Comércio & Investimento

A crise política venezuelana chega à China

Disputa de representantes da Venezuela leva BID a cancelar reunião anual
<p>O reconhecimento pelo BID do economista Ricardo Hausmann como representante da Venezuela complicou a postura cuidadosa da China sobre a atual crise política na Venezuela (foto: <a href="https://www.flickr.com/photos/worldeconomicforum/8679677050">World Economic Forum</a>).</p>

O reconhecimento pelo BID do economista Ricardo Hausmann como representante da Venezuela complicou a postura cuidadosa da China sobre a atual crise política na Venezuela (foto: World Economic Forum).

Na ocasião de seu 60° aniversário e pela primeira vez, o Banco Inter-Americano de desenvolvimento (BID) planejava realizar sua reunião anual na China — até que o evento foi dramaticamente cancelado na sexta-feira à noite.

A cúpula, que estava planejada para iniciar na terca-feira, na cidade de Chengdu, província de Sichuán, foi suspensa, quando a pergunta sobre quem deveria representar a Venezuela, em meio à aguda crise política do país, foi levada à frente, apresentando um desafio para a diplomacia chinesa.

Na semana passada, o BID havia votado para substituir o representante de Nicolás Maduro pelo economista Ricardo Hausmann, que foi apresentado pelo líder da assembleia nacional, Juan Guaidó, que havia se autodeclarado presidente em janeiro. Ao designar Hausmann, o BID se tornara a primeira instituição financeira multilateral a oficialmente reconhecer um enviado de Guaidó.

A decisão criou de imediato um dilema diplomático para a China, que é membro não mutuário do banco desde 2009, e tem tentado manter uma posição neutra na crise política na Venezuela, um dos 48 países membros do maior banco multilateral da América Latina.

Hausmann: ex-ministro do Planejamento, atual crítico de Maduro

O ponto central do encontro teria sido a assembleia de governadores do BID no fim da semana, que incluía os ministros da Fazenda ou os presidentes dos bancos centrais dos países membros. Hausmann é crítico ferrenho de Maduro. Ele foi ministro do Planejamento durante o governo de Carlos Andrés Pérez nos anos 1990 e economista-chefe do BID por seis anos.

Hausmann tem criticado as operações internacionais da China e seus pacotes de empréstimos lastreados por petróleo. Em um artigo publicado pelo Project Syndicate em janeiro, ele escreveu:

“Em princípio, as poupanças gigantescas da China, seu know how de infraestrutura e sua vontade de oferecer empréstimos poderiam ser muito positivas para os países em desenvolvimento. Desgraçadamente, como sofreram na própria carne o Paquistão, o Sri Lanka, a África do Sul, o Equador e a Venezuela, o financiamento para o desenvolvimento oferecido pela China costuma provocar uma embriaguez econômica cheia de corrupção, seguida de uma desagradável ressaca financeira (e às vezes política)”.

Embora houvesse tensão sobre a presença de Hausmann nos bastidores, o desconforto cresceu rapidamente. Segundo a Reuters, a China teria proposto ao BID que não convidasse representantes de nenhum dos lados com o objetivo de “despolitizar” o encontro. A agência de notícias também afirmou que, se Hausmann não conseguisse o visto para ir à reunião, os Estados Unidos – que mantêm fortes discordâncias com a China em temas comerciais – poderia se retirar.

Yan Shuang, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, disse ao jornal Beijing Youth Daily que lamentava profundamente a decisão do IDB de cancelar e transferir sua reunião anual, e adicionou: “a China vai, como sempre, fortalecer a cooperação com países da América Latina e do Caribe, assim como o Banco Panamericano, para conquistar benefícios mútuos e desenvolvimento comum”.

“Oportunidade perdida”

Segundo Rebecca Ray, uma pesquisadora da Universidade de Boston que é especialista em desenvolvimento financeiro chinês na América Latina, não há vencedores no cancelamento da reunião desta semana. “É uma tremenda pena ver líderes mundiais darem um passo para trás do multilateralismo em um momento de crise política”, ela disse.

