceria com a Rede Jurídica do Mekong (MLN), apresentou um relatório da América Latina. O relatório encontrou uma violação na mina de cobre Las Bambas, no Peru, onde as comunidades não foram consultadas depois que o projeto original sofreu mudanças.

A mina fica na região de Apurimac, no sul do Peru, e a nova proprietária, China MMG, não consultou a comunidade local sobre as revisões que fez no projeto. Na proposta original, os materiais seriam transportados por oleoduto, mas depois decidiu-se usar as estradas locais. O uso de caminhões gerou poluição sonora e muita poeira, o que provocou a revolta da população local, paralisando o projeto. Esses tipos de conflito prejudicaram as relações entre o Peru e a China.

“Essas violações que as comunidades locais vêm sofrendo nas mãos das operações chinesas têm uma natureza muito política e não são abordadas em nível nacional”, disse Sarah Brooks, gerente de programas da ISHR, referindo-se à recusa do governo chinês de participar de discussões significativas sobre direitos humanos.

“O governo chinês está ciente dessas violações. Não tem como eles fingirem que as suas empresas não são suas representantes no exterior. Ao mesmo tempo, não sabem o que fazer. Eles não estão dispostos a adotarem uma postura mais aberta e consultiva e não colaboram com a sociedade civil dos países anfitriões. Seus recursos para resolver o problema são limitados”, acrescentou ela.

Sensibilidade política

Como Brooks aponta, a RPU é um processo que tem sensibilidade política. A famosa ativista chinesa de direitos humanos, Cao Shunli, acabou sendo presa ao tentar viajar para Genebra para participar da última rodada da RPU da China, em 2013. Meses depois, ela morreu na cadeia.

Se as discussões sobre direitos humanos forem sempre encerradas assim, que outras táticas as comunidades poderão usar para fazer a China ouvir suas preocupações?

“O governo chinês e algumas empresas do país começaram a reconhecer que investir em negócios mais responsáveis faz sentido financeiro”, disse Lowell Chow, pesquisador sênior e representante da Ásia Oriental no Business & Human Rights Resource Center. Ele acrescentou: “As disputas com trabalhadores e comunidades podem atrasar as operações e custar muito dinheiro”.

A interrupção das operações na mina de Las Bambas custou cerca de US$ 6 milhões, segundo a associação de indústria Sociedade Nacional Peruana de Mineração, Petróleo e Energia (SNMPE).

O governo chinês, junto com associações da indústria, delineou os princípios de responsabilidade que nortearão os investimentos estrangeiros. No entanto, a aderência ainda é voluntária e as repercussões são escassas nos casos de não observância.

Chow disse que isso é um bom primeiro passo, mas ainda há muito trabalho pela frente em termos de implementação: “essa é uma boa oportunidade para as empresas chinesas incorporarem os princípios de responsabilidade e a liderarem pelo exemplo, sendo proativas no seu envolvimento com as comunidades anfitriãs”.

Wawa Wang, diretora financeira do CEE Bank Watch, concorda que a implementação dos princípios é fundamental, mas, segundo ela, isso só vai acontecer quando as empresas e os investidores forem mais transparentes.

“Uma forma de avançar é começar a divulgar as informações sociais e ambientais dos projetos, conforme exigido pelos princípios de responsabilidade”, disse Wang. Até o momento, os investidores chineses não têm falado muito a respeito dos impactos dos seus projetos sobre a biodiversidade, nem sobre as mudanças climáticas ou o deslocamento de comunidades. O silêncio deles tem sido “inquietante”.

Os bancos chineses começaram a formar parcerias com bancos regionais de desenvolvimento para cofinanciar projetos na América Latina. Isso significa, pelo menos em teoria, que bancos como o Banco Interamericano de Desenvolvimento poderão compartilhar os conhecimentos e experiências que adquiriram localmente com os bancos chineses, oferecendo assistência técnica para ajudar a prevenir conflitos.

“O objetivo é desenvolver salvaguardas que sejam palatáveis para os chineses e que, ao mesmo tempo, tratem das práticas de transparência, prestação de contas e due diligence ambiental e social”, disse Wang.

Outro obstáculo é que mesmo que a China adote diretrizes para proteger os direitos humanos em suas operações no exterior, ela não tem a jurisdição legal para punir ofensas.

O material que foi entregue ao Alto Comissariado pela Rede Jurídica do Mekong e pelo Serviço Internacional pelos Direitos Humanos esclareceu que “a lei chinesa tem escopo limitado e não se aplica às empresas chinesas além das fronteiras da China”.

No entanto, a China deve começar a adotar os padrões internacionais de direitos humanos e a integrá-los na legislação que rege os seus investimentos estrangeiros, conforme recomendação da Rede Jurídica do Mekong.

Expectativas

Na primeira RPU, em 2009, a China recebeu mais de 100 recomendações, das quais aceitou 42 e rejeitou 50. Cinco anos depois, recebeu mais 252 recomendações, das quais aceitou 204 e rejeitou 48. Entre as aceitas, a China declarou que 31 já estão implementadas e oito estão em processo de implementação.

Em resposta à última RPU, a China também apresentou um relatório descrevendo todas as ações que tomou para proteger os direitos humanos. O governo destacou que, até abril deste ano, já tinha aprovado 28 novas leis relacionadas aos direitos humanos e que havia divulgado e implementado o seu terceiro Plano de Ação Nacional para os Direitos Humanos em 2016.

A China reconheceu que “ainda enfrenta muitas dificuldades e desafios na promoção e na defesa dos direitos humanos” e prometeu ampliar as proteções.

Segundo Brooks, na próxima RPU a China vai aceitar um número maior de recomendações. “Principalmente nas áreas em que a China sente que já estão fazendo um bom trabalho ou que têm compromisso internacional”, disse ela.

Para Garzón, a legitimidade do papel da China na ONU está em jogo por causa da última revisão: “O governo precisa provar que tem a capacidade e a vontade de agir em defesa dos direitos humanos. Dessa vez, não tem como a China fugir de desempenhar seu papel”.

Enquanto isso, Jarrin afirmou que as ONGs querem conversar com a China e estabelecer regras claras para os projetos chineses que serão executados na América Latina. A solução parece passar por uma melhor fiscalização do cumprimento das leis de direitos humanos e das regulamentações locais. Essa seria uma forma de enviar um sinal claro às empresas e aos investidores chineses:

“A parte que vem agindo com maior fraqueza são os estados da América Latina, mas sabemos a influência e o peso que um ator como a China tem”.