Oceanos

China anuncia proibição temporária de pesca em áreas de desova de lulas

Será que restrições de pesca em águas distantes no Atlântico e no Pacífico podem ajudar a preservar populações de lula?
<p>A lula de Humboldt, uma das duas espécies que a proibição de pesca quer proteger (Imagem: Alamy)</p>

A lula de Humboldt, uma das duas espécies que a proibição de pesca quer proteger (Imagem: Alamy)

No começo de junho, a Secretaria de Pesca do Ministério da Agricultura chinês anunciou planos de proibir temporariamente a pesca em partes dos oceanos Atlântico e Pacífico, para que duas espécies de lulas tenham maiores oportunidades de reprodução.

As proibições temporárias abarcam o que se acredita ser as áreas de desova mais importantes da lula de Humboldt, a oeste das Ilhas Galápagos, de julho a setembro; e da lula argentina, em águas da Argentina, Uruguai e Brasil, de setembro a novembro.

Esta é a primeira vez que a China, o país com a maior indústria da pesca do mundo, com embarcações ao redor do mundo, impõe uma proibição temporária para pesca em alto mar. Segundo especialistas, trata-se de um passo importante na administração chinesa de pesca em águas distantes e uma decisão crucial para proteger a indústria de pesca de lulas.

Outros, contudo, argumentam que o impacto será limitado, e que é necessário um maior controle dos barcos pesqueiros, ou mesmo um novo organismo de administração pesqueira voltado para a lula.

Luals: duas espécies superexploradas

Diferentes de peixes como o atum, as 10 lulas mais comercializadas do mundo vivem apenas um ano e morrem após a desova. Populações de lula são particularmente vulneráveis a fatores externos. O fenômeno climático El Niño e outras mudanças ambientais dos oceanos podem levar à flutuação de populações. Lulas também são ameaçadas pela sobrepesca, e as espécies de maior valor comercial já são exploradas em níveis insustentáveis.

A lula argentina e a lula de Humboldt são duas espécies comumente pescadas por embarcações chinesas. Populações da lula argentina têm diminuído nos últimos anos, com uma pesca média por embarcações chinesas no sudoeste Atlântico de apenas 50 toneladas em 2019, comparadas com 2 mil toneladas no passado, segundo um porta-voz da Associação de Pesca em Águas Distantes de Zhoushan.

A escassez faz com que navios pesqueiros viajem ao Pacífico mais cedo no ano. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), pescas da lula argentina, japonesa e de Humboldt sofreram redução por quatro anos seguidos. A lula argentina sofreu a maior queda.

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da pesca em águas distantes na China ocorre para pesca de lulas

No Seafood Watch, um guia de frutos do mar sustentáveis produzido pelo Aquário de Monterey Bay, nos Estados Unidos, a lula argentina recebe um sinal vermelho — o que significa que está sofrendo pesca em níveis não sustentáveis. Como resultado, a espécie não pode ser vendida nos supermercados ou hotéis na América do Norte que sigam modelos sustentáveis, afirma Wang Songlin, presidente da Sociedade de Conservação Marinha de Qingdao. A lula de Humboldt recebe um sinal amarelo, o que significa que a sobrepesca não é um grande problema, mas que a pesca deve ser mais controlada.

É crucial conservar os estoques de lula oceânica para a sustentabilidade da indústria.

Países com populações significativas de lulas em suas Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE), como Peru e México, já utilizam quotas e “captura proporcional”, na qual uma porcentagem limitada da população pode ser pescada. “Mas muitas espécies de lulas de alto valor comercial migram pelos mares de diferentes países e pelo alto mar, e atualmente não há um organismo de pesca voltado à administração das populações de lula”, explica Wang Songlin.

A China é um dos maiores pescadores, comerciantes e consumidores da lula oceânica. A frota chinesa de pesca em águas distantes é responsável por 20% da pesca mundial, e de 50 a 70% da captura em alto mar, segundo Chen Xinjun, chefe do grupo de tecnologia pesqueira de lula da Associação Chinesa de Pesca em Águas Distantes. Lulas compõem um terço de toda a captura em águas distantes realizada pela China, e por nove anos consecutivos a China tem sido o país que mais pesca lulas do mundo.

“A China é o maior processador e exportador internacional de lula. É crucial conservar os estoques de lula oceânica para a sustentabilidade da indústria”, explica Wang, acrescentando que o assunto é relevante para a própria China. O tamanho e a influência da indústria pesqueira chinesa, segundo ele, significa que o país deve agir como uma potência pesqueira responsável.

Pausa voluntária na pesca da lula na China

No entanto, as proibições temporárias de pesca afetam apenas uma pequena parte da área onde populações de lula são encontradas, e não se aplicam durante as principais temporadas de pesca. Segundo Wang, “a parte mais importante de uma proibição temporária é proteger a desova”. Desde que as principais áreas e temporadas de desova sejam protegidas, a proibição será efetiva, afirma ele.

Segundo um artigo sobre a pesca mundial de lula publicado em 2015, a lula argentina desova principalmente em julho e agosto na plataforma continental e desce até o norte da Argentina, Uruguai e Brasil. Esse padrão coincide com a locação e tempo afetados pela proposta chinesa de proibição.

A lula de Humboldt desova todo o ano, com dois picos — de fevereiro a abril e de setembro a novembro. O segundo pico coincide com a proposta chinesa de proibição. Mas o artigo afirma que são necessários mais estudos sobre as áreas de desova da lula de Humboldt. Há grandes populações da espécie em alto mar a 200 milhas náuticas do Equador e do Peru, segundo um livro sobre pesca em águas distantes editado por Chen Xinjun.

