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Venezuela e China: a tempestade perfeita

Especialistas veem grandes erros nos negócios entre China e Venezuela. Repeti-los seria injustificável
<p>Opositores de Maduro saíram às ruas para protestar em inúmeras ocasiões (foto: WikiCommons)</p>

Opositores de Maduro saíram às ruas para protestar em inúmeras ocasiões (foto: WikiCommons)

A já volátil situação política na Venezuela se agravou esta semana quando o líder da oposição, Juan Guaidó, declarou-se presidente interino do conflituoso país sul-americano. Guaidó era o presidente da Assembleia Nacional quando, em 2017, seu poder legislativo foi transferido para um novo Supremo Tribunal de Justiça, integrado por legisladores leais ao líder agora em defesa de seu cargo, Nicolás Maduro. Agora, a jogada do oposicionista provoca intensa turbulência interna e divisões internacionais.

Como Guaidó era líder da antiga legislatura, confinada por Maduro, os Estados Unidos, Canadá e grandes economias latino-americanas, como Brasil, Argentina, Colômbia, Peru e Chile, reconheceram-no como o legítimo líder da Venezuela. Enquanto isso, a Rússia condenou o que disse ser uma tentativa de golpe, e outros países, como México, Uruguai e Alemanha, pediram uma negociação política pacífica que possa levar a novas eleições.

US$60 bilhões


É o valor dos empréstimos da China para a Venezuela

Mas é a China o país mais comprometido. Os chineses emprestaram mais de 60 bilhões de dólares para a Venezuela desde o início dos anos 2000. Em jogo, eles e outros apoiadores da Venezuela dizem, estão a soberania e a governança livre de interferências internacionais.

Em uma típica declaração sem comprometimentos, Hua Chunying, portavoz do Ministério das Relações Internacionais, disse: “nós chamamos todas as partes envolvidas a serem calmas e racionais, e buscarem uma solução política dentro da constituição venezuelana por meio de um diálogo pacífico. A China apoia os esforços do governo da Venezuela para proteger a soberania nacional, a independência e a estabilidade. A China sempre aderiu ao príncípio de não-interferência e opõe-se a qualquer intervenção externa em questões internas da Venezuela”.

A China oferece apoio político e financeiro à Venezuela durante uma penosa e demorada derrocada a uma crise econômica e humanitária sem precedentes. Mas a recusa de Pequim em reconhecer o papel que seio apoio diplomático e seus empréstimos tiveram na vagarosa deterioração do país traz valiosas lições sobre tomadores de decisões chineses, e seus parceiros internacionais. Seria tolice ignorá-las.

Tragédia anunciada

Na primavera de 2012, eu recebi um convite do maior think tank chinês dedicado à America Latina, o Instituto de Estudos Latino-americanos (ILAS, baseado em Pequim e parte da Academia Chinesa de Ciências Sociais), para ministrar uma palestra sobre os riscos políticos da América Latina. Achei a escolha do tema bastante interessante devido às crescentes preocupações relacionadas à “Primavera Árabe” e às ameaças que ela representaria para os interesses comerciais da China em regiões como a África e o Oriente Médio. Na mesma época, o relacionamento financeiro e diplomático entre a China e Hugo Chávez, da Venezuela – baseado no comércio de petróleo –, despertou a curiosidade de alguns legisladores chineses e dos pesquisadores do think tank. Eu ainda não tinha explorado os riscos políticos da Venezuela, mas foi o país que escolhi para a minha palestra.

A Venezuela passou por uma crescente polarização social e política, pela politização e má gestão do setor de petróleo, e testemunhou a deterioração do estado de saúde de Chávez. Para qualquer investidor ou credor, incluindo a China, esse cenário evidenciava riscos políticos formidáveis, superiores aos de qualquer outro país do hemisfério ocidental. Inusitadamente, os pesquisadores do ILAS concluíram que a Venezuela não afetaria negativamente os interesses econômicos e diplomáticos da China, mesmo reconhecendo as tendências preocupantes do país. A lógica deles era simples: a Venezuela possuía bastante petróleo e a China precisava de bastante petróleo; a China também tinha muito dinheiro para comprar esse petróleo.

Nicolás Maduro durante a posse de seu polêmico segundo mandato em 10 de janeiro de 2019. (foto: Presidencia de El Salvador)

Seis anos depois, Nicolás Maduro era o sucessor de Chávez e completava a segunda semana do seu segundo mandato, que foi veementemente contestado, e o país era assolado por profundas crises econômicas e humanitárias. Uma das questões mais importantes da época – e também muito ignorada – era descobrir como a China deveria gerir o risco político da Venezuela e como o relacionamento afetaria os seus esforços mais amplos para ser vista mundialmente como uma aliada do desenvolvimento.