Segundo Ray, bancos que oferecem alternativas ao BID e ao Fundo Monetário Internacional para países latino-americanos, como o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF, não tiveram que cancelar suas reuniões por causa de diferenças sobre a crise na Venezuela.

“Apenas quando Pequim e Washington permitem que organizações multilaterais se tornem veículos para a competição em vez de cooperação que o negócio do desenvolvimento tem que parar”, ela disse.

Cancelar a reunião significou uma “oportunidade perdida” para outros países que querem receber empréstimos e avançar colaborações chinesas com o banco em projetos de desenvolvimento sustentável, disse Ray.

Em um tweet postado no domingo, Álvaro Mendez, codiretor da Unidade Sul Global da London School of Economics, disse que a decisão do BID foi “profundamente vergonhosa” e sugeriu que o banco tivesse cedido a pressões dos Estados Unidos.

China em cima do muro sobre Venezuela

67 bilhões de dólares


os empréstimos vindos da China

No fundo dessa tensão há uma realidade política: os empréstimos vindos da China de mais de 67 bilhões de dólares (segundo cifras do Inter-American Dialogue) em troca de petróleo têm sido um dos suportes econômicos utilizados pelo regime Maduro para manter-se no poder. E a China tem-se mostrado pouco inclinada a apoiar o governo atual, preferindo se manter em cima do muro.

Desde o início da crise, a China insistiu que uma solução negociada era necessária. Num típico pronunciamento “neutro”, o Ministério de Relações Exteriores chinês disse que: “Convidamos todos os setores envolvidos a atuar com calma e racionalidade e a buscar uma solução política sob a Constituição venezuelana para proteger a soberania nacional, a independência e a estabilidade. A China sempre aderiu ao princípio de não interferência e não concorda com a intervenção externa nos assuntos internos da Venezuela”.

Entretanto, há sinais de que, ao contrário de aliados de Maduro como a Rússia ou a Turquia, a China optou por manter canais abertos com ambos os lados, uma postura consistente com sua política externa pragmática e realista.

Em meados de fevereiro, o Wall Street Journal afirmou que diplomatas chineses se reuniram com delegados de Guaidó em Washington com a ideia de proteger seus investimentos na Venezuela. O Ministério de Relações Exteriores chinês desmentiu a informação um dia depois. “Na verdade, é uma notícia falsa”, disse o porta-voz Hua Chunying.

Nessa mesma semana, Elliott Abrams – o enviado do governo Trump para a Venezuela – disse numa audiência no Congresso dos Estados Unidos que uma reunião entre a China e a oposição a Maduro tinha de fato ocorrido.

“Não creio que exista qualquer negociação, no sentido restrito do termo. O que há são discussões, informes”, disse.

O mesmo Guaidó tentou enviar essa mensagem à China. “O que mais convém à Rússia e à China é a estabilidade da Venezuela e uma mudança de governo (…) Maduro não protege a Venezuela, não protege os investimentos de ninguém e não é um bom negócio para esses países”, afirmou ele numa entrevista à Reuters em janeiro.

No final de fevereiro, a China vetou um projeto de resolução do conflito promovido pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em que pedia eleições presidenciais livres na Venezuela e buscava garantir a entrada de ajuda humanitária no país. A Rússia, que tem sido o aliado mais forte de Maduro no cenário internacional, juntou-se ao veto.

No mesmo dia a China apoiou um projeto de resolução concorrente impulsionado pela Rússia, manifestando preocupação com as “ameaças de uso de força” na Venezuela e com as “tentativas de intervenção em assuntos” internos do país. A proposta, que apenas recebeu quatro votos, também não seguiu em frente.

Os esforços da China em manter distância da crise política na Venezuela foram testados de forma severa com o cancelamento da reunião do BID. Em parte, isso ocorreu porque metade dos membros do ID reconhecem Guaidó, enquanto apenas poucos – Bolívia, El Salvador e Nicarágua – ainda reconhecem Maduro. Outros, notadamente o México e o Uruguai, ainda buscam uma transição negociada.

No fim das contas, parece que ao apoiar a proposta do convite a Hausmann à cúpula, os Estados Unidos e o BID acabaram forçando a China a entrar em ação.