O anúncio da China afirma que o resultado das medidas será avaliado anualmente, e que o tempo e a área de proibição serão ajustados de acordo com as avaliações. O sucesso dependerá não somente de que a proibição afete a área correta, mas do controle e do cumprimento efetivos da proibição.

A frota chinesa de pesca em águas distantes já infringiu as regras em ambas as áreas propostas de pesca proibida. O capitão de uma embarcação suspeita de pesca ilegal de tubarões perto das Ilhas Galápagos está sob custódia no Equador desde 2017. Embarcações chinesas também têm pescado dentro dos limites da Zona Econômica Exclusiva (ZEE) da Argentina. Segundo Wang Songling, como espécies de lula capturadas para comércio são migratórias, embarcações às vezes entram águas nacionais para pescá-las. As proibições temporárias devem reduzir o risco de incidentes como esses.

No começo de maio, um barco pesqueiro chinês foi perseguido pela guarda costeira argentina por pescar lulas dentro da ZEE argentina. Contudo, segundo a ONG Global Fishing Watch, é mais provável encontrar embarcações chinesas nas águas do sul da Argentina durante a temporada de pesca de lulas (dezembro a julho) — o que não coincide com o tempo nem a área cobertos pelas proibições temporárias. Milko Schvartzman, especialista argentino em pesca em águas distantes, afirma que as proibições não afetarão o comportamento das embarcações durante as temporadas de pesca.

Schvartzman considera positiva a inclusão de medidas de gerenciamento de embarcações, como o monitoramento eletrônico e registros eletrônicos de pesca.  “Essas medidas são um passo na direção de evitar conflitos, sobrepesca e a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INN)”, afirma. “Contudo, para que sejam efetivas, essas medidas devem ser implementadas em um processo transparente e responsável.”

O que acontecerá com a proibição da pesca de lulas na China?

A implementação da proibição temporária vai depender de um forte gerenciamento de embarcações.

A China tem se esforçado para fortalecer o gerenciamento de sua frota de embarcações de águas distantes. Um plano publicado em 2017 exigia um uso mais amplo de sistemas de monitoramento remoto, registros que acompanham capturas em tempo real, e melhor cobertura por observadores de pesca. Todas essas medidas serão utilizadas para supervisionar a pesca de lulas durante os períodos proibidos. Os regulamentos para um sistema de monitoramento de embarcações de águas distantes, que entraram em vigor em janeiro, têm requisitos mais rígidos: os navios devem comunicar suas localizações a cada hora, em vez de a cada quatro horas, além de novas advertências e alertas antecipados para violações de fronteiras.

Segundo as regras, todas as embarcações de pesca em águas distantes devem ter um sistema de monitoramento de embarcações (VMS, na sigla em inglês), a não ser que atue em águas com requisitos específicos. O VMS envia sinais criptografados em uma frequência monitorada pelo governo e costuma ser mais confiável do que o sistema de identificação automática (AIS na sigla em inglês), usado para evitar colisões de embarcações. Na China, esse sistema também monitora o número de dias de pesca, dado que é então utilizado para calcular subsídios de pesca.

Talvez um novo organismo de conservação e regulação seja possível com o acordo de mais países

Para controlar uma frota pesqueira em expansão, a China também endureceu as punições para violações. Desde o começo de 2018, capitães e oficiais responsáveis por infrações significativas entraram entrado em uma lista negra pública e foram temporariamente banidos da atividade. Ao mesmo tempo, as empresas envolvidas perdem subsídios e são temporariamente banidas da pesca em águas distantes. Essas medidas foram transformadas em regulações de pesca em águas distantes e em uma revisão da Lei de Pesca, o que lhes dá mais poder legal.

Contudo, embora dados de monitoramento de embarcações sejam uma ferramenta importante para a segurança das embarcações e o gerenciamento da pesca, apenas Indonésia, Chile, Panamá e Peru publicam os seus respectivos dados. Essa situação dificulta a avaliação realizada por outras entidades. Navios de muitos países pescam de maneira ilegal em Zonas Econômicas Exclusivas de outros países. Sempre foi um problema prevenir esse tipo de violação. Em teoria, publicar dados de localização poderia reduzir a prática. Segundo Milko Schvartzman, três embarcações — incluindo um navio chinês — pescaram na ZEE argentina em maio deste ano. Quando estão longe de casa, capitães muitas vezes estão dispostos a arriscar.

Organizações de gerenciamento da pesca

O anúncio do Ministério da Agricultura também afirmava que o órgão vai recomendar que organizações regionais de gerenciamento de pesca (RFMOs, na sigla em inglês) implementem medidas de longo prazo e mais efetivas, como proibições temporárias internacionais na mesma linha da anunciada pelo governo chinês, ou a criação de uma organização internacional de gerenciamento de populações de lula.

Hoje em dia, recursos pesqueiros importantes e valiosos em alto mar são gerenciados por RFMOs. Essas organizações garantem que os recursos sejam utilizados de maneira sustentável monitorando populações de animais marinhos, capturas acessórias e capacidade de pesca, além de supervisionar a atividade pesqueira. A influencia dessas organizações sobre barcos pesqueiros chineses é cada vez maior: para cumprir com as regras implementadas pelas RFMOs, a China instalou um centro de treinamento de equipes da indústria pesqueira. Em abril, o centro realizou sua primeira avaliação de cumprimento de regras. Os resultados da avaliação deverão contribuir para decisões sobre atividades pesqueiras futuras e subsídios.

Segundo Milko Schvartzman, embora a Argentina não apoie a ideia de uma RFMO voltada para a lula, a criação de um organismo parecido seria positiva, e ajudaria a manter as populações do molusco: “Talvez um organismo com algumas características de uma RFMO e uma estrutura diferente — talvez um novo organismo de conservação e regulação seja possível com o acordo de mais países.”

Esta reportagem foi publicada originalmente no China Dialogue Ocean.