Oceanos

América do Sul planeja resposta conjunta contra pesca ilegal de lula

Equador, Peru, Chile e Argentina estão preocupados com a frota de 503 embarcações chinesas que pescam lulas em suas águas
<p>A marinha equatoriana cerca uma embarcação chinesa suspeita de pescar lulas gigantes ilegalmente (imagem: Alamy)</p>

A marinha equatoriana cerca uma embarcação chinesa suspeita de pescar lulas gigantes ilegalmente (imagem: Alamy)

Em um dia ensolarado em junho de 2019, os sete membros da tripulação do barco de pesca artesanal peruano “Mercedes Rosario” avistaram enormes embarcações industriais flutuando no Oceano Pacífico. Jorge Jacinto Galán, capitão do barco peruano, decidiu ancorar perto de uma delas e esperar cair a noite, que é quando estes grandes navios acendem poderosas luzes para atrair a lula gigante e capturá-la em grandes números. Eles teriam que compartilhar a pesca em seu próprio território.

“Este barco estava a 50 milhas da costa de Callao”, lembra Jacinto, referindo-se ao principal porto peruano. Ou seja, dentro da faixa de 200 milhas da costa que define a soberania marítima do Peru, também conhecida como sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE).

“Trabalhamos com eles durante dois dias”, acrescentou o capitão. A reunião foi registrada em duas fotografias que Jacinto, também presidente da Associação de Armadores e Pescadores Artesanais de San José, mostrou mais tarde em uma reunião com autoridades peruanas. Os navios não levavam bandeira, mas os pescadores suspeitam que eram chineses, de longe os mais numerosos do sudeste do Pacífico.

Chineses na rota das lulas

A frota de pesca de lulas gigantes da China tem crescido de forma constante nas últimas duas décadas, de acordo com a Organização Regional de Gestão da Pesca do Pacífico Sul. Sua primeira incursão registrada perto das águas da América do Sul foi em 2001, com 22 navios. Em 2015 já eram 252, e em 2019 atingiram um pico de 503.

Algumas delas podem ser vistas durante todo o ano perto da costa do Peru, à procura de outras espécies, como carapau ou cavala. Há também concentrações sazonais ao longo das costas do Equador e do Chile. Barcos de pesca de lula chegam até mesmo ao Atlântico, tocando os limites da costa argentina. Esta viagem é conhecida na região como a “rota da lula”.

Embora não se trate de um fenômeno novo, no ano passado as notícias sobre sua presença se tornaram mais intensas. Em julho, Lenín Moreno, presidente do Equador, pediu aos países vizinhos que tomassem uma atitude conjunta depois que 260 barcos foram avistados nas Ilhas Galápagos e notificou a China sobre sua indignação — o que levou o governo chinês a concordar em negociar diretamente com o equatoriano.

Quando a mesma frota foi novamente avistada na costa do Peru em setembro, os Estados Unidos não perderam a oportunidade de emitir um alerta sobre o assunto, por meio de sua embaixada. “A pesca excessiva pode causar enormes danos ecológicos e econômicos. O Peru não pode se permitir tal perda”, dizia o posto da embaixada no Twitter, acrescentando que são embarcações “com um histórico de mudança de nomes (…) e desativação do rastreamento por GPS”. A embaixada chinesa respondeu: “Esperamos que o público peruano não seja enganado pelas informações falsas”.

A China lidera o índice mundial de “pesca ilegal, não declarada e não regulamentada” — ou IUU — da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional. De fato, o banco de dados Krakken, desenvolvido pela empresa de consultoria FishSpectrum, identificou pelo menos 183 navios chineses suspeitos de tais práticas em águas internacionais a partir de 2018. 

“Esta frota, toda vez que pode entrar ilegalmente [nas águas exclusivas dos países], faz isso. A única coisa que a impede de pescar ilegalmente é a vigilância permanente”, diz Milko Schvartzman, especialista argentino em conservação marinha. 

“A prova disso é que em abril deste ano os guardas costeiros argentinos capturaram dois barcos chineses [em águas argentinas] que agora estão na costa do Peru”, adverte o especialista, que está monitorando os barcos. 

Um deles é o Hong Pu 16, que, no momento em que foi interceptado por autoridades, transportava 300 toneladas de lulas congeladas e tinha o rastreador via satélite desativado. Outro é o Lu Rong Yuan Yu 668, que apagou suas luzes, fugiu da Argentina para águas internacionais, e semanas depois se apresentou às autoridades.

