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Argentina na encruzilhada sobre o futuro do lítio

Governo de Fernández quer impulsionar a extração mineral e a eletromobilidade, embora isso gere conflitos com comunidades locais
<p><span style="font-weight: 400;">Extração de lítio no salar Tolillar, na província de Salta. </span>Com a demanda de mineral em alta, o governo argentino quer consolidar seu papel na indústria (Imagem: Miguel Lo Bianco / Alamy)</p>

Extração de lítio no salar Tolillar, na província de Salta. Com a demanda de mineral em alta, o governo argentino quer consolidar seu papel na indústria (Imagem: Miguel Lo Bianco / Alamy)

A Argentina enfrenta um dilema sobre suas reservas de lítio. O presidente Alberto Fernández e seu gabinete querem impulsionar o desenvolvimento do setor e esperam que o Estado tenha um papel de destaque na extração do mineral e no desenvolvimento de baterias para veículos elétricos (VEs). No entanto, há fortes tensões sociais e ambientais por trás de tais ambições.

O desejo de expansão do governo tem dimensão internacional: globalmente, estima-se que o setor de transportes seja responsável por 24% das emissões de gases com efeito de estufa, por isso a priorização dos VEs sobre os carros a óleo é visto como um pré-requisito para a transição energética. É aqui que o lítio desempenha um papel-chave — e o qual a Argentina tem em abundância.

As salinas da Argentina, Bolívia e Chile são responsáveis por quase 60% dos recursos globais de lítio. A Argentina abriga 9% das reservas mundiais — cuja exploração tem sido viável em termos técnicos e econômicos — e está em terceiro no ranking global, atrás do Chile e da Austrália.

Lítio na Argentina

Na Argentina, há dois projetos de produção de lítio para exportação. No Salar del Hombre Muerto, no noroeste da província de Catamarca, a empresa americana Livent, agora associada à BMW, tem capacidade de produzir 20 mil toneladas de lítio por ano e planeja duplicá-la com um investimento de US$ 640 milhões.

O segundo é o Sales de Jujuy, no Salar de Olaroz, na província de Jujuy, com uma capacidade de 17,5 mil toneladas de lítio por ano. É gerido pela australiana Orocobre, em parceria com a japonesa Toyota Tsusho e a empresa provincial Jujuy Energía y Minería Sociedad del Estado (Jemse). A Sales de Jujuy vende lítio à Toyota, no Japão, e a outros fabricantes de baterias na Coreia do Sul e China.

Mapa mostrando a localização de três projetos de lítio na Argentina

O único projeto atualmente em desenvolvimento é o Caucharí-Olaroz, também na província de Jujuy, operado pela Minera Exar e de co-propriedade das empresas Lithium Americas (canadense) e Ganfeng Lithium (chinesa), com a Jemse detendo uma participação minoritária. A produção deverá começar no próximo ano e, uma vez concluída, terá uma capacidade de produzir 25 mil toneladas de carbonato de lítio por ano. A Caucharí-Olaroz tem contratos com Tesla, Volkswagen e BMW.

De acordo com dados oficiais da Secretaria de Minas da Argentina, no ano passado foram exportadas 31,5 mil toneladas de carbonato de lítio do país por US$ 134 milhões, contra US$ 184 milhões em 2019. Com a produção de Caucharí-Olaroz, a capacidade total do país aumentaria das atuais 37,5 mil toneladas para 85 mil toneladas por ano.

31,5 mil toneladas


de carbonato de lítio foram exportadas da Argentina só em 2019

Por outro lado, a empresa francesa Eramet viu seu projeto no Salar de Centenario-Ratones, na província de Salta, paralisado pela pandemia e pela incerteza econômica da Argentina. Na mesma linha, estão a empresa sul-coreana Posco, que planeja construir uma fábrica de carbonato e hidróxido de lítio em Salta, e as empresas australianas Galaxy e Orocobre, que investem em Catamarca.

Praticamente todas as concessões de salinas na Argentina estão nas mãos de entre 50 e 60 empresas. Martín Obaya, pesquisador da Universidade Nacional de General San Martín, argumenta que o marco regulatório da atividade minerária favorece a especulação sobre tais projetos, com empresas comprando concessões, mas depois vendendo-as para obter renda.

A lei de investimentos em mineração da Argentina e seu código de mineração, que regulamenta a atividade de lítio, permite a importação de equipamentos com isenção de impostos, inclui incentivos e estabilidade fiscal e impõe royalties de apenas 3% para as exportações. Mas não estabelece mecanismos de diálogo com as comunidades, nem inclui ferramentas para avançar na agregação de valor.

A situação é diferente no Chile e na Bolívia, onde o lítio é considerado um recurso estratégico. No Chile, as empresas privadas operam sob contratos com o Estado, com royalties flexíveis entre 6% e 40%, e os recursos são destinados ao financiamento de centros de pesquisa. Enquanto isso, na Bolívia, o sistema é público e projetos-piloto foram desenvolvidos, mas ainda não estão em fase industrial.

Conflitos ambientais

Em áreas em disputa, podem surgir conflitos sobre a água. “A mineração de lítio compete por um recurso essencial como a água, já que essas [salinas] são áreas de extrema aridez”, explica María Laura Castillo Díaz, da Fundação Ambiente e Recursos Naturais (Farn). “A pouca água doce disponível é subterrânea, e é um recurso básico para as comunidades e a biodiversidade”.

