Infraestrutura

China apoia controverso projeto de hidrovia na Amazônia peruana

Engenheiros e povos indígenas exigem estudos adequados de projeto que ameaça peixes e subsistência local
<p>(imagem: <a href="https://www.flickr.com/photos/michalo/34866309253/in/photostream/">Anna &amp; Michal</a>)</p>

(imagem: Anna & Michal)

O Rio Amazonas é o maior rio do mundo e nasce no Peru, país que tem planos de transformar seus maiores afluentes em vias hidroviárias mais rápidas e modernas.

A Hidrovia Amazônica é um projeto multimilionário que pretende dragar os quatro maiores rios da região amazônica do Peru e aumentar a segurança do transporte usando um sistema de navegação por satélite e GPS.

O projeto de 95 milhões de dólares tem apoio do governo e vai abrir uma hidrovia de 2.687 quilômetros de extensão ao longo dos rios Marañon, Ucayali, Huallaga e Amazonas, tão logo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) seja aprovado.

O consórcio Cohidro, uma parceria entre a Sinohydro Corp Ltd, uma empresa de engenharia chinesa, e a Casa S.A., uma empresa de construção peruana, foi contratado para coordenar o projeto em 2017. Cada empresa tem 50% do consórcio.

Se receber o sinal verde no final deste ano, conforme esperado, a hidrovia poderá entrar em operação já em 2022, inaugurando uma concessão com duração prevista de 20 anos.

O projeto levaria o Peru a seguir o caminho da Amazônia brasileira, onde rios da região têm ganhado um papel cada vez

Lacunas de infraestrutura e informação

A Hidrovia Amazônica foi declarada projeto de interesse nacional e contemplada pelo Ministério de Transportes e Comunicação do Peru entre os 52 projetos-chave de infraestrutura que devem ser realizados no país para amenizar um déficit de 110 bilhões de dólares na infraestrutura, o equivalente a cerca de metade do PIB do país.

$110bilhões

é o valor do déficit peruano em infraestrutura

Apesar disso, até ser aprovado, o projeto pode enfrentar muitas dificuldades.

O plano é tornar a região amazônica mais navegável, mas isso trouxe à tona preocupações sobre o meio ambiente. Além disso, muitas perguntas sobre os objetivos da proposta seguem sem respostas.

Apresentada pela primeira vez em 2014 como parte da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), a hidrovia atraiu os primeiros investidores chineses e peruanos – a El Consorcio Hidrovias II – em 2017.

O rio é uma estrutura viva e integrada e tudo o que acontece na montante afeta a jusante e vice-versa

A ideia inicial era realizar obras de dragagem em 13 pontos que dificultam a navegação em cada um dos quatro rios. Desde então, foram levantadas uma série de questões que até hoje não foram sanadas. Segundo os engenheiros envolvidos, o EIA da Hidrovia Amazônica foi “muito generalizado”.

“Nas obras de dragagem para remoção de sedimentos, é preciso estudar a quantidade de sedimentos movimentados junto ao fundo do rio”, disse Jorge Abad, engenheiro especializado em ecohidráulica.

“Ninguém fez isso”.

Abad disse que a dragagem do leito dos rios exige antes uma modelagem para determinar a sua eficiência e os possíveis efeitos secundários.

“Se o contrato vai ser de 20 anos, precisamos de mais previsões quantitativas para saber o que vai acontecer até lá – a empresa não está disponibilizando isso”, disse ele à Diálogo Chino.

“O rio é uma estrutura viva e integrada e tudo o que acontece na montante afeta a jusante e vice-versa. Eles parecem não entender isso”, disse Abad, que vem estudando o sistema do rio Amazonas há uma década.

O papel da China

O envolvimento de uma empresa chinesa no projeto é algo muito significativo, diz Rosario Santa Gadea, diretora do Centro de Estudos China-Ásia-Pacífico na Universidade do Pacífico em Lima.

“A China tem interesse em investir em infraestrutura no exterior e o Peru oferece muitas oportunidades”, disse ela, acrescentando que o projeto da hidrovia “aumentará a conectividade e o comércio entre a China e o Peru”.

Em abril, o Peru deu apoio formal ao grande projeto logístico da China, a Iniciativa do Cinturão e Rota.

Mapa cortesia da ONG DAR
Mapa cortesia da ONG DAR

A proposta inicial era de conectar o porto marítimo de Paita, no norte do Peru, à região amazônica, explicou Rosario. Iquitos, a capital regional de Loreto, é a maior cidade do mundo sem acesso rodoviário. O estado é maior do que o Equador, país vizinho do Peru.

Os peixes fugirão e as crianças ficarão sem alimento

“Há necessidade de ampliarmos a conectividade com o Brasil através da parte amazônica do nosso país”, acrescentou ela.

Mas até os chineses já comentaram que o custo ambiental pode ser alto demais. Zhang Jingjing, uma advogada ambiental do Projeto de Accountability Ambiental Transnacional, disse à Diálogo Chino que os “povos indígenas têm muitos receios em relação a projetos desse tipo porque eles podem afetar seu modo de vida”.