O relacionamento entre os países sempre foi marcado por superlativos: a Venezuela é dona das maiores reservas de petróleo do mundo, a China é a maior importadora de petróleo e emprestou mais dinheiro para a Venezuela do que qualquer outro país. Também foi marcado por fortes personalidades – pelo menos do lado venezuelano. Mas há muito o relacionamento perdeu o brilho e se tornou um embaraçoso desastre. O aprofundamento da crise venezuelana vem sendo anunciado nas manchetes do mundo inteiro e, mesmo assim, a China não reconhece como contribuiu para esse desfecho, tampouco buscou uma forma de se manifestar a respeito das dificuldades que vêm sendo enfrentadas por um dos seus aliados mais próximos.

Como surgiu esse relacionamento disfuncional? O que isso nos diz sobre os laços da China com a América Latina, ou mesmo sobre os esforços notórios do país asiático para estimular o desenvolvimento global e a cooperação Sul-Sul?

Uma tempestade perfeita

Na superfície, o relacionamento entre a China e a Venezuela segue o mesmo padrão dos outros: na primeira década do século XXI, os chineses estabeleceram laços financeiros com países da América do Sul para o comércio de matérias-primas. Entre 2003 e 2013, a China liderou um boom no comércio de commodities, o que resultou na intensificação do fluxo comercial da América Latina para a China, principalmente nos setores agrícola (soja), de mineração (cobre e minério de ferro) e de energia (petróleo). O país rapidamente se tornou o principal parceiro comercial de países como o Brasil, Chile e Peru. A Venezuela, que abriga as maiores reservas de petróleo do mundo, parecia ser a parceira perfeita para o país que era o maior importador de petróleo bruto do mundo.

A Venezuela entrou em crise, mas a China continuou falando sobre a “complementaridade” natural do relacionamento entre eles, pelo no seu discurso oficial, e isso até gerou um pouco de estabilidade em meio às tempestades. A China mantém laços com muitos países ricos em commodities, mas a verdade é que, desde o início, seu relacionamento com a Venezuela era diferente dos outros. Chávez e o “superbanco” chinês, o Banco de Desenvolvimento da China (BDC), criaram juntos uma parceria diplomática e um modelo de empréstimos pagos com petróleo. O objetivo era mostrar os benefícios de uma cooperação Sul-Sul, oportunizada pela ascensão da China, que se tornara um ator global. No entanto, os resultados servem como um alerta sobre as consequências inesperadas do excesso de orgulho e autoconfiança.

Você sabia que…?


Chávez tomou empréstimos de 40 bilhões de dólares em troca de petróleo

Chávez enxergava a China como uma parceira essencial que o ajudaria nos seus esforços de controlar os abundantes recursos de petróleo da nação e na implementação da sua radical agenda doméstica e internacional. Expandir as exportações venezuelanas para a China não só tinha tudo a ver com a retórica de diversificação adotada por Chávez, que queria se tornar menos dependente dos EUA, mas também proporcionou uma fonte estável de recursos econômicos e políticos, que nenhum outro credor internacional poderia ou mesmo teria interesse em proporcionar – graças aos acordos com o BDC, de empréstimos pagos com remessas de petróleo (que totalizaram 40 bilhões de dólares antes da morte de Chávez). Por refletir a boa-fé socialista e revolucionária da China (por mais desbotada ou imaginária que esta fosse), Chávez também encontrou uma aliada conveniente, embora um tanto reticente, para a sua Revolução Bolivariana, tanto em casa como no exterior.

O relacionamento comercial e financeiro que a China usufruía com a Venezuela parecia, à primeira vista, com qualquer outro relacionamento com países latino-americanos rico em commodities, mas ele logo se transformaria em algo bem diferente. Em vez de comprar o petróleo venezuelano, como a Índia tinha feito, a estatal chinesa BDC assinou uma série de acordos multibilionários visando a troca de empréstimos por petróleo. Esses empréstimos representam, até hoje, a maior transação financeira que a China já realizou com outro país.

O entusiasmo do BDC de querer emprestar dinheiro para a Venezuela durante os anos em que a China esteve sob a liderança de Chen Yuan, o presidente aparentemente intocável do Partido Comunista da China, pode ser explicado, em parte, pelo desejo da instituição de se estabelecer como a principal financiadora da China para acordos globais do setor de energia. Não foi coincidência que os maiores empréstimos, incluindo um de 20 milhões de dólares em 2010, foram realizados quando a liquidez era ampla no sistema financeiro chinês em resposta à crise financeira global.

Chávez e o BDC convenceram-se de que a parceria entre eles era mais do que viável: era econômica e politicamente astuta. Porém, mesmo em 2012, já crescia uma certa inquietação em Pequim a respeito da Venezuela, incluindo preocupações sobre o delicado estado de saúde de Hugo Chávez. Chávez faleceu em 2014 e seu sucessor não inspirava tanta confiança na China. Além disso, o preço global do petróleo tinha sofrido uma grande queda. Isso tudo culminou em um cenário desastroso para a população da Venezuela e teve o efeito de enfraquecer, em todos os sentidos, o interesse que a China nutria pelo relacionamento.