Não se trata de uma questão de proibição pela proibição. Você tem que entender muito bem a dinâmica de como funciona

Menos de seis meses após terem sido punidos por pesca ilegal, eles agora estão novamente operando. Schvartzman conseguiu confirmar que pelo menos 14 barcos deste grupo têm um histórico de envolvimento nesta atividade ilegal em águas nacionais.

Mas essas práticas não seriam lucrativas sem o apoio direto do governo chinês, que tem um programa de subsídios para sua frota de águas distantes. Os recursos podem ser usados para cobrir custos com equipamento tecnológico e combustível, desde que a embarcação permaneça operacional por nove meses.

“É um subsídio perverso porque, por um lado, subsidia uma atividade que não seria lucrativa sem ele; e, por outro lado, força estes barcos a terem uma captura altamente predatória”, diz Schvartzman.

Um estudo de 2018 conduzido pelo pesquisador Enric Sala, um biólogo marinho que trabalha como explorador na National Geographic Society, determinou que a pesca da lula chinesa era “consistentemente não lucrativa, e os subsídios a tornavam lucrativa apenas fora da ZEE do Peru”. Mesmo no sudoeste do Atlântico, onde a Argentina está localizada, a frota tem seu pior desempenho econômico, com custos quatro vezes maiores do que nas proximidades da China. 

Como uma atividade nestas condições é lucrativa? “O motivo mais óbvio é a subnotificação das capturas, o que resulta em uma subestimação da renda e dos lucros da pesca”, diz o estudo de Sala.

Suas condições de trabalho também estão sob suspeita. Um relatório recente da ONG Oceana adverte que longos períodos no mar estão associados a condições de trabalho forçado e abusos de direitos humanos. Já em 2014, 28 marinheiros africanos escaparam de um navio chinês no porto de Montevidéu, no Uruguai, e relataram abusos físicos e um regime semelhante ao de escravidão. O Índice Global de Escravidão da Fundação Minderoo sobre escravidão nas nações pesqueiras classifica a China como um país de “alto risco”. 

A captura global da lula gigante (Dosidicus gigas) é compartilhada principalmente entre três países: Peru (49%), China (32%) e Chile (18%). Mas nas ZEEs peruanas e chilenas, ela só é capturada por pescadores artesanais, como  Jorge Jacinto, cujo barco pesa 20 toneladas. Os barcos chineses, por outro lado, podem ter uma capacidade de até 600 toneladas e podem descarregar suas capturas nos navios-mãe sem ter que voltar à terra.

“As despesas que temos são pesadas: combustível, gelo, alimentos, equipamentos de pesca. Eles estão entre 1,5 mil e 2 mil dólares. Mas quando a ‘pota’ (lula gigante) aparece mais longe, os custos chegam a 3,3 mil dólares”, diz Jorge Jacinto, um nativo da cidade pesqueira de San José, no norte do Peru, que voltou ao trabalho em junho, após um hiato de três meses devido a temores decorrentes da pandemia de Covid-19.

“Quanto você acha que um membro da tripulação ganha? Você acha justo ganhar 8 dólares por dia? No mar, arriscamos a vida, lá fora estamos contra o vento, a maré e as tempestades”, afirma o pescador.

“Os preços que estes barcos chineses praticam nos mesmos mercados da União Européia, dos Estados Unidos e da Ásia, para onde nossos países exportam, são menos da metade do custo de nossos barcos locais”, adverte o especialista em marinha Schvartzman. “Mesmo que os barcos estejam na milha 201 (portanto já em águas internacionais), o impacto econômico, trabalhista, social e ambiental em nossos países é o mesmo”. 

“A pesca que eles praticam é insustentável. Ninguém sabe o quanto se pesca, o que torna difícil conhecer o estado da população de lulas gigantes, que é a mais pescada do planeta”, acrescenta ele.

Equador busca equilíbrio

A frota chinesa está na costa do Peru há muitos anos, mas só começou a patrulhar as Ilhas Galápagos do Equador em 2017, como mostram as imagens de satélite da Global Fishing Watch (GFW). 

Embora as incursões da frota em sua ZEE sejam poucas, sua presença suscita preocupações tanto para a conservação da biodiversidade quanto para a economia pesqueira. 