As empresas perfuram um poço entre 200 a 400 metros de profundidade para extrair água juntamente com minerais. O líquido jorra por um a dois anos em piscinas enormes, de onde a água evapora. O composto resultante requer, assim, grandes quantidades de água doce para formar carbonato de lítio.

O conflito continuará a existir enquanto os direitos indígenas não forem reconhecidos

Na salina de Olaroz e em Catamarca, o setor de lítio está avançando, apesar de provocar tensões com comunidades vizinhas. Já em Salinas Grandes, uma bacia que se encontra nas províncias de Salta e Jujuy, onde vivem 33 comunidades:  vários projetos exploratórios foram interrompidos devido a conflitos e, como resultado, praticamente não há presença comercial ativa.

Alicia Chalabe, advogada das comunidades de Salinas Grandes, diz que elas estão “organizadas” e que “o conflito continuará a existir enquanto os direitos indígenas não forem reconhecidos”. Ela acrescenta que “a legislação regional não contempla o direito à consulta prévia”. As comunidades não são devidamente informadas, nem lhes é pedido consentimento quando as condições de biodiversidade são afetadas”.

Acordo de Escazú


Ratificado por 12 países da América Latina, o Acordo de Escazú foi ratificado pela Argentina em 2020

A reivindicação das comunidades se baseia na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que diz respeito à proteção das terras dos povos indígenas e tradicionais, e que foi ratificada pela lei argentina. O Acordo de Escazú, o primeiro tratado ambiental da América Latina e do Caribe, também está em vigor, e estabelece normas regionais para os direitos ambientais.

No entanto, com a crescente demanda de lítio, conflitos sobre essas terras e seus recursos podem se intensificar — particularmente dadas as ineficiências no processo de extração de lítio. Como explica Ernesto Calvo, da Universidade de Buenos Aires: “O método atual de extração de lítio não é sustentável devido ao volume de água que requer e aos resíduos que gera. Também é muito ineficiente em termos econômicos, o que significa que não atenderá ao aumento de 35 vezes na demanda esperada em um cenário em que os veículos elétricos se disseminem”.

Calvo e sua equipe desenvolveram um novo método de extração que compete com projetos de empresas e governos de todo o mundo para alcançar escala industrial. “Mais cedo ou mais tarde, haverá uma mudança tecnológica em favor de um método de extração mais eficiente, econômico e ambientalmente correto”, disse ao Diálogo Chino.

Plano argentino para o lítio

O governo de Alberto Fernández estuda um projeto de lei que visa consolidar uma empresa pública para a produção de lítio, juntamente com uma comissão independente que funcionaria nos níveis científico, técnico, comercial e industrial. A comissão convidaria a participação dos governos nacionais e provinciais, comunidades indígenas e universidades. Haveria também uma nova agência destinada a estimular o desenvolvimento científico do lítio. Fontes entre os deputados pró-governo argumentam que esta nova entidade pública deveria assemelhar-se à YPF, a empresa petrolífera nacional, mas destacam que as concessões das salinas representam um problema.

Trabalhadores manuseiam carbonato de lítio
Trabalhadores manuseiam carbonato de lítio após processamento na usina de Rincón, em Salta, na Argentina (Imagem: Agustin Marcarian / Alamy)

Federico Nacif, especialista em lítio do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica, diz que “a primeira coisa que deve ser regulamentada são os projetos que estão atualmente em andamento. De qualquer forma, os planos para produzir lítio com uma empresa estatal poderiam entrar em vigor dentro de oito anos”.

Nacif e outros especialistas argumentam que o lítio deve ser retirado do âmbito da lei de investimentos em mineração da Argentina e declarado um recurso estratégico. Mas como um país federalizado, no qual as províncias têm controle sobre seus recursos, avançar nessa direção acarretaria um considerável conflito político.

Eletromobilidade na Argentina

A curto prazo, espera-se que o governo envie ao Congresso um projeto de lei para promover a eletromobilidade. Os detalhes ainda não são conhecidos, mas ele buscaria incentivar a industrialização do lítio, bem como a fabricação de VEs com componentes de fabricação nacional, e expandiria o mercado desses modelos.

Sem demanda?


Para fabricantes de automóveis da Argentina, a possibilidade de produção em massa de VE no país é remota, já que o Brasil, o principal comprador, não parece estar em transição para carros elétricos, mas sim híbridos

Para este fim, a província de Jujuy e o governo nacional assinaram um memorando de entendimento (MOU) com a chinesa Ganfeng Lithium, que vai estudar a instalação de uma fábrica de baterias de lítio. Enquanto isto, o governo nacional acordou outro MOU com outra empresa chinesa, a Jiangsu Jiankang Automobile, para produzir VEs e baterias na Argentina.

A promoção da eletromobilidade é motivo de discórdia com fabricantes de automóveis, que alertam que a possibilidade de produção em massa de VE no país é remota. Eles afirmam que o Brasil, o principal comprador, não parece estar em transição para carros elétricos, mas sim híbridos, a fim de aproveitar seus recursos de etanol como combustível. Além disso, argumentam que a indústria argentina é especializada na fabricação de veículos utilitários, que não se adaptam bem à tecnologia elétrica atual, dada sua potência e alcance. Por isso, pressionam para que o primeiro passo seja o apoio aos híbridos — que combinam gasolina ou gás com eletricidade.

A curto prazo, o mercado de VE poderia se expandir no transporte público e por meio da importação de certos veículos para uso urbano. As empresas chinesas parecem ser os únicos atores capazes de construir fábricas, mas há incertezas sobre o quanto elas estabeleceriam relação com e beneficiariam a indústria local.