A produção de petróleo na Venezuela entrou em colapso e desde então o governo não conseguiu cumprir as obrigações contratuais originais do empréstimo de 60 milhões de dólares. O país se tornou inadimplente e passou a enviar um número menor do que o acordado de remessas de petróleo para a China. Essa crise na produção de petróleo na Venezuela contribuiu com um aumento nos preços globais, o que aumentou as despesas da China com a importação de petróleo. De quase qualquer ângulo que olhamos, constatamos que o relacionamento entre a China e a Venezuela tornou-se completamente disfuncional para os governos, negócios e cidadãos de ambos os países.

Lições mais amplas

Não é de surpreender que as autoridades chinesas e venezuelanas não reconheçam publicamente que o relacionamento falhou em atender às altas expectativas que os países estabeleceram décadas atrás. A China diminuiu drasticamente o escopo dos seus empréstimos nos últimos anos, mas a cada novo sinal de declínio na Venezuela, os lideres da política externa chinesa fazem aquelas declarações padrão sobre terem esperança em uma futura “estabilidade” da Venezuela. A China tem se recusado a desempenhar um papel público nos esforços regionais da América Latina, como por meio do Grupo Lima, para ajudar a Venezuela a encontrar um caminho mais sustentável.

A China lavou as mãos da crise que ela primeiro ajudou a criar, e depois resolveu que não ia ajudar a solucionar.

Além do que deu errado entre a China e a Venezuela, o relacionamento entre os países tem implicações ainda mais amplas, apesar de pouco apreciadas. A Venezuela claramente serviu como um teste que revelou o quanto os pesquisadores chineses, bem como as autoridades do governo e do mundo empresarial, entendem, ou não entendem, sobre os riscos políticos na América Latina. Havia uma forte confiança, por parte da China, de que a relação complementar estabelecida entre o líder supremo da Venezuela e um dos maiores bancos estatais chineses, o BDC, através dos acordos de petróleo, era inabalável. Ambas as partes acreditavam que o acordo possibilitaria à China um fluxo constante de petróleo e que os empréstimos concedidos seriam pagos sem sobressaltos. Presumiam imunidade contra as vicissitudes econômicas ou políticas da Venezuela.

Todas estas suposições foram destruídas na Venezuela. Mesmo assim, a China decidiu apoiar outros países na África e na Ásia que são abundantes em recursos, efetivamente trilhando o mesmo caminho. É difícil encontrar um parceiro como a Venezuela de Chávez, mas o Zimbábue de Mugabe ou o Camboja de Hun Sen guardam algumas semelhanças. O relacionamento que a China construiu com a Venezuela, baseado em dívidas massivas, deve servir de alerta para o mundo agora que a China busca expandir seu plano de infraestrutura, a Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative, como é mais conhecido, em inglês).

Últimas reflexões

Já se passaram mais de seis anos desde a minha apresentação no ILAS e, de lá para cá, venho escrevendo, palestrando e ensinando sobre o relacionamento entre a China e a Venezuela, que mais parece um acidente de trem em câmera lenta. Os Estados Unidos certamente cometeram erros muito maiores na América Latina e em outros lugares, mas alguma coisa precisa mudar. A China está trabalhando para mudar a governança climática no próprio país e no exterior, então precisa engajar a Venezuela e pensar em formas inovadoras de ajudar o país explorar de forma sustentável os recursos petrolíferos. Como a China vem se tornando uma das maiores financiadoras do setor de energia e infraestrutura, uma avaliação mais honesta da sua experiência na Venezuela é necessária.

Ao refletir sobre os anos que passei pesquisando e escrevendo sobre a China e a Venezuela, além dos anos que passei lecionando em uma universidade chinesa (eu deixei a Universidade Tsinghua no verão passado), acho surpreendente constatar que, apesar de ter oferecido o que interpretei como críticas construtivas, não fui desafiado uma única vez, seja direta ou indiretamente. Na verdade, o oposto aconteceu, mesmo nas conferências de think tanks, entrevistas concedidas à mídia e em outros foros. Isso pode parecer pouco provável uma vez que a China ganhou uma merecida reputação de ser sensível a críticas relacionadas às suas políticas externas e à ausência de liberdade intelectual nas suas instituições públicas.

A verdade é que todos sempre me ouviram educadamente, mas as autoridades da política externa e dos bancos da China fariam bem em adotar uma abordagem mais sensível e empática em relação à América Latina e outras regiões em desenvolvimento. Se fizerem isso, pode ser que evitem cometer os mesmos erros que outras potências mundiais cometeram.

Uma versão deste artigo foi publicada originalmente na ReVista, the Harvard Review of Latin America. Ele é republicado aqui com permissão.