“Recentemente, a GFW conduziu uma análise da frota de lulas e descobriu que de 15 de junho a 28 de julho de 2020, seis embarcações operando perto da ZEE de Galápagos estavam constantemente fechando seu sistema ISA [de rastreamento]”, diz Edaysi Bucio, coordenador de análise da América Latina da Global Fishing Watch.

Mas ainda não há informações suficientes para tirar conclusões. “Não se trata de uma questão de proibição pela proibição. Você tem que entender muito bem a dinâmica de como funciona, se só captura lulas ou se também procura outras espécies com operações ocultas”, adverte César Peñaherrera, diretor científico da rede Migramar. 

$1bilhão


é o valor anual das exportações de lula gigante no Equador (US$)

Na verdade, a lula gigante não é atualmente capturada por pescadores equatorianos e poderia eventualmente ser o centro de uma nova atividade econômica. Por outro lado, a ‘pota’ – o nome local para lula gigante – faz parte da cadeia alimentar do atum, o item mais importante na pauta de exportações de peixes do Equador, que em 2019 totalizou 1 bilhão de dólares em remessas internacionais. Segundo Peñaherrera, a depredação da lula pode fazer com que o atum migre ou altere sua reprodução.

A situação dos tubarões, cuja pesca é proibida desde 2004, também preocupa o país. Em 2017, a Marinha equatoriana deteve um navio chinês em suas águas com 5.226 tubarões, incluindo recém-nascidos e espécies em risco. E em 2020, o jornal chinês South Morning Post divulgou a maior apreensão de barbatanas de tubarão da história de Hong Kong: 26 toneladas chegaram do Equador, o equivalente a 38,5 mil tubarões protegidos. 

Existem, entretanto, alguns vínculos locais que sublinham a complexidade do problema. No ano passado, um petroleiro de bandeira equatoriana, Maria del Carmen IV, foi identificado pelas autoridades militares enquanto fornecia combustível a navios chineses no mar. 

Segundo Peñaherrera, no último ano, a coordenação multissetorial concentrou-se na coleta de evidências científicas nessas águas – especialmente na distribuição de biomassa e nos esforços de pesca – assim como em reuniões multilaterais de preparação para as negociações da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade Além das Fronteiras (BBNJ), que busca criar um instrumento jurídico internacional.

Por enquanto, o Equador acaba de aderir à Global Ocean Alliance, um compromisso promovido pelo governo do Reino Unido para proteger 30% do oceano global até 2030, que até o momento tem 30 países membros.

Na última Assembléia Geral da ONU, o Presidente Moreno anunciou que todos os países da Comissão Permanente para o Pacífico Sul (Chile, Colômbia, Peru e Equador) condenaram a pesca ilegal nas proximidades de seus territórios e concordaram em compartilhar informações de monitoramento de embarcações. Nenhum outro detalhe é conhecido. 

Peru contra o relógio

O Peru é o principal produtor mundial de ‘pota’ ou lula gigante, sua segunda exportação mais importante de peixe. Mas nos últimos anos a produção teve seus altos e baixos: em 2017, a China superou pela primeira vez a captura do Peru. E, embora em 2018 o país andino tenha recuperado seu lugar, não superou em muito seu concorrente: 362 mil toneladas contra 346 mil. 

Alfonso Miranda, presidente do Comitê de Lulas Gigantes do Pacífico Sul (Calamasur), estima que a frota chinesa pesque ilegalmente 50 mil toneladas de lulas gigantes em águas peruanas a cada ano. “Isto significa menos 50 mil toneladas para a frota artesanal e para a indústria de alimentos congelados, que em termos econômicos representam 85 milhões de dólares por ano”, disse ele.

Como resultado de reclamações, a Organização Regional de Gestão da Pesca do Pacífico Sul (SPRFMO) finalmente decidiu estabelecer algumas medidas sobre a pesca da lula em águas internacionais a partir de 1º de janeiro de 2021, tais como relatórios de captura, monitoramento e a inclusão de embarcações artesanais em seu registro. Entretanto, também impôs uma série de exigências que implicam a formalização de todas as embarcações que desejam entrar em águas internacionais. 

A formalização tem sido o ponto fraco da pesca artesanal no Peru, com exigências técnicas e processos que nem todos têm sido capazes de cumprir, tais como o tamanho da embarcação, o sistema de geolocalização ou o registro das capturas. No entanto, não é incomum para os pescadores peruanos aventurarem-se fora da ZEE em busca de espécies como a lula, o carapau ou o papagaio.

