Agricultura

Agricultura argentina acumula prejuízos de seca prolongada

Setenta e cinco por cento das terras agrícolas são afetadas enquanto fenômeno La Niña persiste e efeitos da mudança climática se intensificam
<p>Um agricultor em uma plantação de milho atingida pela seca em Chivilcoy, Argentina. A seca tem sido uma ameaça recorrente nas regiões agrícolas do país, mas o terceiro ano consecutivo do La Niña intensificou os desafios para os agricultores (Imagem: Martin Acosta / Alamy)</p>

Um agricultor em uma plantação de milho atingida pela seca em Chivilcoy, Argentina. A seca tem sido uma ameaça recorrente nas regiões agrícolas do país, mas o terceiro ano consecutivo do La Niña intensificou os desafios para os agricultores (Imagem: Martin Acosta / Alamy)

A agricultura argentina vem sofrendo os prejuízos de uma seca prolongada, que se estende pelo terceiro ano consecutivo.

O déficit hídrico é provocado pelo La Niña, fenômeno meteorológico que tende a reduzir a precipitação nas principais regiões produtoras do país. E segundo especialistas, também está diretamente ligado às mudanças climáticas.

O que é La Niña?


La Niña é um fenômeno que provoca flutuações nas temperaturas das partes central e oriental do Oceano Pacífico equatorial, além de mudanças na circulação atmosférica tropical, como nos ventos, na pressão e nas chuvas.

Segundo o mais recente relatório do Conselho de Monitoramento da Seca na Argentina, 126 milhões de hectares (ha) foram afetados, o equivalente a 75% da área agrícola. A seca é especialmente sentida na zona núcleo, localizada no centro-oeste argentino, onde se concentra a produção de trigo, milho e soja.

“A situação está levando um grande número de produtores a atrasar o plantio, esperando por mais água”, disse Pablo Mercuri, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Tecnologia Agrícola (Inta).

De acordo com um relatório recente da Bolsa de Valores de Rosário (BCR), a pouca chuva deve provocar uma queda na colheita de trigo e milho em 2023. Já para a soja, está previsto um aumento da área plantada pela primeira vez em seis anos.

Mas isso é uma projeção e, por enquanto, não há consenso entre os especialistas sobre o real impacto que a seca terá sobre a economia argentina. Os efeitos, eles argumentam, dependerão, em grande parte, dos preços internacionais.

Mais do que apenas seca

O terceiro ano consecutivo de La Niña trouxe novos desafios para muitos agricultores argentinos, que ainda se recuperam da seca prolongada na safra 2021-22.

Conforme definido pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), o La Niña é um fenômeno que provoca flutuações nas temperaturas das partes central e oriental do Oceano Pacífico equatorial, além de mudanças na circulação atmosférica tropical, como nos ventos, na pressão e nas chuvas.

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Na Argentina, o La Niña geralmente reduz as chuvas, o que é sentido mais intensamente na zona núcleo, afirmou o meteorologista Leonardo de Benedictis ao Diálogo Chino.

José Luis Aiello, da Consultora de Climatologia Aplicada, em Buenos Aires, destaca: “Temos um forte déficit hídrico nas principais áreas de produção agrícola — isto é, nas províncias de Córdoba, Santa Fé e no centro-norte de Buenos Aires”.

Essa “trilogia” do La Niña já havia ocorrido em tempos modernos: de 1973 e 1976 e de 1998 a 2001. Mas, ao contrário dos ciclos anteriores, desta vez ele ocorre pela intensificação das mudanças climáticas. Embora não haja uma relação direta entre os dois fenômenos, a compreensão de sua interação é objeto de pesquisas.

“Há um progressivo prolongamento da estação seca”, disse Mercuri, do Inta. “Algumas pesquisas associam isso ao forte desmatamento na Amazônia, o que reduz a entrada de ventos úmidos [ao continente]”.

O setor privado também reconhece que as dificuldades de hoje têm raízes para além do La Niña. “O que vemos nesta década é que a palavra ‘recorde’ entrou no vocabulário: recorde de chuvas ou de falta d’água. Vemos isso como efeito das mudanças climáticas”, disse Cristián Russo, diretor do Guia Estratégico para a Agricultura, serviço da BCR.

Juan Borús, do Instituto da Água na Argentina, disse ao Diálogo Chino que “o contexto é tão extraordinário que as conclusões podem ser precipitadas, por isso é melhor esperar que a situação passe para se fazer uma análise aprofundada”.

Impacto sobre agricultura

De acordo com os especialistas consultados, a normalização das chuvas não deve ocorrer até os primeiros meses do próximo ano.

Em seu boletim de agosto, a OMM declarou que as chances de continuação do La Niña eram de 70% entre setembro e novembro deste ano, diminuindo gradualmente para 55% de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023.

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A passagem do La Niña terá um impacto profundo na atual colheita na Argentina. O maior efeito, por enquanto, está no trigo, cujo ciclo vai de maio a dezembro. Um boletim da Bolsa de Cereais de Buenos Aires (BCBA) estima que sua produção será de 17,5 milhões de toneladas, valor mais baixo dos últimos sete anos, “como resultado da ausência de chuvas”.

“Estamos caminhando para um desastre produtivo”, disse Russo, da BCR, acrescentando que, ao contrário de outras safras, os efeitos do La Niña “não foram compensados por outros eventos climáticos”.

Embora com menos intensidade do que no caso do trigo, deve haver recuo na produção de milho, plantado em setembro e outubro. A BCR também atribuiu isso à falta de chuvas.

Diante disso, vários produtores de milho provavelmente optarão por um plantio tardio, e a área plantada poderá quebrar novos recordes, de acordo com o mesmo relatório da BCR.

Pablo Mercuri tem estimativa semelhante, afirmando que haverá uma “migração massiva” para a segunda colheita de milho, cujo plantio ocorre no inverno.

Estamos caminhando para um desastre produtivo. Os efeitos do La Niña não foram compensados por outros eventos climáticos.

Enquanto isso, a produção de soja, menos sensível à seca, deve se expandir. A BCBA estima um aumento de 10% na produção, uma virada após vários ciclos de redução.

“Depois de quase seis safras, a soja pode aumentar sua área plantada”, disse Martin Lopez, analista da BCBA, à Reuters. Ele explicou que, devido à seca, muitos produtores trocaram ha destinados ao milho pela soja.

O especialista acrescentou que se espera uma área de soja de 16,7 milhões ha, 400 mil ha a mais do que há um ano; e uma área de milho de 7,5 milhões ha, em comparação com os 7,7 milhões ha na safra 2021-22. A soja também será beneficiada por áreas normalmente plantadas com trigo que foram perdidas pela seca.

Impacto da seca em números

As mudanças causadas pela seca terão impacto na economia argentina, embora, dada a incerteza dos preços internacionais, seja difícil estimar sua escala.

O consultor agrícola Néstor Roulet estima perdas de US$ 3,3 bilhões, considerando as consequências para o trigo, o milho e a soja. Ele levou em conta não apenas mudanças na área plantada, mas também os menores rendimentos gerados pela seca.

Para a BCBA, a queda poderia ser maior: de acordo com um relatório apresentado às autoridades nacionais, a perda será de US$ 4 bilhões, o que representa uma queda de 9% em comparação com a safra anterior.

O orçamento do governo argentino previsto para 2023 não traz um valor preciso, mas o texto apresentado ao Congresso é mais otimista do que as estimativas do setor privado.

Porém, dada a volatilidade das condições internacionais, observadores provavelmente só terão uma visão mais clara da extensão dos impactos da seca na Argentina em 2023.