“A China precisa estar em conformidade com as normas internacionais para assegurar que os seus investimentos internacionais sejam verdes e limpos”, disse ela.

A Sinohydro é uma estatal chinesa e maior empresa do setor de construção de hidrelétricas do mundo, mas seu histórico em relação às normas ambientais e direitos humanos está longe de ser perfeito.

A empresa esteve envolvida nos projetos hidrelétricos mais polêmico de todo o mundo, como a barragem Kamchay no Cambódia (Ásia), a barragem Kajbar no Sudão (África), e a Barragem Coda Sinclair no Equador, que foi objeto de um escândalo nacional devido à precariedade da sua construção e das denúncias de corrupção.

Atrasos na avaliação de impacto ambiental

O EIA para o projeto da Hidrovia Amazônica precisou ser reescrito várias vezes desde o início de 2018, após ter sido rejeitado inicialmente pelo serviço de certificação ambiental do Peru, o SENACE, por não ter incluído oficinas de participação cidadã ou mesmo consultas às organizações indígenas.

Em maio, o SENACE aceitou o EIA para avaliação, integrando duas federações indígenas (ORAU e CORPI) como terceiros interessados.

Ao mesmo tempo, a AIDESEP, federação que reúne tribos indígenas amazonenses, entrou com um recurso junto ao tribunal superior de Lima para forçar o Ministério de Transportes e Comunicação do Peru a implementar os antigos acordos de consulta, que afirma não terem sido adequadamente realizados.

As comunidades indígenas se preocupam com o impacto das dragagens na ictiofauna, além dos planos de remover os troncos das árvores que ficam submersos no rio, conhecido como quirumas, local de reprodução de peixes. As dragagens também afetam a migração dos peixes e a segurança alimentar de toda a região da floresta amazônica, segundo um relatório da Wildlife Conservation Society no Peru.

O Ministério de Transportes e Comunicação do Peru participou de uma série de reuniões públicas na região no último mês e afirmou que implementaria um plano para que a migração dos peixes não fosse afetada.

O projeto seria um desastre econômico e ecológico enorme

Antes disso, a principal federação de indígenas de Loreto, a ORPIO, juntamente com a CORPI, a ORAU e a AIDESEP, fez um anúncio público em maio exigindo que o projeto fosse declarado inviável.

“Seremos afetados porque a [dragagem] significa que as margens dos rios serão destruídas e as comunidades [ribeirinhas] começarão a desaparecer”, disse Zoila Merino, líder indígena Bora e integrante da ORPIO.

“Os peixes fugirão e as crianças ficarão sem alimento. Somos donos da floresta há muito tempo, esse é o nosso mercado. Para nós, água é saúde, vida e alimento, é tudo. Essa ligação não vai nos beneficiar”, acrescentou Merino.

No último mês, o SERNANP, serviço nacional de áreas protegidas do Peru, disse que no EIA do projeto foram identificadas duas espécies ameaçadas de mamíferos que seriam afetadas: o boto-cor-de-rosa e a ariranha.

O SERNANP fez 31 observações no estudo de impacto, destacando questões específicas sobre três pontos de dragagem perto da zona de amortecimento da reserva nacional de Pacaya Samiria, a maior do Peru, e outro na zona de amortecimento do parque nacional Cordilheira Azul.

“O projeto seria um desastre econômico e ecológico enorme”, disse Richard Bodmer, presidente da ONG FundAmazonia, à Diálogo Chino.

“Um terço de Loreto é floresta alagada e área de reprodução de peixes. Esse tipo intensivo de dragagem vai causar impactos negativos”, disse Bodmer, acrescentando que a dragagem dos montes subaquáticos aceleraria o fluxo de água, o que causaria mais secas.

Cobranças

A cobrança de uma nova taxa sobre o transporte é uma medida pouco popular. A Cohidro quer exigir uma tarifa para todos os que utilizarem os rios, mas essa ideia é rejeitada pelo sindicato local de transporte fluvial. Se o projeto seguir em frente, qualquer embarcação de médio a grande porte pagaria à concessionária 1,69 dólar, mais uma taxa IVA de 18%, por unidade de arqueação bruta.

30%

é o quanto a tarifa das hidrovias pode encarecer a cesta básica

“Isso não passa de uma cabine de pedágio, o que encarece o transporte e a cesta básica de alimentos em 30%”, disse Carmen Nuñez, diretora-geral da associação de transporte fluvial de cargas em Loreto, em uma conversa com a Diálogo Chino. Há previsão de protestos em Lima.

“Quero que o mundo saiba que eles ‘concessionaram’ a nossa Amazônia, porque ela não pertence apenas a este governo e ao Peru, pertence ao mundo. É por isso que precisamos conservá-la, não enviar máquinas de dragagem”.

O Ministério de Transportes e Comunicação do Peru não respondeu aos nossos pedidos para comentar o assunto.