“Isso significa que temos até 31 de dezembro para completar o processo de formalização que não nos deixará cair na categoria de ilegais, para que o paradoxo da pesca da frota chinesa em águas peruanas e não dos peruanos não ocorra”, acrescenta Miranda. 

Além disso, os dados analisados pela Oceana e pela Global Fishing Watch indicam que os portos peruanos oferecem um ótimo serviço aos barcos de lula chineses. Entre janeiro e agosto de 2018, 165 embarcações registraram entrada nos terminais de Callao e Chimbote. Ou seja, um por dia. No mesmo período, apenas 17 barcos sul-coreanos de lulas entraram.

Por enquanto, o Peru está comemorando um pequeno avanço: aprovou em agosto uma disposição para que todos os navios estrangeiros que queiram entrar nos portos peruanos cumpram com o sistema de rastreamento via satélite supervisionado pelo governo e informem seu volume de captura. Não aceitará embarcações com um histórico de pesca ilegal.

Chile sob controle

De acordo com o monitoramento da Global Fishing Watch, a frota estrangeira já se fixou no Chile, seguindo o rastro da lula, que nos últimos anos começou a atrair pescadores chilenos. Como  ‘jibia’ – seu nome local – é encontrada nas águas do norte do Chile, a frota chinesa representa um problema mais direcionado e reduzido do que no Peru e no Equador, e mais controlável para suas forças armadas.

No entanto, a pesca no mar chileno, o estoque de peixes, está 70% colapsada ou superexplorada, de acordo com um relatório recente da Subsecretaria de Pesca do Chile. “Quando falamos de um estado de colapso estamos falando de um estado muito vulnerável, onde a atividade pesqueira sobre um recurso pode desaparecer”, adverte Valesca Montes, coordenadora de pesca sustentável da WWF Chile. 

A pesca ilegal também é um problema que chega a 397 mil dólares anuais, de acordo com estimativas do Serviço Nacional de Pesca e Aquicultura (Sernapesca). Montes observa que, a este respeito, foi aprovada uma lei no ano passado para tornar a pesca ilegal um crime. 

Com relação à frota internacional, o governo assinou um acordo com a Global Fishing Watch para tornar transparentes as posições geográficas dos navios estrangeiros. 

A sustentabilidade da lula gigante é tão importante para os pescadores chilenos que em 2019 foi aprovada a “Lei do Choco”, que proíbe a pesca de arrasto com esta espécie e favorece os pescadores artesanais. As empresas de pesca industrial tentaram anulá-la no Tribunal Constitucional, mas não tiveram sucesso. 

Uma ‘guerra’ na Argentina

No Oceano Atlântico, a Argentina está enfrentando um desafio diferente. A frota internacional atinge uma concentração de 500 navios no pico da temporada, e embora quase metade esteja hasteando bandeiras chinesas, os demais estão hasteando as bandeiras de Taiwan, da Coréia do Sul e da Espanha. 

Além das lulas de barbatana curta (do gênero Illex), os estrangeiros também estão procurando pescada e camarão. Na verdade, estas três espécies são as principais exportações de peixe da Argentina, avaliadas em 1,8 bilhão de dólares em 2019.

“Na Argentina é uma guerra literal”, diz Schvartzman. “Mais de um barco chinês está sendo capturado por ano e outros também estão sendo capturados.” Em 2018 havia quatro navios que tentavam abalroar a guarda costeira e todo ano há tiroteios. Em 2016, as autoridades argentinas afundaram um navio chinês em uma perseguição que durou várias horas. O Congresso acaba de aprovar uma atualização das multas por pesca ilegal, que agora podem chegar a 1,9 milhão de dólares. 

Schvartzman explica, no entanto, que, para os países sul-americanos, o monitoramento, controle e vigilância não podem ser as únicas medidas preventivas. 

“Nossos países têm que protestar contra a China e levar a discussão do problema aos organismos internacionais. Eles têm que trabalhar como um bloco”, explica ele. “Porque é muito difícil enfrentar a China unilateralmente.”

A vontade política será decisiva na coordenação e sinceridade das posições. Mas enquanto houver navios nacionais prestando serviços a navios suspeitos e abrindo portos que os sirvam sem controle, os sul-americanos continuarão sendo tanto vítimas quanto cúmplices da pesca predatória em suas fronteiras.